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segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Mesma melodia, letras diferentes


O fato de apresentar o programa Música da Cabeça, na Rádio Elétrica, é meio que mera desculpa minha para ir à cata de listas. Sempre gostei de criá-las a partir das coisas que curto, das criteriosas às mais estapafúrdias. Uma dessas que me veio à mente para usar no programa se refere a músicas que têm a mesma melodia, mas letras diferentes. A parte musical e o arranjo podem ser idênticos, mas o que é cantado, não. Às vezes, até melodias de voz e cantores diferentes. Dois lados da mesma moeda ou - por que não? - do mesmo disco.

Numa rápida pesquisa de memória, o interessante foi perceber que essa prática é comum nos mais diferentes gêneros, culturas e locais. Seja no Brasil, nos Estados Unidos, na Alemanha, na Inglaterra ou até na Jamaica, não há quem resista em usar aquela base que ficou superlegal de um outro jeito, numa outra roupagem. 

Pra compor esta lista de 15 + 1 exemplos, ainda contei com a ajuda de meu irmão e parceiro de blog Cly Reis, que contribuiu com algumas das duplas de músicas as quais não tinham me ocorrido.

Tom Zé e Tim: ambos com duas duplas
de músicas na lista
Importante ressaltar que não valem músicas até então instrumentais que ganharam letra depois de um tempo, casos de “Valsa Sentimental” (de Tom Jobim, que, quando letrada por Chico Buarque, virou ”Imagina”) e “A Rã” (originalmente, “O Sapo”, de João Donato, que passou a ter esse novo título na letra de Caetano Veloso). Neste caso, aceitou-se como exceção quando uma delas é instrumental e a outra cantada, mas desde que pertençam a um mesmo artista e que este as tenha composto para um mesmo projeto.

Igualmente, não se incluem canções “reprise” ou de letra mesmo que diferentes entre si, mas que se tratam de duas partes da mesma, nem mesmo versões para idioma diferente do original feita por outro artista. Músicas “irmãs”, tipo “Blue Monday” e “586”, da New Order, ou “Crush with Eyeliner” e “I Took Your Name”, da REM, não cabem, nem muito menos aquelas que samplearam a “alma” do tema que a inspirou, como o rap norte-americano costuma fazer. Essas todas ficam de fora – quem sabe, guardam-se para uma futura outra lista...

Do blues ao samba, do industrial a soul, do shoegaze ao psicodelismo. Têm dobradinhas bem interessantes e variadas.


1. "João Coragem"/ "Padre Cícero" - Tim Maia
Em 1970, Tim estava gravando seu disco de estreia quando Nelson Motta aparece no estúdio e fica maravilhado com "Padre Cícero". Tanto que pediu para Tim e Cassiano alterarem a letra para a música entrar na trilha da primeira novela da Rede Globo, "João Coragem".

2. "Sister Midnight"/ "Red Money" - David Bowie
A fase berlinense rendeu coisas maravilhosas e simbióticas para Bowie. "Sister Midnight", composta por ele e Iggy Pop para abrir "The Idiot", de Iggy, de 1977, serviu para o próprio Bowie finalizar sua própria trilogia na capital alemã dois anos depois com outro título e letra.

O mestre da "preguiça" baiana sabia muito bem fazer sambas geniais com pouquíssimos versos, quando não quase repetidos. Aqui, o que Caymmi repete é a parte instrumental idêntica a ambas, mas com melodias de voz e letras totalmente diferentes entre si.

"Strange Brew", que abre o cláscico disco "Disreali Gears", de 1967, é tão boa que dá vontade de reescutá-la. Não precisa, pois Clapton/Bruce/Baker a põem no fim do disco, só que com outro nome e letra. 


5. "Mã""Nave Maria" – Tom Zé
Uma mais percussiva, a outra mais world music, mas ambas de abertura de seus discos "Estudando o Samba", 1976, e "Nave Maria", 1984) e sobre o genial riff do baiano de Irará.

6. "Teenage Lust"/ "Heat" - Jesus & Mary Chain
"Teenage Lust" é um clássico da banda que coroa uma fase inspirada, marcada pelo disco "Honey's Dead", de 1992. "Heat", por sua vez, está na coletânea de B-sides "Stoned and Detoned", de um ano depois.

Vindo de Moz, artista que produz muito, não seria estranho haver esse tipo de repetição. No caso, "Alma Matters", hit do disco "Maladjusted", de 1997, tem como sombra "Nobody..,", da coletânea "My Early Burglary Years", de 1998.

8. "Waiting""Do You do It?" – Madonna
No talvez melhor disco de Madonna, "Erotica" (1992), a ousadia de pôr um mesmo tema duas vezes, sendo a segunda cantada não por ela, mas pelos rappers Mark Goodman e Dave Murphy.

9. "Pocket Calculator"/ "Dentaku" – Kraftwerk
Totalmente iguais, não fosse uma ser cantada em inglês e a outra em japonês. Aí os alemães conseguiram fazer, pro disco "Computer World", de 1981, duas obras totalmente diferentes sendo a mesma coisa.

Quase iguais, não fosse o título e algumas partes da letra. Mesmo estando no mesmo disco, o clássico "Pet Sounds", de 1966, é tão bonita que não há nenhum problema em "reouvi-la" com pouca diferença entre uma e outra.

11. "Os Escravos de Jó"/ "Caxangá" – Milton Nascimento
A censura, que comeu praticamente todas as letras de "Milagre dos Peixes", de 1973, inclusive "Os Escravos de Jó", parceria de Milton com Fernando Brant, já havia abrandado um pouco anos depois quando Elis Regina gravou "Caxangá" e depois o próprio Milton.

12. "Graveyard""Another" – P.I.L.
A instrumental "Graveyard", de "Metal Box" (1979), é, literalmente, a "Outra" em "Commercial Zone", disco de sobras de estúdio da mesma época. Coisas da cabeça conceitual de John Lydon e sua Public Image Ltd..

