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terça-feira, 26 de abril de 2016

15 filmes essenciais de prisão



Assim como os de gângster ou que retratam a Segunda Guerra Mundial, os filmes de prisão são bastante atrativos. Até mesmo os mais puramente aventurescos, como “Condenação Brutal”, com Sylvester Stallone, ou “A Rocha”, com Sean Connery, se estiverem passando na TV te puxam para que se assista pelo menos um pouco ou mesmo daquele ponto até o final. De fato, os filmes sobre sistema prisional guardam uma magia especial. Talvez porque, assim como os de gângster ou Segunda Guerra, muitas vezes se baseiem em fatos reais. Quando não, são tão passíveis de verdade quanto um verídico, haja vista a identificação que seus personagens geram junto ao espectador ou mesmo pelas barbaridades que geralmente denunciam, sejam ficção ou não. Não raro estão em jogo os mais basais direitos humanos.

Desta forma, busquei listar 15 títulos bem abrangentes e interessantes sobre o tema. De produções europeias a asiáticas, passando pelos cinemas brasileiro (bem representado), argentino e, claro, norte-americano, que domina largamente neste quesito. Desde clássicos do passado até os dias de hoje, os Estados Unidos são imbatíveis em filmes de prisão. Valeu entrarem filmes não apenas de penitenciária – embora sejam a maioria – mas também de cadeias comuns e de prisioneiros de guerra. De presos políticos, como nos essenciais “A Confissão” (Costa-Gavras) ou “Pra Frente, Brasil” (Roberto Farias), ficaram para uma outra seleção. Como valeu apenas longas-metragens, merece menção honrosa “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, curta-metragem de Jorge Furtado e José Pedro Goulart, uma obra-prima que, inclusive, completa 30 anos de seu lançamento em 2015.

Sem ordem de preferência, a condição foi a de que a história se passe, se não inteiramente, pelo menos a maior parte do tempo dentro das celas, sendo-lhes um elemento narrativo preponderante. Assim, ficaram de fora ótimos exemplares como “Dançando no Escuro”, de von Trier, “O Último Imperador”, de Bertolucci, ou “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratton, que têm, sim, sequências em prisões, mas relatam muito mais do que isso em suas tramas. No nosso caso, não basta: tem que estar encarcerado mesmo, atrás das grades, em cana, no xadrez, detido, vendo o sol nascer quadrado. Então, “teje preso” a esses 15 títulos essenciais sobre prisão:


- “O Homem de Alcatraz”, de John Frankenheimer (“Birdman of Alcatraz” - EUA, 1962)
Com a mão do craque John Frankenheimer, diretor que nunca se omitiu de mostrar mazelas do sistema norte-americano e nem de aprofundar aspectos psicológicos muitas vezes relegados à superficialidade, este filme traz a realidade de uma penitenciária típica dos Estados Unidos a partir de um conflito entre o pragmatismo e o humanismo. Um prisioneiro (Robert Stroud, por Burt Lancaster) condenado pelo assassinato de dois homens passa a vida na cadeia. Lá se torna um autodidata sobre pássaros, sendo reconhecido mundialmente como uma grande autoridade no assunto. Mas, apesar de demonstrar regeneração e um intelecto superior, o Estado se recusa a libertá-lo.






- “O Processo de Joana D’arc”, de Robert Bresson (“Procès de Jeanne D´Arc” - FRA, 1962)
 A austeridade e sobriedade de Robert Bresson emprestam ao filme uma narrativa absolutamente austera, desde o uso de atores não-profissionais até o centramento exclusivo aos documentos oficiais sobre o caso, passado no século XV. Para muitos o grande filme do diretor, “O Processo...” mostra outro tipo de prisão, a religiosa, uma vez que a iluminada Joana era considerada bruxa pelas visões e percepções espirituais que tinha naturalmente. Com rigor, Reconstituiu a prisão, o julgamento e a execução da mártir.






- “Fugindo do Inferno”, de John Sturges (“The Great Escape” - EUA, 1963)
Clássico filme de prisão de guerra à época da Segunda Guerra e baseado em fatos reais. Aliados tentam fugir de um campo de concentração alemão, o Stalag Luft III, considerado como o mais seguro do gênero. Elenco impagável com Steve McQueen, James Garner, Richard Attenborough, Charles Bronson, James Coburn, entre outros feras. Globo de Ouro de Melhor Filme de Drama.









- “Rebeldia Indomável”, de Stuart Rosemberg (“Cool Hand Luke” - EUA, 1967)
Filme impactante e com a excelente atuação de Paul Newman, que faz o rebelde e inconsequente Luke Jackson. Preso, ele recusa-se a obedecer as regras do local e ganha o respeito dos demais presidiários por sua valentia e malandragem. Insiste em fugir, mas a cada nova recaptura as punições são mais severas, aumentando constantemente o ódio entre ele e os guardas. Indicado ao Oscar, Newman não levou este, que foi para o ator coadjuvante, George Kennedy. Porém, em 2003, seu personagem Luke foi escolhido pelo American Film Institute (AFI) como o trigésimo maior herói dos filmes norte-americanos.







Dustin Hoffman e Steve McQueen
em "Pappilon"
- “Papillon”, de Franklin Schaeffner (EUA, 1973)
Obra-prima ainda pouco valorizada, esta superprodução é dos filmes mais realistas e impactantes do gênero. Conta a história verídica de Henri Charrière (Steve McQueen, novamente encarcerado), conhecido como Papillon, que, apesar de reclamar inocência da acusação de assassinato, é condenado à prisão perpétua e enviado para cumprir a sentença na Guiana Francesa, na Ilha do Diabo, num presídio de segurança máxima. A direção de Schaeffner não deixa nada às escuras: as torturas, a fome, as punições, a desumanidade do presídio, está tudo ali. McQueen, impecável, assim como Dustin Hoffman (o amigo francês Dega). Incrivelmente, recebeu apenas indicações no Oscar e Globo de Ouro, mas não levou nada. Das injustiças históricas.




- “O Expresso da Meia-Noite”, de Alan Parker (“Midnight Express” - ING, 1978)
Dos mais impactantes e dramáticos filmes do gênero, passa-se, ao contrário das jaulas superequipadas dos Estados Unidos, numa insalubre e insana prisão da Turquia. O saudoso Brad Davis interpreta magistralmente Billy Hayes, um estudante norte-americano que é pego traficando drogas num aeroporto de Istambul. Não só vai parar numa prisão degradante, onde é torturado física e psicologicamente, como ainda recebe como exemplo uma pena mais rigorosa que o normal. Parker, em ótima fase, leva o espectador a entrar num mundo de introspecção e loucura, dando um sentido metafórico e simbólico ao título. Oscar de Melhor roteiro adaptado, de Oliver Stone, e de Melhor Trilha Sonora, com os marcantes temas synth-pop de Giorgio Moroder.




- “Alcatraz – Fuga Impossível”, de Don Siegel (“Escape from Alcatraz” - EUA, 1979)
Para muitos, o maior filme de penitenciária já realizado, o que não é nenhum absurdo. Ápice da parceria entre Siegel e Clint Eastwood, que interpreta Frank Morris, um condenado que tem várias tentativas de fugas em seu histórico e é enviado para a prisão de segurança máxima da Ilha de Alcatraz, conhecida por não deixar nenhum preso fugir ou sair vivo numa escapada. Porém, obstinado e calculista, Frank vê os pontos vulneráveis de Alcatraz e, com a ajuda de alguns outros internos, cria uma rota de fuga perigosa e improvável. Não tem como não torcer pelo bandido!




- “Furyo – Em Nome da Honra”, de Nagisa Oshima (“Merry Christmas, Mr. Lawrence” - JAP/ING/NZL, 1983)
Raro filme do sempre profundo Oshima, que reúne dois gênios da música como atores: David Bowie (em sua melhor atuação no cinema) e Ryuichi Sakamoto, que assina também a ótima trilha. Na Segunda Guerra, num campo de concentração na Ilha de Java, o prisioneiro inglês Jack Celliers (Bowie) provoca um conflito quando decide não obedecer às rígidas regras do capitão Yonoi (Sakamoto), insolência repudiada com violência. Porém, o oficial inglês se mantém irredutível, o que enfurece ainda mais o capitão. Interessante reflexão sobre orgulho, honra e os limites humanos tanto físicos quanto psicológicos.






Sônia Braga nos lances oníricos
do filme.
- “O Beijo da Mulher Aranha”, de Hector Babenco (BRA/EUA, 1984)
Um dos cineastas mais talentosos vivos, Babenco está nesta lista com dois filmes. Um deles é este até então raro acerto de coprodução brasileira com os EUA, uma vez que, quando se fazia, prevalecia o poderio yankee. Com equilíbrio, Babenco consegue fazer com que Milton Gonçalves e José Lewgoy ficassem no mesmo nível de William Hurt (Oscar de Melhor Ator pela atuação) e Raul Julia, sem falar, claro, na participação mais que especial de Sônia Braga. As sequências em que Hurt e Julia contracenam na cela são históricas em diálogos e afinação entre atores, pois, além de talentosos, nota-se que estão muito bem dirigidos.




- “Memórias do Cárcere”, de Nelson Pereira dos Santos (BRA, 1984)
Prêmio da crítica em Cannes e Melhor Filme em Moscou (quando o evento ainda era importante), este épico do cinema brasileiro é uma aula de construção narrativa, a qual dialoga metalinguisticamente o tempo todo com a obra de memórias escrita por Graciliano Ramos, quando este fora preso na vida real pelo governo Getúlio Vargas. Ainda, atuações impecáveis de Carlos Vereda, José Dumont, Tonico Pereira, os saudosos Jofre Soares e Wilson Grey e da jovem Glória Pires. Cenas memoráveis, como a “transmissão” da Rádio Libertadora dentro do quartel, o momento da deportação de Olga Benário e a ajuda dos presos a esconderem os escritos do  suposto livro, entre outras várias. 





- “Barrela: Escola de Crimes”, de Marco Antonio Cury (BRA, 1990)
Daqueles filmes que tem tudo para ser monótono, mas o roteiro, as atuações e a direção são tão bons que formam uma obra coesa. O texto teatral de Plínio Marcos se encaixa com densidade à adaptação cinematográfica, sustentada no jogo certo de distribuição das falas de cada personagem (todos MUITO nem construídos) e nas atuações intensas de cada um dos atores. São seis presos condenados a longas penas e confinados numa cela onde cada qual disputa seu espaço. A situação se torna mais angustiante quando junta-se a eles um jovem de classe média preso durante briga. Frustração, tristeza, humilhação, autoproteção. Plínio Marcos tece tudo isso numa teia em que coabitam o amor mais profundo e inalcançável ao abandono concreto e degradante.