13.  "Jimi Renda-se"/ "Dor e Dor" – Tom Zé
A mente inquieta de Tom Zé faz com que, mais de uma vez, ele revisite a própria obra. Assim como "Mã"/"Nave Maria", a metaliguagem pega nestas duas também, de 1970 e 1972 respectivamente.

14. "Slave to the Rythmn""The Fashion Show" – Grace Jones
O disco de Grace "Slave to the Rhythm", de 1985, em si, é todo cunhado sobre a mesma base, mas estas duas não não são iguais pela letra.


15. "With no One elseAround"/ "Pra Você Voltar" – Tim Maia
Tim não tinha vergonha de reaproveitar melodias suas mais de uma vez, mas aqui ele fez melhor: uma em inglês, para o arrasador álbum de 1978, e outra na língua de Camões, um ano depois ("Reencontro"), em que até o sentido das letras são totalmente diferentes.


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+1. "À Flor da Pele""À Flor da Terra" – Chico Buarque
O título é igual, "O que Será?", eu sei, mas o fato de o subtítulo ser diferente faz, com perdão da redundância, toda a diferença. Escritas por Chico para a trilha sonora de "Dona Flor e seus Dois Maridos", de 1976, uma inicia o filme e outra o encerra - e as letras são totalmente distintas.


cena final do filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos" - tema: "À Flor da Pele"


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Tono - "Aquário" (2013)



“Nessa madrugada, Alice Caymmi me deu um toque em seu Facebook: o novo disco do Tono, intitulado ‘Aquário’, finalmente entrou no ar para audição no Soundcloud. Pronto. Era tudo que eu precisava para... não dormir. Que coisa linda, que disco maravilhoso.”
DJ Zé Pedro




As coisas até que não andam tão mal em termos de música brasileira ultimamente. Se noutros segmentos o Brasil insiste no atraso, na música uma galera nova, cheia de referências e de cabeça aberta, vem surpreendendo positivamente esse que vos fala. Primeiro, a descoberta de Lucas Arruda, que já relatei recentemente num urgente ÁLBUM FUNDAMENTAL, jovem da soul-samba dono de uma criatividade e técnica diferenciadas. Agora, recomendado por minha antenada amiga Luciana Danielli, de Niterói (RJ), conheci a Tono. E que bela surpresa!
                         
A banda é do filho de Gilberto Gil, Bem Gil, violonista/guitarrista de mão cheia – e, ao que se nota, ótimo compositor também a exemplo do pai –, conta ainda com a doce voz de Ana Claudia Lomelino, o baixista Bruno Di Lullo – que já tocou com Gal Costa –, e Rafael Rocha na bateria e programação eletrônica. Com forte inspiração na turma Maravilha 8 (Moreno Veloso, Berna Ceppas, Kassim, Domenico, Daniel Carvalho, Pedro Sá e agregados), que vem ditando a MPB desde o final dos anos 90, a Tono, no entanto, não apenas repete uma fórmula. Aliás, até repete, mas a faz com personalidade e uma elegância ímpares. Se for comparar a sonoridade da Tono a um look de vestuário de moda, caberia muito bem dizer que eles são um “chic despojado”.

No seu terceiro disco da carreira (lançaram “Auge”, em 2009, e “Tono”, em 2010), “Aquário”, de 2013, a rapaziada apresenta uma sonoridade que mistura Tropicalismo, Clube da Esquna, jazz e eletrônica a uma serena psicodelia rock, quase hippie. Alternativo, indie, experimental, pós-rock: várias acepções podem ser dadas a eles que já foram classificados de “charme desarrumado” e até de “Indefinível”.

Belíssima, “Murmúrios” abre o disco numa bossa-dub com ares jazzísticos (um tanto Incognito e Stereolab), numa revisita à atmosfera melancólica de “Gestos”, de Amado Maita (do “gesto” ao “murmúrio”). A voz de Ana Cláudia é despretensiosa, leve, porém não desnutrida como a de uma Mallu Magalhães. Sem rebuscamentos, embora afinada e precisa. Os sons eletrônicos, bem retrô, se mantém o tempo todo junto aos instrumentos acústicos, interagindo-se, mesclando-se.  As letras, igualmente, bastante bonitas: “Como Vês” (“Como vês o amor vai desbotar/ As cores nas fotos que ele tocar...”), “Tu Cá, Tu Lá” (“Nem sempre é possível/ Perceber o infinito/ Como algo em que se/ Possa tocar/ Mas talvez acessível/ Seja a busca do profundo/ Precipício imprevisível que há...”) e “A Cada Segundo” (A Cada Segundo no mundo/  Dorme-se um sono profundo...) são exemplos.

Destaque para a versão de “Chora Coração”, de Tom e Vinicius, num arranjo cadenciado, quebrado e dissonante; a citada “Como vês”, música de Domenico e Di Lullo já muito bem gravada por Alice Caymmi e que aqui ganha um arranjo espacial e delicado, lembrando coisas de Rita Lee nos Mutantes ou o experimentalismo da obscura banda norte-americana The United States of America; “Do Futuro”, em que Ana Cláudia encarna uma moderna Nara Leão para entoar um samba-marcha hi-tech; e “Da Bahia”, em que o violão encantado do mestre Gil presenteia o grupo com seu toque, além do backing vocal e da própria melodia, de sua autoria, que carrega a assinatura do velho tropicalista.