- “Um Sonho de Liberdade”, de Frank Darabont (“The Shawshank Redemption” - EUA, 1994)
Junto com “Alcatraz”, disputa o posto de grande filme de prisão da história. Emocionante, toca em temas fortes como morte, amizade, religião, injustiça e desejos essenciais do ser humano. Em 1946, Andy Dufresne (Tim Robbins), um bem sucedido banqueiro, tem a sua vida radicalmente modificada ao ser condenado por um crime que nunca cometeu, o homicídio de sua esposa e do amante dela. É mandado para a Penitenciária Estadual de Shawshank, para cumprir pena perpétua. Lá, conhece muita gente, desde o corrupto e cruel agente penitenciário, o prisioneiro Ellis Boyd Redding (Morgan Freeman), com que faz amizade, e até Al Capone, que cumpria sua pena lá depois de ser pego por Elliot Ness. Figura na lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos pelo AFI.



- “Carandiru”, de Hector Babenco (BRA, 2003)
Outro de Babenco, este ainda mais imerso na questão prisional. Ao contrário de “O Beijo...”, entretanto, faz o movimento narrativo inverso: parte do ambiente social para o da prisão, estabelecendo uma permanente comotivação entre os dois espaços – física e psicologicamente. De narrativa moderna, faz com estes paralelismos um dos melhores filmes nacionais da primeira década dos anos 2000, estabelecendo diversos atores que se tornariam astros nos anos seguintes, como Rodrigo Santoro, Lázaro Ramos, Wagner Moura e Caio Blat. A história, baseada no best seller do médico e escritor Dráuzio Varella, culmina no fatídico Massacre de 1992. Filmaço.






Os próprios presos constroem a
narrativa no documentário.
- “O Prisioneiro da Grade de Ferro”, de Paulo Sacramento (BRA, 2003)
Brilhante documentário de Sacramento em que ele coloca os próprios presos a construir com ele o filme, numa cocriação que reforça o realismo documental da proposta. Utilizando as técnicas aprendidas em um curso de filmagem ministrado dentro do presídio, os detentos encarcerados no maior centro de detenção da América Latina, o Carandiru, documentam seu cotidiano, registrando as condições precárias nas quais sobrevivem. Filmado 10 anos após o Massacre do Carandiru, que custou a vida de mais de uma centena de detentos, mostra o quanto uma tragédia como esta promovida pelo Estado não se apaga com facilidade, haja vista as marcas inapagáveis nas pessoas e na sociedade.



- “Leonera”, de Pablo Trapero (ARG – 2008)
Do grande cineasta argentino Pablo Trapero, um dos maiores da atualidade, tem a peculiaridade de contar a vida dentro de uma penitenciária feminina, no caso uma para mães e grávidas sentenciadas. No caso de Julia (a bela e talentosa Martina Gusman), acusada de um crime sem provas, o filme mostra sua adaptação à nova realidade social, o que a transforma intimamente. Porém, seu desejo de fugir dali nunca esmorece, e é isso que a move. Não é o melhor de Trapero, mas guarda várias qualidades de seu cinema.





quarta-feira, 29 de maio de 2019

Música da Cabeça - Programa #112


Se em terras tupiniquins a cultura brasileira está na base do "juntos e shallow now", lá fora estamos muito bem, obrigado. Na semana em que Chico Buarque conquista o Camões de Literatura e o cinema nacional faz bonito no Festival de Cannes, nós, que sempre soubemos valorizar as “coisas nossas”, temos várias delas no programa de hoje. Além do próprio Chico em mais de uma dose, tem também a Velha Guarda da Portela, Baden Powell, Gilberto Gil e Jackson do Pandeiro. Mas tem lugar também pros estrangeiros Cocteau Twins, Ryuichi Sakamoto, Iggy Pop e mais. Isso e outras coisas culturais perfazem o Música da Cabeça de hoje, que vai ao ar às 21h, na culturíssima Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues – com muito samba, muito choro e rock ‘n’ roll.


quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Música da Cabeça - Programa #44



Prontos para a sua dose maciça de música de toda quarta-feira? Nós estamos. Vai ter hoje no Música da Cabeça a diversidade de sempre, o ecletismo de sempre, a qualidade de sempre. Quer saber por quê? Ryuichi Sakamoto, The Fall - Music, The Glove, Chico Buarque e George Harrison serve? É, tem tudo isso e ainda mais. Não dá pra perder, né? Recomendamos. É hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção, apresentação e prescrição: Daniel Rodrigues.


domingo, 7 de agosto de 2022

Caetano Veloso - “Estrangeiro” (1989)




“'Estrangeiro' é um grande disco (...). Foi feito em Nova Iorque e foi produzido por Arto, que eu conhecia desde que cheguei a Nova Iorque, em 1982 ou 83, e queria muito produzir um disco meu. Arto conhecia bem minha música, porque tinha vivido muito tempo no Brasil e adora o trabalho dos tropicalistas. Ele queria que aqueles procedimentos tropicalistas fossem conhecidos e reconhecidos internacionalmente (...) O 'Estrangeiro' tem também a marca muito forte do Peter Scherer - sempre a partir das coisas que eu estava fazendo, das ideias que vinha tendo - e de muitas ideias musicais do Arto: sempre resultado das conversas que tínhamos os três.” 
Caetano Veloso


Em “O Cru e o Cozido”, Claude Lévi-Strauss sustenta que todo compositor musical é perpassado pelos mitos os quais o definem como indivíduo em uma coletividade. “O mito da mitologia”, define. Esta acepção, articulada em 1964, parece se adequar a Caetano Veloso, que chega gloriosamente às oito décadas de vida. O mesmo antropólogo francês que Caetano diz ter detestado a Baía de Guanabara na música que dá título ao disco “O Estrangeiro”, de 1989, talvez tenha este conceito de um dos cartões-postais do Rio de Janeiro e do Brasil justamente por ser alguém de fora e distanciado da mitologia a qual não pertence. Não é nem a falta de elogio, e sim o fato de que este olhar estrangeiro dá vantagens as quais Caetano não só não contrapõe - embora discorde - como entende muito bem. 

Como em qualquer mitologia, porém, nem tudo é perfeito. Pode soar pouco festivo, mas a chegada de Caetano Veloso aos 80 anos simboliza um Brasil que nunca se realizou. Menos pessimista, que seja: uma promessa de Brasil. Caetano, tanto quanto alguns de sua dourada geração – Gil, Chico, Nara, Hermeto, Elis, Edu, Jards – mas mais do que todos eles em alguns aspectos, estetizou o Brasil assim como fizeram alguns dos ícones da nossa cultura: Villa-Lobos, Portinari, Machado de Assis e Mário de Andrade. E o fez, em grande parte, pela discordância. Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, num movimento constante de imersão e submersão, de identificação e distanciamento. Isso faz com que ponha no mesmo pentagrama axé music e microtonalismo, pop e vanguarda, e nos ensine a não só ouvir, como pensar essas diferenças/semelhanças para chegar a um fim maior: o âmago da própria mitologia. A dissonância aprendida na bossa nova de João Gilberto aplica em tudo sem nunca, sobretudo, fugir do embate. Ele, que discutiu com universitários esnobes e alienados no FIC de 1968; que se exilou por causa da Ditadura; que sempre disse o que pensava e não admite desaforo. 

“Estrangeiro”, um dos melhores discos da extensa obra do baiano, materializa em sons, letras e forma essa utopia tropicalista quase policarpiana de ser mito e mitologia ao mesmo tempo. A começar pela capa, reprodução da maquete concebida pelo Hélio Eichbauer para a peça "O Rei da Vela", do Oswald de Andrade, montada em São Paulo pelo Zé Celso Martinez Corrêa nos anos 60, pensada por Caetano quando este estava fora do Brasil. 

A faixa de abertura, igualmente, é uma daquelas grandes composições de Caetano em letra e música, e traduz a ideia dual do álbum, em que diversos ritmos se cruzam e se hibridizam em tonalismo e atonalismo, assonância e dissonância. O reggae conversa com eletrônico, que conversa com o batuque, que conversa com world music, que conversa com a art rock e o jazz contemporâneo. Naná Vasconcelos, no esplendor da maturidade, e Carlinhos Brown, já um grande entre os grandes, são dois dos principais contribuintes da sonoridade do disco, visto que integram, através de suas percussões universais, aquilo que há de mais visceral e de mais moderno em arte musical. Sem refrão, numa verborragia típica do seu autor, “O Estrangeiro” (“Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?/ Uma arara?/ Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara” ou “À áspera luz laranja contra a quase não luz, quase não púrpura/ Do branco das areias e das espumas/ Que era tudo quanto havia então de aurora”), reflexiona o ser brasileiro se colocando numa posição quase brechtiana de distanciamento e proximidade com o objeto. Até o videoclipe, dirigido pelo próprio Caetano, é um exercício de cinema de arte, extensão do experimental “O Cinema Falado”, único filme dirigido por ele três anos antes. E convicto de sua posição, ainda arremata: “E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento/ Sigo mais sozinho caminhando contar o vento”. A música, aliás, inaugura algo que se poderia chamar de brazilian-post-jazz, o que o próprio Caetano, que atribui a Gilberto Gil a criação não reclamada do “samba-jazz-fusion”, mostra-se ainda mais modesto ao também desdenhar tamanho feito. 

Videoclipe de "O Estrangeiro", de e com Caetano Veloso 


Não à toa, “Estrangeiro” é produzido por dois músicos além-fronteiras: os Ambitious Lovers Peter Scherer e Arto Lindsay – este último o qual, assim como Caetano, faz uma permanente ponte entre o nordeste brasileiro e cosmopolitismo, visto que norte-americano de nascimento, mas criado em Pernambuco. Ligados a cena do jazz M-Base de Nova York e a nomes ultramodernos como Ryuichi Sakamoto, Laurie Anderson, John Zorn e Brian Eno, Arto e Peter edificam a melhor e mais bem acabada produção da discografia de Caetano até então, algo que o músico não só repetiria a dose (“Circuladô”, de 1991) como serviria de base para revolucionar a música brasileira do início dos anos 90 inaugurando-lhe um novo padrão produtivo, a se ver por trabalhos marcantes como “Mais” e “Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão" (1992 e 1994), ambos de Marisa Monte, “The Hips of Tradition”, de Tom Zé (1992), e “Alfagamabetizado”, de Carlinhos Brown (1996).

Na sequência de “O Estrangeiro” vem o lindo pop afoxé “Rai das Cores”, que evoca as colorações sonoras tanto da canção-irmã “Trem das Cores”, composta por Caetano em 1982 para “Cores Nomes”, quanto outra ainda mais antiga: “Beira-Mar”, em parceria com Gil e gravada por este em seu primeiro disco, de 1966. A reiteração do “azul” como símbolo de beleza e pureza (“Para o fogo: azul/ Para o fumo: azul/ Para a pedra: azul/ Para tudo: azul”) dialoga com os belos versos finais da balada cantada em ritmo de bossa-nova pelo parceiro: “É por isso que é o azul/ Cor de minha devoção/ Não qualquer azul, azul/ De qualquer céu, qualquer dia/ O azul de qualquer poesia/ De samba tirado em vão/ É o azul que a gente fita/ No azul do mar da Bahia/ É a cor que lá principia/ E que habita em meu coração”. Já “Branquinha”, esta, aí sim, deixa de lado modos mais modernos para voltar à bossa-nova a qual Caetano nunca se desligou homenageando com graciosidade a então recente esposa Paula Lavigne, ainda hoje companheira e com quem ele teria dois filhos, Zeca e Tom, ambos músicos como o pai. Quão lindos, sensuais e apaixonados estes versos: “Branquinha/ Carioca de luz própria, luz/ Só minha/ Quando todos os seus rosas nus/ Todinha/ Carnação da canção que compus/ Quem conduz/ Vem, seduz”. E, mais uma vez ciente do deslocamento no mundo, ele diz: “Vou contra a via, canto contra a melodia/ Nado contra a maré”. 