É muito gostosa a sensação de ouvir a Tono. Parece que se está dentro d’água, no ritmo das ondas aquáticas e sonoras. Tudo muito audível, bem tocado, bem equalizado.  A produção do craque Arto Lindsay, há mais de três décadas conectado com a modernidade estética da MPB, amarra tudo num som pequeno e inteiro. Em termos musicais, lembra, de fato, a sina aberta pelo Tropicalismo desde Mautner, mas ainda mais fortemente a sonoridade do revolucionário "Recanto", de Gal (2012), o qual, por sinal, já se nutria de elementos explorados por Moreno/Kassim/Domenico desde “Máquina de Escrever Música”, de 2000 (vide a faixa “Assim”, que as semelhanças ficam bem evidentes). Um aquário de peixes bem alimentados e em evidente fase de crescimento.
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FAIXAS:
01. Murmúrios
02. Sonho com Som
03. Como Vês
04. Tu Cá Tu Lá
05. Chora Coração
06. Leve
07. Do Futuro (Dom)
08. UFO
09. Pistas de Luz
10. Da Bahia
11. A Cada Segundo

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OUÇA O DISCO



quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Toquinho & Maria Creuza – Teatro Bourbon Country – Porto Alegre/RS (20/08/2015)



A dupla homenageando Vinícius de Moraes
foto: Dulce Helfer
Como venho ressaltado aqui no blog, a temporada de show está ótima. Mais um destes belos espetáculos, que vi ao lado de Leocádia Costa e de minha querida Martha Becker, ocorreu no Teatro Bourbon Country, quando o cantor, compositor e violonista Toquinho e a cantora Maria Creuza se reuniram para homenagear Vinícius de Moraes. A ocasião – comemorativa aos 15 anos do escritório jurídico TozziniFreire de Porto Alegre, que patrocinou o show – foi especial. Isso porque a dupla havia se apresentado junto apenas em um espetáculo, justo no histórico show de 1970 que os reuniu com Vinicius e que deu origem a um dos mais celebrados discos ao vivo da MPB, “Vinicius de Moraes en La Fusa”, gravado em Buenos Aires. Depois, nunca mais pisaram num palco juntos.
Porém, felizmente, ambos estão ativos para poderem repetir o feito. O show, na verdade, não se restringia apenas ao repertório de Vinicius de Moraes, pois é mesmo comandado por Toquinho, este virtuose do seu instrumento que, como João Bosco e seu mestre Baden Powell, aprendeu não apenas a tocar mas também a cantar e, principalmente, compor (alinhando-se a uma seleta estirpe de compositores que vai de Liszt e Rachmaninoff a Jimi Hendrix e Louis Armstrong). Assim, “Toco” – como é carinhosamente chamado por Maria Creuza –, teve a “sorte”, segundo o próprio, de cocriar com outros grandes mestres da música brasileira, como Chico BuarquePaulo César PinheiroJorge Ben e o próprio Baden, autores que também aparecem no set-list.
 Maria Creuza, ainda com seu belo timbre mas de voz já um pouco cansada, faz boas participações no meio e no final. Foi ela quem comandou clássicos como “Você abusou”, “Se Todos no Mundo Fossem Iguais a Você” e “Eu Sei que Vou te Amar”, este, seu melhor momento. Juntos, cantaram outras pérolas: “A Felicidade”, “Tomara” e “Samba em Prelúdio”, de Baden (que promove na segunda parte um lindo contracanto com as vozes de ambos), autor este do qual Toquinho ainda tocou uma impressionante versão de “Berimbau”, do memorável "Os Afro-Sambas" (1966), em que o violão, de tão bem tocado, parecia realmente soar como o típico instrumento afro.
Toquinho, um mestre com seu violão
foto: Dulce Helfer
De resto, o show é todo de Toquinho. Simpático e conversador, ele contou histórias e comentou praticamente todos os números, fosse antes ou depois. Afinal, histórias dele, dos tempos de bossa nova e, principalmente, do “vivido” amigo Vinicius, não faltam. Uma destas foi a que deu origem a um de seus maiores sucessos, “Tarde em Itapuã”. Ele, na época adolescente, vira o poeta escrevê-la em sua casa em Salvador e se encantara com os versos. Só que a mesma estava prometida para outro gênio da música brasileira musicar: Dorival Caymmi. No entanto, Toquinho, ousado, roubou o papel e aproveito que voltava uns dias para São Paulo para criar a melodia. Na volta a Bahia, encontrou Vinicius desesperado atrás do seu escrito e, para aplacar sua fúria quando soube que tal havia sido surrupiado, Toquinho tocou-a ao violão para o mestre. Meia hora depois, mais calmo, Vinicius aceitou não repassá-la a Caymmi e assim nasceu um dos maiores clássicos da MPB.
 O show teve ainda momentos de bastante emoção, como nas interpretações de “A Casa” e “O Pum”, do infantil "A Arca de Noé", último projeto de Vinicius com Toquinho antes de morrer, em 1980, obra que permeia a infância de muita gente que estava ali – a começar pela minha e de Leocádia, que, inclusive, já escreveu sobre sua ligação com “A Arca...” aqui no blog. Na mesma linha, as tocantes “O Caderno” (preferida do próprio Toquinho, dele com Mutinho) e “Aquarela”, com sua letra lúdica e realista (“Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá/ O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar/ Vamos todos numa linda passarela/ De uma aquarela que um dia enfim/ Descolorirá.”), foram de levar às lágrimas. Como ele mesmo disse, o desafio de fazer música para os pequenos é se despir das complexidades harmônicas do adulto e se comunicar com as crianças sem subestimá-las.
 No seu tributo ao “poetínha” couberam ainda “Samba pra Vinicius” (“Poeta, poetinha vagabundo/ Quem dera todo mundo fosse assim feito você/ Que a vida não gosta de esperar/ A vida é pra valer/ A vida é pra levar/ Vinícius, velho, sarava”), dele e de Chico, “Chega de Saudade”, marco inicial da bossa nova em que deram vivas a João Gilberto, e, claro, as tão famosas parcerias com Vinicius: “Cotidianas n° 2”, "Como Dizia o Poeta” e a atualíssima “A Tonga da Mironga do Kabuletê”: “Você que lê e não sabe/ Você que reza e não crê/ Você que entra e não cabe/ Você vai ter que viver...”. Nem parece ter sido escrita nos anos 70... Pra terminar, “Regra três”, bis que fechou a noite.
 É muito bonito ver na ativa um verdadeiro representante de um período tão fértil da música brasileira, um cara que faz com propriedade a ligação entre os compositores dos anos 50 (Tom Jobim, Antonio Maria, Dolores Duran, Carlos Lyra, entre outros) com o período pós-bossa nova dos anos 60 e 70 (Chico, Baden, Elis Regina, festivais, tropicalistas) e, ainda assim, resgata a tradição dos violeiros e do choro, um dos estilos seminais do samba moderno. E mais digno ainda assistir eles homenageando Vinicius de Moraes, que revelou Maria Creuza e que, com Toquinho, principalmente, escreveu nada menos do que cerca de 130 canções, hoje eternizadas geração após geração. Toquinho teve sorte? Sim, mas, muita competência. Parafraseando o poeta: que nos desculpem os inaptos, mas talento é fundamental. E Toquinho tem de sobra.





segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

João Donato - "Quem é Quem" (1972)


“Senão ninguém cantava,
ninguém gravava.”
João Donato
sobre gravar pela primeira vez
músicas com cantadas por ele



Depois de ter atravessado os anos 60 vivendo na Califórnia, João Donato estava com saudades do Brasil. O cachê conseguido com os discos “A Bad Donato” e “Donato/Deodato“ (parceria com o também compositor e arranjador brasileiro Eumir Deodato e com participações de Airto Moreira, Randy Brecker e Ray Barreto) seria usado para pagar a passagem de volta. Chegou ao país como um nome das “internas” da bossa nova. Era um músico dos músicos, respeitado pelos seus pares mas pouco conhecido pelo público. Da convivência com o cantor Agostinho dos Santos, um grande incentivador de seu trabalho, nasceu a ideia de colocar letras nas suas músicas.

Assim, em 1972, surgiu “Quem é Quem”, disco que trazia a novidade de ter no repertório músicas com letras cantadas pelo próprio compositor, com destaque para “Até Quem Sabe”, “Mentiras” (as duas feitas em parceria com o irmão, Lysias Ênio) e “Chorou, Chorou” (com Paulo César Pinheiro).

Revigorado pela temporada americana, João Donato se sentia também mais seguro para dar às inspiradas melodias e letras os arranjos que, pela primeira vez, eram todos assinados por ele. Donato confessa que, na época, lembrava muito do seu amigo, o maestro Laércio de Freitas, um de seus principais incentivadores. “Ficava na dúvida sobre uma frase musical e perguntava: Laércio, é melhor isso ou isso? Ele respondia simplesmente: ‘Acredita!’”.

por Márcio Pinheiro

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FAIXAS:
1. Chorou, Chorou (Paulo César Pinheiro, João Donato) (2:40)
2. Terremoto (Paulo César Pinheiro, João Donato) (2:28)
3. Amazonas (Keep Talking) (João Donato) (2:10)
4. Fim De Sonho (João Carlos Pádua, João Donato) (3:39)
5. A Rã (João Donato) (2:31)
6. Ahiê (Paulo César Pinheiro, João Donato) (2:52)
7. Cala Boca Menino (Dorival Caymmi) (2:23)
8. Nãna Das Águas (Geraldo Carneiro, João Donato) (2:20)
9. Me Deixa (Geraldo Carneiro, João Donato) (2:18)
10. Até Quem Sabe? (Lysias Ênio, João Donato) (2:11)
11. Mentiras - com Nana Caymmi – (João Donato, Lysias Ênio) (4:15)
12. Cadê Jodel? (Marcos Valle, João Donato) (2:01)
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Ouça:
João Donato Quem é Quem



Jornalista gaúcho, Márcio Pinheiro é especialista na área de jornalismo cultural, principalmente literatura, história, televisão e música. Em duas décadas de profissão, passou pelas redações de Zero Hora, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, Gazeta Mercantil, RBS TV e TVCOM, além de ter colaborado com sites, jornais e revistas como Usina do Som, Jornal Musical, O Estado de S. Paulo, Showbizz, Placar e Revista Imprensa. Realiza trabalhos de redação e edição de textos para diferentes publicações e projetos em TV e cinema, tendo escrito o roteiro dos documentários “Mais uma Canção", sobre o cantor e compositor gaúcho Bebeto Alves, de 2013, e o premiado “Renato Borghetti - Quarteto Europa”, de 2010. Ocupa há cerca de 3 anos e meio o cargo de coordenador do Livro e da Literatura da Secretaria de Cultura de Porto Alegre.


segunda-feira, 9 de setembro de 2019

4ª Feira de Vinil Gira Música - Casa da Polônia - Rio de Janeiro/RJ (1º/09/2019)



O dias em que passamos Leocádia e eu no Rio de Janeiro foram invariavelmente lotados. Só coisa boa, mas lotados. Mas sempre se tem espaço para encaixar mais uma programação, ainda mais quando esta trata de música. Ou melhor: quando esta trata de música E discos, o que para um colecionador é um prato cheio. Minha mãe, sabendo de nosso gosto, havia avisado dias antes que ocorreria, no domingo, a Feira de Vinil Gira Música, na Casa da Polônia, no próprio bairro e avenida onde estávamos instalados, Laranjeiras. Pois que, voltando de um passeio no bairro Jardim Botânico neste dia, eis que cruzamos em frente à feira. Obviamente que descemos e fomos dar uma conferida, o que não só valeu a pena a título de passeio como, claro, de compras.

A feira trazia food trucks, bancas com artesanato e bijuterias e uma exposição sobre o célebre músico, arranjador e produtor Lincoln Olivetti, morto há  4 anos, infelizmente muito primária e amadora e que não dimensionava nem de perto a relevância do homenageado. Mas isso não era o mais importante e, sim, aquilo que nos levou até lá: os discos. Com expositores cariocas mas também vindos de Minas Gerais e São Paulo, a feira estava muito boa em termos de quantidade e variedade. Todos os gêneros musicais contemplados, mas principalmente rock, MPB e jazz. O nível dos expositores chamou atenção, uma vez que todos sabem muito bem o acervo que oferecem. Ou seja: os discos raros tinham preços que justificavam suas particularidades. Títulos como "A Bad Donato", de João Donato, "Stand", da Sly & Family Stone, o primeiro disco de Arthur Verocai, "Spirit of the Times", de Dom Um Romão, "Blue Train", de John Coltrane, ou o disco do próprio Lincoln em parceria com Robson Jorge, clássico da AOR brasileira, não saíam por menos que 500, 400, 350, 200, 180 Reais ou valores parecidos.