Mais um grande momento de “O Estrangeiro”: “Os Outros Românticos”. Samba-reggae potente, a música discute os conceitos de modernidade e racionalidade propostos no livro “O Mundo Desde o Fim” do não apenas compositor, poeta e parceiro Antonio Cícero, mas também filósofo. Além disso, traz os teclados firmes de Peter, as guitarras abrasivas de Arto e a sonoridade dos tambores afro de Salvador, que tanto começavam a fazer sucesso àquele final de anos 80 com a Olodum e a qual o próprio Caetano se valeria bastantemente dali para adiante, como em “Haiti” (“Tropicália 2”, 1993), “Luz de Tieta” (trilha sonora de “Tieta do Agreste”, 1997), “Alexandre” (“Livro”, 1997) e “Ó Paí Ó” (trilha do filme, 2007). Afora isso, a letra, análise sociopolítica contundente com referência ao olhar “universal” do cineasta alemão Win Wenders em “Asas do Desejo” (“Anjo sobre Berlim”), é daquelas altamente poéticas de Caetano: “Eram os outros românticos, no escuro/ Cultuavam outra idade média, situada no futuro/ Não no passado/ Sendo incapazes de acompanhar/ A baba Babel de economias/ As mil teorias da economia”. Para emendar com “Os Outros...”, a ainda mais internacional “Jasper”, parceria de Caetano com seus produtores. Outro ponto alto do disco, afora a brilhante melodia de ares eletro-funk e afro-brasileiros, traz por trás do inglês do cantor belos versos como: “Tempo é tão leve como a água”.

Ainda mais autorreferente, a segunda parte do álbum começa com a tocante “Este Amor”, que se pode classificar como a “Drão” de Caetano. Assim como a clássica canção de Gil dedicada à antiga esposa quando da separação dos dois, em “Este Amor” Caê versa para Dedé Gadelha, com quem vivera quase 20 anos e tivera Moreno, outro talentoso músico, espelhando-a dentro do disco com a anterior “Branquinha”, feita para a atual mulher. Ao contrário da balada melancólica de Gil, no entanto, a de Caetano é um afoxé suavemente ritmado e um canto sereno de um homem maduro, entrando nos 50 anos, capaz de olhar para trás e enxergar sem mágoa a beleza do que se viveu. “Se alguém pudesse erguer/ O seu Gilgal em Bethania... Que anjo exterminador tem como guia o deste amor?”. 

Assim, espelhando-se mais uma vez na família de sangue e de vida, o disco prossegue com “Outro Retrato”. Se fez presentes Gal Costa, a irmã Maria Bethânia e Gil – também oitentão como ele em 2022 –, Caetano agora retraz a sua maior devoção: João Gilberto. Em ritmo caribenho, a música diz: “Minha música vem da música da poesia/ De um poeta João que não gosta de música/ Minha poesia vem da poesia da música/ De um João músico que não gosta de poesia”. Traços do arranjo de “Outro...” inspirariam canções futuras, como “Neide Candolina” e “"How Beautiful a Being Could Be", como os contracantos e a pegada pop sobre o ritmo latino. É o mesmo João que evoca, mas aqui junto de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em “Etc.”, melancólica e romântica como os primeiros sambas da parceria clássica da bossa nova. 

Caetano acompanhado de Brown e Moreno
na turnê de "Estrangeiro", em 1989
Quase fechando o álbum, a faixa que talvez tenha surpreendido até Caetano tamanha repercussão que fez: “Meia-Lua Inteira”. Primeira de autoria Brown com maior projeção popular, a música estouraria nas rádios depois de entrar na trilha de “Tieta”, uma das telenovelas de maior sucesso da Rede Globo, e roubar o protagonismo, inclusive, da canção-tema, que abria o programa. Na época, até poderia soar um tanto modístico aquele samba-reggae colorido como os que Olodum, Banda Reflexus e Luiz Caldas vinham fazendo. Mas Caetano é Caetano. Tropicalista, mais uma vez adiantava-se ao que a crítica supunha entender e fincava a bandeira das manifestações populares e urbanas. “Meia-Lua Inteira”, aliás, mesmo sendo Caetano um artista desde muito acostumado com as paradas, pode ser considerado o seu abre-alas para as grandes vendagens, o que ocorreria pelo menos mais três vezes com “Não Enche” ("Livro"), “Sozinho” (“Prenda Minha – Ao Vivo”, 1998) e "Você não me Ensinou a te Esquecer" (trilha de "Lisbela e o Prisioneiro", 2003).

Para desfechar, Caetano vai buscar, enfim, a própria mitologia. O poeta retorna ao seu âmago, à sua origem, às suas reminiscências da infância em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano, onde nasceu, com a brejeira “Genipapo Absoluto”. No livro “Sobre as Letras” (2003), Caetano diz que um dado da letra que lhe emociona é que essa canção fala de sua identificação com o pai (“Onde e quando é jenipapo absoluto?/ Meu pai, seu tanino, seu mel”). Mas declara, em seguida: “minha mãe é minha voz”. Quando canta os versos “Que hoje sim, gera sóis, dói em dós”, inclusive, ele o faz imitando a de Dona Canô. E outro tocante refrão: “Cantar é mais do que lembrar/ É mais do que ter tido aquilo então/ Mais do que viver, do que sonhar/ É ter o coração daquilo”. Ao citar a irmã Mabel em certo momento, também é possível fazer ligação com outra antiga melodia sua: “Alguém Cantando”, do disco “Bicho”, de 1977, igualmente uma faixa de encerramento e cuja voz, literalmente, não é a sua, mas da outra irmã do compositor, Nicinha.