Galera percorrendo as prateleiras em busca "daquele" vinil
Clima descontraído e musical da Feira de Vinil na Laranjeiras
Não só vinil tinha na feira
Eu vasculhando as preciosidades da banda do Sonzera, um dos expositores
Pedaço da miniexposição sobre Lincoln Olivetti: deixou a desejar

Em compensação, vários balaios. E bons! Com muita variedade e, às vezes, até discos raros, era possível encontrar unidades a 10, 20 ou 30 Reais. E foi aí que me esbaldei, passando algumas horas na feira percorrendo as caixas com promoções enquanto Leocádia aproveitava outras atividades ou simplesmente me aguardava. Uma das atrações da feira seria a presença do cantor e compositor Hyldon, lenda da soul brasileira, que estaria à tarde autografando seu disco relançado, mas não ficamos para isso. Afinal, já estávamos muito bem alimentados com o que encontramos de variedade e qualidade de bolachões, inclusive esses, os que levamos para casa:



“Limite das Águas” – Edu Lobo (1976)
Edu tem vários discos solo cultuados, como “Missa Breve”, “Camaleão” e “Jogos de Dança”, mas não raro este aparece como o preferido do autor de “Ponteio”. Afinal, não tem como não adorar as parcerias como Capinan, Cacaso e Guarnieri, além do primor dos arranjos do próprio Edu e as participações de músicos do calibre de Oberdan Magalhães, Cristóvão Bastos, Joyce, Toninho Horta, Danilo Caymmi e o grupo vocal Os 3 Morais. Coisa fina da MPB.


“Libertango” – Astor Piazzola (1974)
Um dos gênios da música do século XX em seu disco mais icônico. Gravado em Milão, é a representação máxima do tango argentino moderno, tanto que as próprias faixas, assim como a que o intitula, trazem o termo “tango” no nome: Meditango, Violentango, Undertango, entre outras. De ouvir ajoelhado - ou tangueando.



“Brazilian Romance – Sarah Vaughn with Milton Nascimento” ou “Love and Passion”  Sarah Vaughn (1987)
A grande cantora norte-americana Sarah Vaughn, amante da MPB, recorrentemente voltava ao gênero. Depois de gravar discos como “Exclusivamente Brasil” e “O Som Brasileiro de Sarah Vaughn”, nos ano 70, em 1987 ela torna à sonoridade do Brasil por meio de um de seus mais admirados compositores: Milton Nascimento. E o faz isso com alto grau de requinte, haja vista a produção de Sérgio Mendes, os arranjos de Dori Caymmi e participações de gente como George Duke e Hubert Laws. Ela quase levou um Grammy de melhor performance feminina por este álbum.

“Merry Christmas, Mr. Lawrence (Music From The Original Motion Picture Soundtrack)”  Ryuichi Sakamoto (1983)
Tenho adoração por este filme intitulado no Brasil como “Furyo - em Nome da Honra”, e tanto quanto pela trilha sonora, escrita pelo genial Ryuichi Sakamoto. Que, aliás, atua neste filme de Segunda Guerra do mestre Nagisa Oshima, o qual conta no elenco (e só no elenco, o que acho legal também em nível de desprendimento) e como ator principal David Bowie em espetacular atuação. A faixa-título é não só linda como um marco das trilhas sonoras feitas para cinema.


“Stories to Tell” – Flora Purim (1974)
Terceiro disco solo de Flora e segundo dela em terras norte-americanas. Ou seja, vindo um ano após o seu debut “Butterfly Dreams”, no mesmo ano de“Hot Sand”, do então marido Airto Moreira, e dois da estreia com Chick Corea na Return to Forever, “Stories...” a consolida como a musa do jazz brasileiro. Ainda por cima tem Carlos Santana, George Duke, Ron Carter e o próprio Airto compondo a “bandinha”. E que voz é essa a dela?! 




“Amor de Índio” – Beto Guedes (1978)
Dos discos mais célebres da chamada “segunda fase” do Clube da Esquina. A galera tá toda lá: Milton, Brant, Toninho, Tiso, Venturini, Tavinho, Caetano e, claro, Ronaldo Bastos, produtor, compositor com Beto da faixa-título e autor da icônica foto dele enrolado no cobertor usada por Cafi na arte da capa.



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa e fanpage Gira Brazil - Gira Música

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Chico Buarque - "Vida" (1980)

O disco de uma vida



 

“Vida, minha vida/ Olha o que é que eu fiz?”
Versos iniciais da música “Vida”

“- Parecia que aquele disco branco marcava já um Chico mais sereno...
- Já vejo diferente. Vejo um disco bastante angustiado. Se a gente continuar dividindo o trabalho, você vai ter, desde ‘Construção’ até ‘Meus Caros Amigos’, toda uma criação condicionada ao país em que eu vivi. Tem referências a isso o tempo todo. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto.”
Entrevista de Chico Buarque à Rádio Eldorado, em 1989

No final dos anos 90, Porto Alegre presenciou um encontro histórico e inédito na Casa de Cultura Mario Quintana de duas figuras icônicas da cultura brasileira: Luis Fernando Verissimo e Chico Buarque. Mais do que as falas inteligentes e bem humoradas vindas de ambos, no enquanto, uma imagem captada pelas câmeras que registravam o bate-papo entre o gaúcho e o carioca ficou marcada em minha memória já que eu, igual a milhares de outros porto-alegrenses menos afortunados, contentava-me em assistir pela televisão por não poder estar presente devido à rápida lotação do evento preenchida dias antes. A imagem era a de um espectador da plateia, que carregava em seu colo um LP de Chico. Com a capa um tanto surrada pelos anos de fabricação e, certamente, constante uso na vitrola de sua casa, era com ela que iria enfrentar uma quilométrica fila após o evento para ganhar um autógrafo do autor. 