Caetano, tão nativo quanto forasteiro, decifrou o Brasil nestas últimas oito décadas de vida e seis de carreira unindo alta e baixa cultura, provando por que, pela visão tropicalista, é possível, sim, levar o pensamento aprofundado a “quem não tem dinheiro em banco” e catequisar “as pessoas da sala de jantar”. Utopia? Pode ser, mas sua obra gigantesca e da qual “Estrangeiro” é um dos mais significativos exemplares, está aí para ser sorvida. “Todo mundo pode aprender tudo”, disse ele certa vez. Mais do que apenas misturar, a diferença de Caetano está na sua visão, uma visão para além do óbvio, para além da própria música e da poesia, visto que filosófica. Caetano, literato e intelectual, ensinou o Brasil a pensar-se. "As coisas migram e ele serve de farol"... Mito e mitologia, ajudou a fundar a nossa modernidade. Ele, que é o tropicalista mais convicto de todos, visto que dialoga com a mesma potência poética "a delícia e a desgraça" como escreveu sobre os estrangeiros americanos. O estrangeiro que canta, na verdade, é ele próprio, num país que nunca, de fato, se realizou. 

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FAIXAS:
1. “O Estrangeiro” - 6:14
2. “Rai Das Cores” - 2:37
3. “Branquinha” - 2:35
4. “Os Outros Românticos” - 4:58
5. “Jasper” (Caetano Veloso, Peter Scherer, Arto Lindsay) - 4:58
6. “Este Amor” - 3:26
7. “Outro Retrato” - 5:00
8. “Etc.” - 2:06
9. ”Meia-Lua Inteira” (Carlinhos Brown) - 3:43
10. “Genipapo Absoluto” - 3:22
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Música da Cabeça - Programa #146


Palhaçada isso de "noivado" com a cultura! Aqui, a gente é casado com ela! Muita, mas muita cultura no Música da Cabeça de hoje na figura de The Jimi Hendrix Experience, Ryuichi Sakamoto, Os Paralamas do Sucesso, Itamar Assumpção, Jamiroquai, Nei Lisboa e outros dignos representantes. Da MPB ao rock, da pop ao clássico: tem cultura pra dar e vender como sempre no MDC, Às 21h, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues (e, caramba: Santo Expedito não é São Cristóvão!).


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

domingo, 9 de janeiro de 2022

DOSSIÊ ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2021




O velho Wayne de olho no trono dos Beatles
Chegou a hora da verdade! A hora dos número. Mais um ano se foi e é chegada a hora de fazer aquele habitual levantamento dos álbuns que entraram para a seleta galeria dos Fundamentais do Clyblog. Lembrando sempre que, na verdade, a seção não tem por objetivo promover disputa ou qualquer tipo de comparação entre artistas e obras, mas a gente mesmo fica curioso para saber quais as marcas e quantitativos e aí, então, levantamos e, em forma de ranking, passamos para vocês. 

2021 foi o ano do jazz nos ÁLBUNS FUNDAMENTAISÁLBUNS. Das 29 obras destacas na nossa seção de discos, 11 foram do refinado estilo norte-americano. Se aproveitando desse predomínio, neste período, o craque Wayne Shorter encostou definitivamente no pessoal de cima. Ainda não alcançou os Beatles, que continuam liderando, mas, junto com seu companheiro de sopro, Miles Davis, que também chegou nas cabeças, já começam a botar uma certa pressão nos rapazes de Liverpool. A propósito da Terra da Rainha, curiosamente no último ano, não tivemos NENHUM artista britânico teve discos incluídos na nossa seção. as ações ficaram basicamente divididas entre norte-americanos e brasileiros, com destaque para o primeiro japonês na lista, o versátil Ryuichi Sakamoto.

No que diz respeito aos brasileiros, Caetano Veloso que dividia a liderança com Jorge Ben, agora toma a frente isoladamente por conta pela participação no disco "Brasil", com João Gilberto, Bethânia e Gilberto Gil. Mas  a disputa está tão apertada quanto no internacional e qualquer disco aqui, disco ali, no ano que chega, pode mudar o panorama.

Entre as décadas com mais obras mencionadas, os anos 70 continuam imbatíveis, embora o ano que aparece mais vezes seja o de 1986. Chama atenção que cada vez mais é inevitável que seja reconhecida a qualidade e se projete a relevância de trabalhos recentes, o que faz com que venham aparecendo com mais frequência, em maior número e cada vez mais fresquinhos, como foi o caso do recém lançado "Carnivore", do Body Count, que mal nasceu  e já figura entre os melhores.

Então, vamos aos números que é o que interessa. Chegou a hora da verdade!