Não sei se conseguiu os valiosos garranchos, mas este moço, um homem de uns 30 e poucos anos, ouvia compenetrado a conversa daqueles dois geniais artistas, concentração esta que fazia com que a expressão do seu rosto se assemelhasse com a da capa do disco que portava como uma relíquia: um primeiro plano em tom sépia-esverdeado sobre um árido fundo branco do rosto de um Chico Buarque maduro, na faixa dos 40 anos, com o olhar igualmente sério e penetrante desenhado pelas mãos habilidosas de Elifas Andreato. Aquele lance fortuito em meio a uma atração infinitas vezes mais importante formava, contudo, uma duplicidade bastante simbólica para aquela situação. O jeito como o rapaz segurava o disco, com as duas mãos, com tamanha devoção e carinho, como que a um filho, como se realmente carregasse uma vida consigo, dava a dimensão da significância do encontro, da existência daqueles dois imortais e da obra de Chico. Da importância sentimental do referido disco para aquele fã e para outros igualmente a ele que ali estavam ou não. Quer dizer, meu caso.

O long play em questão completa 40 anos de lançamento neste conturbado 2020, e ouvi-lo hoje, como em todas as inúmeras vezes que o fiz ao longo dessas quatro décadas - tal como aquele rapaz com o qual me identifiquei -, redimensionam sua simbologia, sua importância, sua contundência. Não foi sem querer que Chico escolhera, em 1980, chamá-lo de “Vida”. 19º álbum de carreira do cantor, compositor, dramaturgo e escritor, é também o primeiro no qual ele pode, minimamente, falar sobre si e sobre os irmãos sufocados pelas ditaduras que assolavam a América naqueles idos ainda mais conturbados do que hoje. Chico vinha de anos de uma ferrenha perseguição pelos militares, com peças de teatro empasteladas, apresentações sabotadas, letras censuradas e projetos cancelados, o que prejudicava sobremaneira a concepção de qualquer obra por inteiro que intentasse. Foi assim durante todo os anos 70, a ponto de inviabilizar totalmente um disco de própria autoria havia uns 4 anos. O álbum de versões “Sinal Fechado”, de 1974, de título nada desavisado, e o “Disco da Samabaia”, de 1978, uma coletânea de sobras de alguém que não conseguia completar um repertório novo, são a materialização do mais próximo do possível de um artista que queria trabalhar. Mas não só: queria também a liberdade sequestrada.

Mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. Vladimir Herzog e Stuart Angel são assassinados pela polícia, celebra-se a missa ecumênica na Sé, a corrupção começa a corroer o Estado, a crise do petróleo afeta a economia mundial, dentre outros diversos fatores. Tudo isso faz com que o desgastado governo militar sinta a necessidade de afrouxar as mordaças. E para quem vinha de uma quase total censura, a Lei da Anistia, de 1978, era suficiente pra se celebrar. É neste impulso de renovação das esperanças democráticas que Chico decide exaltar a existência nesta obra em homenagem – mas também, em revisão – à sua própria e a de todos os brasileiros. Um disco que versa sobre o tempo, do começo ao fim. Um disco sobre vidas.

Detalhe da contracapa
do disco: a identidade
das digitais e da 3x4
de quando foi preso na 
adolescência, que lembra
as fotos de presos
políticos da Ditadura
A proposta é inequívoca, tanto que é ela, a memorável faixa-título, uma de suas melhores em todos os tempos, que abre o disco. Crítica e autocrítica, “Vida” já seria um marco na carreira de Chico pela inerente simbologia. Mas a canção, em letra e música, vai além. A melodia, num ritmo rumbado, é densa mas absolutamente sensível. Arranjada por Francis Hime, que lhe impõe uma orquestração dramática e ares melancólicos com o trompete de Maurílio nos primeiros acordes, tem ainda o violão erudito de Arthur Verocai e uma intensa percussão comandada por Chico Batera, que se exalta conforme o decorrer – conforme a “vida” passa. Já a letra é de uma honestidade e consciência tocantes, poucas vezes atingida na tão rica música brasileira: "Vida, minha vida/ Olha o que é que eu fiz/ Deixei a fatia/ Mais doce da vida/ Na mesa dos homens/ De vida vazia/ Mas, vida, ali/ Quem sabe, eu fui feliz”. Chico, amadurecido e fortalecido, questiona-se, e não apenas defende-se ou lamenta. 

O uso das metáforas relativas ao “mar” (“barco”, “cais”, “vela”) e ao “palco” (“cortinas”, “luz”) deixa clara a virada de pagina na biografia de Chico, em pleno curso de escrita – como, aliás, é a vida. “Infinitas cortinas com palcos atrás”. O futuro incerto, o destino a se perseguir. O artista que passou pelo autoexílio, o jovem bonito revelado nos festivais, o genial letrista, o herdeiro intelectual dos Buarque de Hollanda, o boleiro, o homem do teatro e do cinema, o parceiro de Tom e de Vinicius, o Julinho da Adelaide, o malandro, o pensador de voz política... Chico tornara-se definitivamente, pela força das vidas e das mortes, as verídicas e as simbólicas, um artista adulto, que deixava para trás todos estes Franciscos, mas abarcando-os como experiência vivida. É o que dizem os versos da canção: “Toquei na ferida/ Nos nervos, nos fios/ Nos olhos dos homens/ De olhos sombrios/ Mas, vida, ali/ Eu sei que fui feliz.”. A mínima permissão política faz com que Chico se permita "tocar nas feridas", denunciando do jeito que dava as barbáries promovidas pela ditadura ao fazer referência às torturas (feridas, nervos, fios, olhos). 