  • The Beatles: 6 álbuns
  • David Bowie, Kraftwerk, Rolling Sones, Pink Floyd, Miles Davis e Wayne Shorter: 5 álbuns cada
  • Talking Heads, The Who, Smiths, Led Zeppelin, Bob Dylan, John Coltrane e John Cale*  **: 4 álbuns cada
  • Stevie Wonder, Cure, Van Morrison, R.E.M., Sonic Youth, Kinks, Iron Maiden, Lee Morgan e Lou Reed**: 3 álbuns cada
  • Björk, Beach Boys, Cocteau Twins, Cream, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Elton John, Queen, Creedence Clarwater Revival, Herbie Hancock, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Madonna, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, U2, Pixies, Dead Kennedy's, Velvet Underground, Metallica, Dexter Gordon, Philip Glass, Body Count, Faith No More, McCoy Tyner, Vince Guaraldi, Grant Green e Brian Eno* : todos com 2 álbuns
*contando com o álbum  Brian Eno e John Cale , ¨Wrong Way Out"
**contando com o álbum Lou Reed e John Cale,  "Songs for Drella"



PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Caetano Veloso: 6 álbuns*
  • Jorge Ben: 5 álbuns **
  • Gilberto Gil*  **: 5 álbuns
  • Tim Maia e Chico Buarque: 4 álbuns
  • Gal Costa, Legião Urbana, Titãs, Engenheiros do Hawaii e João Gilberto*  ****: 3 álbuns cada
  • Baden Powell**, João Bosco, Lobão, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Paulinho da Viola, Ratos de Porão, Roberto Carlos, Sepultura e Milton Nascimento**** : todos com 2 álbuns 

*contando com o álbum "Brasil", com João Gilberto, Maria Bethânia e Gilberto Gil
**contando o álbum Gilberto Gil e Jorge Ben, "Gil e Jorge"
*** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas"
**** contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto"
**** contando com os álbuns Milton Nascimento e Criolo, "Existe Amor" e Milton Nascimento e Lô Borges, "Clube da Esquina"



PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 3
  • anos 40: -
  • anos 50: 19
  • anos 60: 96
  • anos 70: 138
  • anos 80: 116
  • anos 90: 89
  • anos 2000: 13
  • anos 2010: 15
  • anos 2020: 2


*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1


PLACAR POR ANO

  • 1986: 22 álbuns
  • 1977: 19 álbuns
  • 1969 e 1985: 17 álbuns
  • 1967, 1972, 1973 e 1976: 16 álbuns cada
  • 1968 ,1970 e 1991: 15 álbuns cada
  • 1971, 1979, 1980 e 1991: 14 álbuns
  • 1965, 1975 : 13 álbuns
  • 1965 e 1992: 12 álbuns cada
  • 1964, 1966, 1987,1989, 1990 e 1994: 11 álbuns cada
  • 1978: 10 álbuns



PLACAR POR NACIONALIDADE*

  • Estados Unidos: 192 obras de artistas*
  • Brasil: 139 obras
  • Inglaterra: 114 obras
  • Alemanha: 9 obras
  • Irlanda: 6 obras
  • Canadá: 4 obras
  • Escócia: 4 obras
  • México, Austrália, Jamaica, Islândia, País de Gales: 2 cada
  • Japão, País de Gales, Itália, Hungria, Suíça, França, Bélgica, Rússia, Angola e São Cristóvão e Névis: 1 cada

*artista oriundo daquele país
(em caso de parcerias de artistas de páises diferentes, conta um para cada)

quinta-feira, 7 de julho de 2022

John Cale - "HoboSapiens" (2003)

 

“Eu tento encontrar coisas que me deixam desconfortável.”
John Cale

David Bowie carrega com justiça a alcunha de camaleão do rock por tudo que fez e representa. Porém, ninguém vai tão a fundo no trânsito entre o pop e o underground do que John Cale. Versátil e caleidoscópico, o ex-Velvet Underground, que chegou aos 80 anos em março, traz desde antes da formação da banda que ajudou a mudar a história da música no séc. XX as mais díspares referências musicais e artísticas, hibridizando-as seja com a naturalidade de erudito ou com a rebeldia de um roqueiro. Para além de Frank Zappa, maestro como ele mas ainda mais radical em suas fusões, Cale soube unir as duas pontas da funcionalidade humana: o orgânico e o instrumento – e ainda ser pop. O mesmo Cale que produziu discos clássicos de Patti Smith e The Stooges, que tocou viola para La Monte Young e John Cage, que embarcou na performance pop-art de Andy Wahrol e que deu as linhas para a geração punk é o mesmo que tem música em filme de “Shrek”, que faz trilhas sonoras de música renascentista e compôs baladas cantaroláveis para a voz de Nico.

Tamanha multiplicidade é tão difícil de se absorver que o próprio Cale só as conseguiu reunir todas a gosto depois de 50 anos de carreira. Após trabalhos das mais diferentes linhas – "Vintage Violence" (1969), pop barroco; "The Academy in Peril" (1972), modern classical; "Slow-Dazzle" (1975), proto-punk; “Church of Anthrax” (com Terry Riley, 1971), minimalismo; “Songs for Drella” (1989, com Lou Reed), art rock; “N'oublie Pas que Tu Vas Mourir” (1995), sonata –, "HoboSapiens", seu 13º da carreira solo, pode ser considerado o da síntese. O conceito está no próprio título: a ideia de ciência, de criação ("robô"), atrelada à uma consciência originária, aquilo que determina o saber da espécie ("sapiens"). Mas a sonoridade de “HoboSapiens” vai ainda além, visto que se vale de todas estas e outras referências anteriores e ainda as amalgama com o synth-pop e o experimental da modernidade.

A brilhante "Zen" abre com a qualidade sintética que é comum às primeiras faixas dos discos de Cale, que articula com habilidade a difícil química entre atonalismo e música pop para impactar de saída assim como fez com "Fear Is A Man's Best Friend" ("Fear"), "Child's Christmas In Wales" ("Paris 1919"), "My Maria" ("Helen of Troy") ou "Lay My Love" ("Wrong Way Up", com Brian Eno). O conceito "HoboSapiens", assim, é acertado no alvo: de cara, ouvem-se ruídos que parecem saídos da natureza. Porém, em seguida percebe-se que este som é manipulado por instrumentos eletrônicos, ou seja, não-natural. Este, por sua vez, transforma-se numa base, que mantém o clima denso e suspenso para entrar uma batida programada de acordes mínimos, suficientes para formar um ritmo funkeado.

Pop-rock de alto nível vem na sequência com "Reading My Mind" e “Things”, esta última, aliás, que Cale espelhará na segunda parte do disco com a sua versão B, “Things X”, mostrando que é incontrolável sua tendência velvetiano de “sujar’ a melodia. União de opostos. "Look Horizon", no entanto, volta a “problematizar”, injetando um clima soturno com uma percussão abafada e o tanger de seu instrumento-base, a viola, que acompanha a elegante voz do galês. Mas a criatividade transgressora de Cale não fica somente nisso. Lá pelas tantas, a música dá uma virada para um funk contagiante com lances egípcios, que dialogam com a letra: “Atravessando o Nilo/ A Terra do Faraó está desenterrando seu passado/ Os amuletos quebrados da história/ Espalhados em nosso caminho”. Assim como “Zen”, das matadoras do álbum.

O caleidoscópico Cale, que chegou aos
80 anos em março
"Magritte" novamente traz uma batida mínima, que apenas ajuda a formar a base para um cello, teclados em contraponto e um baixo escalonando, numa pegada parecida com temas já muito bem usados por Cale anteriormente, como “Faces and Names” (“Songs for Drella”) e “Cordoba” (“Wrong Way Up”). Resgatando outra figura histórica como é costumeiro (“Graham Greene”, "John Milton" e “Brahms” já lhe foram tema, por exemplo), em "Archimedes" Cale brinca com o gênero synth pop, que oferece um arranjo especial para a melodiosa canção. Mais orgânica, “Caravan” é um ótimo rock cadenciado, que antecede outra grande do álbum: "Bicycle". Com participação de Eno nos loops, os quais praticamente forjam o riff, que se forma sobre uma batida funk e um baixo pegando firme no grave. A letra? Para quê?! Apenas saborosos melismas, que acompanham o ritmo “Too-too roo-roo...” nas vozes de Cale e Daria Eno, filha do parceiro.

Cale não para, provando para os que desconfiavam à época do lançamento que o velho músico vinha com tudo após 7 anos sem um trabalho autoral. Com muita cara de Depeche Mode e da Smashing Pumpkins de “Adore”, "Twilight Zone" é um exemplo maduro do synth pop. "Letter from Abroad", a subsequente, contudo, é outra das destruidoras. Uma sonoridade típica árabe dá os primeiros acordes como que sampleados, visto que repetidos em trechos simétricos. Isso, para entrar um ritmo funkeado. Percussões, rosnados de guitarra, acordes soltos de piano, vozes que rasgam e se cruzam, coro em contracanto. Letrista de mão cheia, em “Letter...” Cale experimenta sua veia literata: “É uma pequena cidade esquálida com uma beleza tênue/ As molhadas frias manhãs são tão atraente/ Pessoas acordar de repente no meio da noite/ Muito desapontado”.

Para acabar, uma daquelas músicas que já saem grandiosas do forno: "Over Her Head". Com a amplitude sonora de outras de sua autoria, “Forever Changed”, de “Songs for Drella”, ou "Half Past France" ("Paris 1919"), prossegue com um piano bastante clássico e efeitos de guitarras até quase o final para, então, entrar a banda com tudo e terminar lá em cima sob os acordes os dissonantes da inseparável viola dos tempos de The Theatre of Eternal Music e Velvet Underground. Junção radical e inequívoca do rock com a vanguarda.

Tão versáteis como Cale? Poucos. Bowie, Byrne... Ryuichi Sakamoto talvez seja um caso, porém quase nunca como cantor front man. Quincy Jones é outro, senhor de todos os estilos da música negra norte-americana mas que, no entanto, também passa muito mais pela figura do compositor e produtor e, ademais, bem longe do indie. Os brasileiros Gilberto Gil e Caetano Veloso, idem: trânsito pelos mais diferentes gêneros, só que distantes da cena rock propriamente dita. Isso faz com que Cale seja, por todos estes motivos, único. Ele chega aos 80 anos de vida e quase 60 de carreira com uma obra tão vasta como a sua importância e seu cabedal. Como todo bom roqueiro, mantém acesa a chama do inconformismo. Por outro lado, acumula conhecimentos que circulam somente pela nobreza. Mas o que o diferencia é, justamente, a veia rocker: ao invés de harmonizar as inúmeras referências que absorve, ele as digladia, choca-as, embate-as, como que para provocar o estranhamento entre o orgânico e o instrumento, a consciência e a tecnologia, o inato e a ciência, o saber e a criação. Sua música, assim, encontra uma zona de perturbação que a torna improvável e seus métodos para evidenciar essa tese são os mais originais e transgressores. Por isso tudo, ele – e somente ele – pode ser chamado de um clacissista selvagem. Ou vice-versa.

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FAIXAS:
1. "Zen" - 6:03
2. "Reading My Mind" - 4:11
3. "Things"- 3:36
4. "Look Horizon" - 5:40
5. "Magritte" - 4:58
6. "Archimedes" - 4:40
7. "Caravan" - 6:43
8. "Bicycle" - 5:05
9. "Twilight Zone" - 3:49
10. "Letter from Abroad" - 5:10
11. "Things X" - 4:50
12. "Over Her Head" - 5:22
Faixa bônus da versão em CD:
13. "Set Me Free" - 4:32
Todas as composições de autoria de John Cale

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Daniel Rodrigues