Os acordes finais de “Vida” dão este alerta tenebroso. Inconclusos e em tom grave, deixam uma angustiante sensação de que o pior ainda não havia acabado. Afinal, o retorno à liberdade seria “lento e gradual”, como anunciava a Anistia. Levaria ainda quase uma década para o Brasil se ver livre dos milicos no poder, e esse cenário fazia com que continuasse sendo difícil para o autor de “A Banda” compor um álbum autoral sem percalços. O jeito era fazer como vinha procedendo havia alguns trabalhos: se não tinha condições de montar um repertório completamente novo, a solução era aproveitar sua versatilidade e pescar aqui e ali composições espalhadas em outros projetos, como para o cinema e teatro, ou feitas para os amigos. E o mais incrível disso é que, assim como foi com “Meus Caros Amigos”, de 1976, onde teve de se valer de tal expediente, o resultado final é excelente. Dos 12 números de “Vida”, quase 100% têm origem anterior ou análoga ao disco. 

O artista em 1980,
 fotografado por Thereza
Eugenia: maturidade
A própria faixa-título é extraída da peça “Geni”, situação igual à canção seguinte, a sensível e melodiosa “Mar e Lua”. Como classifica o jornalista Márcio Pinheiro, a “melhor música sobre suicídio duplo da música brasileira”, narra de forma altamente poética o trágico destino de duas mulheres amantes cujo amor não é admitido“naquela cidade distante do mar” e que “não tem luar”. Chico falando de uma relação homossexual novamente, como já o tinha feito na censurada “Bárbara”, da trilha da peça “Calabar”, de 1973, cujo sulco dos vinis havia sido literalmente riscado pela censura no momento em que se pronunciavam os versos “de nós duas”... Agora, conquistava o direito de falar com todas as letras sobre um tema tabu sem cortarem-lhe violentamente a fala. Mais uma pequena vitória de uma democracia clamante.

Igualmente, na linha de reaproveitamentos, “Bastidores”, imortalizada na voz de Cauby Peixoto, o qual foi presenteado por Chico com a canção para seu álbum “Cauby Cauby Cauby”, daquele ano, e que se tornou o maior sucesso na carreira do tarimbado cantor. Chico, no entanto, mesmo sem o poderio vocal de Cauby, desempenha muito bem a própria criação, num samba-canção cadenciado e rascante. Impossível não fazer relação com a faixa inicial quando se ouve Chico cantar os famosos versos: “Chorei, chorei/ Até ficar com dó de mim”. Seria um momento de autocompaixão?

Das novas, destacam-se a bonita “Já Passou”, em que o hábil compositor harmoniza a extensa e cacofônica palavra “catatônico” com a maior naturalidade – assim como faria semelhantemente poucos anos mais tarde com outro vocábulo cabeludo, “paralelepípedo”, na emblemática “Vai Passar” –, e “Deixa a Menina”. Esta última, aliás, nem tão nova assim. É um samba em resposta a “Sem Compromisso”, de Geraldo Pereira, de 1956, que Chico havia cantado em seu último álbum de estúdio, “Sinal Fechado” - aquele em que, em protesto, decidira gravar apenas outros autores (inclusive, um tal de Julinho da Adelaide...). Aqui, Chico encarna o sambista malandro, mas com a classe composicional que lhe é peculiar num arranjo que inclui o clarinete de Botelho e o violão de Octávio Burnier. 

De um ano antes e ideada aos "caros amigos" da MPB4 para o indagador disco do quarteto vocal "Bons Tempos, Hein?!", “Fantasia” é mais uma pérola da então pequena safra recente by Chico Buarque. Se “Vida” havia iniciado o lado A do bolachão, esta, uma ode à liberdade individual e, em especial, aos trabalhadores do campo, traz versos que dizem muito sobre os Anos de Chumbo e a eterna necessidade de reforma agrária no Brasil: "Canta, canta uma esperança/ Canta, canta uma alegria/ Canta mais/ Trabalhando a terra/ Entornando o vinho/ Canta, canta, canta, canta”. Sem concessões, Chico expõe seu coração e admite sofrer, mas, assim como a música “Vida” propõe, acredita que a arte redima: “E se, de repente/ A gente não sentisse/ A dor que a gente finge/ E sente/ Se, de repente/ A gente distraísse/ O ferro do suplício/ Ao som de uma canção/ Então, eu te convidaria/ Pra uma fantasia/ Do meu violão”. O convite aberto é aceito por uma constelação de convidados que, literalmente, fazem coro com ele neste manifesto utópico: as manas Cristina Buarque e Miúcha, a sobrinha Bebel Gilberto, o ator Antônio Pedro, o parceiro italiano Sérgio Bardotti, os admiráveis músicos Danilo Caymmi e Markú Ribas, entre outros.

A romântica e triste “Eu te Amo”, em que divide os vocais com Telma Costa, nem parece mais uma reciclagem de quem padecia de pouco material. A luxuosa parceria com Tom Jobim (responsável pelo piano), “crème de la crème” da MPB capaz de legar obras como “Retrato em Branco e Preto” e “Olha, Maria”, não deixa perceber que se trata de uma encomenda do cineasta Arnaldo Jabor para a trilha sonora do filme de mesmo nome. E nem mesmo “De Todas as Maneiras” (dada a Maria Bethânia para seu Disco de Ouro "Álibi", de 1978) e “Qualquer Canção”, consideradas menores no cancioneiro de Chico, tão curtas que parecem vinhetas, passam longe de puxar para baixo a qualidade e a coesão do álbum. Afinal, ainda guardavam-se outras três obras-primas, a começar pelo semba “Morena de Angola”, prova de que Chico estava com a mão encantada se não para ele, para os outros. Igualmente escrita como presente, esta, para Clara Nunes, assim como “Bastidores”, também se transformou num grande sucesso e, assim como ocorreu com Cauby, virou um emblema da cantora mineira.

"Bye Bye, Brasil": marco do cinema
brasileiro genialmente traduzido em
música por Chico
Mais um rescaldo suntuoso: “Bye Bye Brasil”, canção que intitula o filme de Cacá Diegues, noutra contribuição para o cinema e para a filmografia do parceiro, tal como já o fizera em “Quando o Carnaval Chegar” (1972) e “Joana Francesa” (1973). Com maestria, Chico traça uma crônica do Brasil em fase de modernização com todas suas maravilhas e mazelas. Tal como num filme, a música (com coautoria de Roberto Menescal), lança diversos insights, às vezes, aparentemente desconexos, mas que dão condições de o ouvinte visualizar uma cena em que o cenário social, político e cultural são extremamente profundos. Desigualdade social, globalização, analfabetismo funcional, avanço da tecnologia, urbanização desenfreada, solidão e outros aspectos estão todos dispostos e interligados, dando destaque, principalmente, para a inexorável passagem do tempo. Seja na ligação telefônica, fadada a terminar conforme os minutos passam, seja na implacável ação da natureza, nada está sob o controle dos meros mortais. Tudo pertence ao destino. Quase terminando o disco, os versos “as fichas já vão terminar” se ligam imperiosamente ao clamor do tema-mãe do disco, “Vida”: “Arranca, vida/ Estufa, vela/ Me leva, leva/ Longe, longe/ Leva mais”.

Inteligentemente, Chico guarda para a estocada final mais um caso de reuso. “Vida” começava o álbum com uma reflexão na qual apontava a Ditadura como responsável por um caminho tão pedregoso (sem, contudo, abster-se), mas o engraçado baião “Não Sonho Mais”, feito para a trilha do filme “República dos Assassinos”, de Miguel Faria Jr., de 1979, e com a admirável flauta de Altamiro Carrilho, fecha-lhe o ciclo creditando a culpa, sim, aos opressores. Por isso, "engraçado" em termos, pois vai além da inocente brincadeira: trata-se, no fundo, de um desafiador recado aos militares. A história de uma esposa que, castigada pelo marido na vida real, relata-lhe um “sonho” em que ele é atacado impiedosamente pode ser facilmente entendida como uma revolta do povo contra o governo que lhe maltrata. “Vinha nego humilhado/ Vinha morto-vivo/ Vinha flagelado/ De tudo que é lado/ Vinha um bom motivo/ Pra te esfolar”. Detalhe: no sonho, ela estava entre os “esfoladores” que lhe rasgam “a carcaça”, descem-lhe “a ripa”, viram-lhe “as tripa” e comem-lhe os "ovo". “Tu, que foi tão valente/ Chorou pra gente/ Pediu piedade/ E olha que maldade/ Me deu vontade/ De gargalhar”, avisa ela sorrateiramente. Na linguagem chula, pode-se chamar de um “te liga!”.

"Vida" é mais que um disco: é o encontro das duas esferas que compõem a existência: a matéria e o espírito. Realidade e fantasia. Como um totem, suas músicas falam sobre dor e castigo nas mais variadas formas - do amor, da política, da sociedade, da força bruta. Não à toa a palavra "dó" aparece em três letras e "dor" em quatro, sem falar nos desdobramentos ("cravar as unhas", "toquei a ferida", "costas lanhadas", "ferro do suplício", "pediu piedade"). Referências a "sangue", igualmente, como as veias, o pulsar, o coração ou a própria expressão ou radical, ouvida em pelo menos três músicas: "Vida", "Eu te Amo" e "De Todas as Maneiras" - fora os outros sentidos figurados. Por outro lado, "Vida" é, ao mesmo tempo, uma obra de identidade. Aliás, como todo “álbum branco”, sendo este o que Chico intentou realizar e não o que foi obrigado como aconteceu anos antes quando, mais uma vez, a censura tolheu-lhe ao proibir a imagem da capa de seu “Calabar”, reintitulado como “Chicocanta” por força maior. "Vida", assim, é também sinônimo de resistência.

Hoje vendo o meu exemplar de “Vida”, tão surrado e usado como o do rapaz da plateia naquela longínqua tarde em Porto Alegre com Chico e Verissimo, fico imaginando o que ele, meu disco, já presenciou desse Brasil nas quatro décadas que se transcorreram desde que fora parido numa prensa industrial. As Diretas, a queda da ditadura, a redemocratização, duas Copas do Mundo, títulos e morte Senna, impeachments e golpes, Governo Lula, Brasil no Oscar, Lava-Jato, Fora Temer, Bolsonaro... Sim, porque aqueles olhos azuis da capa, mesmo que desenhados, enxergam! Permanentemente abertos, são testemunhas oculares da história recente deste Brasil que, como a vida, ainda está se construindo. Colcha de retalhos de alta qualidade, a feitura de "Vida" é quase milagrosa, tal outros discos célebres da música brasileira do período ditatorial como "Milagre dos Peixes", de Milton Nascimento, ou Gilberto Gil/68. Um milagre da "Vida", que, ao concebê-lo, Chico experencia o clássico dilema que ele próprio havia prenunciado: a gente quer ter voz ativa e no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. E não é assim a própria vida?

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Chico Buarque com Tom Jobim e Telma Costa - 
Vídeo de "Eu te Amo" (1980)

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FAIXAS:
1. "Vida" - 3:20
2."Mar e Lua" - 1:50
3."Deixe a Menina" - 2:53
4."Já Passou" - 1:50
5."Bastidores" - 2:27
6."Qualquer Canção" - 1:50
7."Fantasia" - 4:30
8."Eu Te Amo" (Chico Buarque/Tom Jobim) - 4:55
9."De Todas As Maneiras" - 1:50
10."Morena de Angola" - 3:15
11."Bye Bye Brasil" (Buarque/Roberto Menescau) - 4:40
12."Não Sonho Mais" - 3:45
Todas as composições de autoria de Chico Buarque, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues