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segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Os Paralamas do Sucesso - "D" (1987)



“’D’ é um instantâneo de uma banda lidando com uma recém-conquistada consagração em plena forma. O disco não encerra um ciclo artístico, pelo contrário, coloca possibilidades sobre a mesa, exala total frescor e antecipa as direções que o grupo seguiria, profundamente transformado por este aceno ao Brasil. Jamais eles seriam os mesmos.” Carlos Eduardo Lima, jornalista e historiador

Desde muito cedo tive uma ligação especial com Os Paralamas do Sucesso. Quando comecei a gostar de música, nos anos 80, ali pelos 7, 8 anos, era o Paralamas, entre os grupos surgidos no rock brazuca da época, que mais me faziam a cabeça. Gostava, claro, da Legião Urbana, dos Titãs, do RPM, do Capital Inicial e de outras. Mas o power trio formado por Herbert Vianna (guitarra e vocais), Bi Ribeiro (baixo) e João Barone (bateria) me transmitia algo a mais. Talvez já antevisse o meu gosto – que mais crescido passaria a tomar lugar igualmente especial em meu imaginário musical – pelos ritmos latinos e brasileiros, aos quais cedo souberam mesclar a seu rock potente e melódico. Tanto é fato essa ligação forte com a banda que o meu primeiro disco que ganhei, no Natal de 1986, foi um cassete de “Selvagem?”, daquele ano, disco no qual o Paralamas consolidava o discurso social e seu estilo de rock tomado de reggae e ska jamaicanos, mas também conectado com os ritmos Brasil e a América Latina.

Sucesso nas rádios, uma apresentação histórica no primeiro Rock in Rio e três discos lançados deram ao grupo a maturidade suficiente para os levar ao Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. Acompanhada do hoje “quarto Paralama”, o não à toa chamado João Fera, que estreava com eles nos teclados, a banda desembarcava no festival mais democrático e amplo do jazz mundial, repetindo o feito de outros brasileiros que marcaram época por lá, como Elis Regina, Gilberto Gil e João Gilberto. Se no passado estes foram os responsáveis por difundir a MPB na Europa, agora era a vez da mais completa banda do rock brasileiro dos anos 80 mostrar o que esta geração tinha de melhor. O resultado disso é o brilhante disco “D”, registro ao vivo que está completando 30 anos.

Com os quatro tocando tudo e mais um pouco sobre o palco, “D” tem repertório muito bem escolhido, valorizando, obviamente, a safra do último trabalho em estúdio, mas também incluindo hits, material novo e até surpresas. De “Selvagem?”, há as versões irrepreensíveis da filosófica “O Homem” (“O homem traz em si a santidade e o pecado/ Lutando no seu íntimo/ Sem que nenhum dos dois prevaleça...”) e do reggae-punk “Selvagem”, tão político e cru que poderia muito bem ser uma canção dos Titãs – tanto tem semelhança, que Herbert canta incidentalmente durante a execução "Polícia", clássico deles.

Ainda referentes à turnê do recente álbum, outras duas: "A Novidade", que reproduz o reggae suingado da original, imbatível diante das outras duas versões ao vivo que a música ganhou anos depois: uma, com o coautor, Gil, em 1994, num reggae arrastado, e a meio ragga, que os Paralamas gravariam em “Vâmo Batè Lata”, de 1995. Além disso, o primor da letra de Gil - com quem a parceria já denotava a intencionalidade de maior diversidade sonora da banda - merece sempre destaque: lírica, reflexiva, surrealista: “A novidade era o máximo/ Do paradoxo estendido na areia/ Alguns a desejar seus beijos de deusa/ Outros a desejar seu rabo pra ceia”. A segunda é a salsa pop "Alagados", um dos hits da época que, na esteira da MPB de protesto dos anos 70, denunciava as condições indignas de vida dos miseráveis, seja da vila dos Alagados, em Salvador, das favelas cariocas ("a cidade que tem braços abertos num cartão-postal") ou de Trenchtown, na Jamaica, tão próxima do Brasil em cultura e miséria. Não por acaso, neste número, Herbert cita versos de "De Frente Pro Crime", um dos sambas-denúncia de João Bosco e Aldir Blanc escritos nos anos 70.

“D”, porém, guarda também surpresas. Uma delas é a que abre o disco: o arrasador reggae "Será Que Vai Chover?” em sua primeira execução pública e cuja inspiração em Jorge Benjor é inequívoca, seja em “Chove Chuva” ou “Que Maravilha”. A presença espiritual do Babulina se confirma mais adiante durante o show, quando o trio manda uma interpretação histórica de "Charles, Anjo 45", comprovando o que a banda já sabia muito bem fazer desde seu primeiro disco: versar outros artistas.

Não faltaram, igualmente, os sucessos, como uma matadora "Ska" (com a participação do “abóbora selvagem” e amigo George Israel no sax), "Óculos" e "Meu Erro", esta última, que fecha este memorável show d'Os Paralamas do Sucesso em solo suíço. A banda lançaria ainda mais sete álbuns ao vivo ao logo da carreira. Porém, mesmo três décadas decorridas, nenhum se equipara à qualidade, pegada e espírito de “D”. Com os rapazes no auge, esta apresentação simbolizou o merecido reconhecimento à geração do rock brasileiro dos anos 80 no mundo. Em uma época de alta efervescência no universo do pop-rock, com gente do calibre de U2, The Cure, Sting, Madonna, Duran Duran, Bon Jovi, Prince, entre outros, em plena forma, o BRock mostrava que também merecia atenção pela originalidade inimitável da música feita no Brasil.

Os Paralamas do Sucesso - "Ska" 
(ao vivo em Montreux, 1987)



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FAIXAS:
1. "Será Que Vai Chover?" (Herbert Vianna)
2. "Alagados" (Música incidental "De Frente Pro Crime" - João Bosco, Aldir Blanc) (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna)
3. "Ska" (Herbert Vianna)
4. "Óculos" (Herbert Vianna)
5. "O Homem" (Bi Ribeiro, Herbert Vianna)
6. "Selvagem" (Música incidental: "Polícia" - Toni Bellotto) (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna)
7. "Charles, Anjo 45" (Jorge Ben)
8. "A Novidade" (Bi Ribeiro, João Barone, Gilberto Gil, Herbert Vianna)
9. "Meu Erro" (Herbert Vianna)


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OUÇA O DISCO


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Os Paralamas do Sucesso - "Selvagem?" (1986)


"Com o Selvagem a gente estava tentando nadar em cores nacionais.
E ter um retorno tão forte pra gente significou,
'Uau! Que legal que tenhamos encontrado esse grau de sintonia' "
Herbert Vianna

Os Paralamas do Sucesso eram uma bandinha bem simpática, interessante, gostosa de ouvir. Faziam aquele seu popzinho com toques de new-wave, com influências evidentes de ska mas nada muito mais que isso. Tinham até feito coisas interessantes como "Óculos", "Meu Erro", "Ska" que garantiram seu sucesso comercial mas não convenciam totalmente. Isso até darem uma virada que foi decisiva para sua carreira e para definir enfim uma identidade musical, diferenciando-os no cenário do BR-Rock dos anos 80. Com "Selvagem?" de 1986, o trio Herbet, Bi e Barone incrementava seu pop-rock com coloridos latinos, tropicais, caribenhos, baianos, brasileiros, africanos, caprichava nas doses de reggae e calibrava o seu ska. O que se ouviu então foi um disco admirável cheio de ritmo, balanço, embalo  e rock também, por quê não?
A diferença já pode ser notada pelo acréscimo de brasilidades: Gilberto Gil compõe em parceria com Herbert o reggae lento e gostoso "A Novidade" e empresta seus dotes de guitarrista na ótima "Alagados", talvez a melhor síntese de toda a mistura musical proposta no disco, cheia de protesto e crítica social. E reforçando este novo olhar brasileiro, trazem a balada "Você" de Tim Maia numa releitura pra lá de bacana.
"Teerã", bem polítizada, volta seu olhar sobre o oriente-médio despejando uma letra crítica e preocupada apoiada numa linha de baixo marcante e forte; a divertida "Melô do Marinheiro" confirma a vocação da banda para o bom-humor com uma letra engraçadíssima sobre um marujo acidental num reggae cantado quase como rap; e ambas, Teerã e o Melô, são repetidas no próprio disco em versões dub bem interessantes e muito bem trabalhadas no estúdio.
A excelente "O Homem" é séria, reflexiva e tem seu som incrementado com alguns efeitos de teclado; "A Dama e o Vagabundo" cai naquela classificação das 'simpáticas', numa musiquinha legal mas que, com certeza, é a mais fraca do disco; "There's a Party" é ska puro e embalado; e a faixa-título, "Selvagem" é uma pedrada com letra agressiva e guitaras distorcidas transitando na margem entre o ska e o punk. Simplesmente selvagem!
Sem dúvida um dos 5 álbuns mais importantes dos anos 80 junto com o "Cabeça Dinossauro" , o  "Dois" , o "Revoluções por Minuto" e o 'Nós Vamos Invadir sua Praia" e um dos mais importantes da música brasileira sendo extremamante influente para grande parte da geração pop rock brasileira dos início dos 90 para nomes como Skank, Cidade Negra, Jota Quest, o pessoal do Mangue Beat, e muitos outros.
A banda está na estrada este ano para a comemoração dos 25 anos do legendário álbum com apresntações tocando o disco na íntegra. A turnê passa aqui pelo Rio e a apresentação ocorre no Circo Voador neste sábado, dia 29 de outubro.

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FAIXAS:
1."Alagados" (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna)
2."Teerã" (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna)
3."A novidade" (Bi Ribeiro, João Barone, Gilberto Gil, Herbert Vianna)
4."Melô do marinheiro" (Bi Ribeiro, João Barone)
5."Marujo Dub" (Bi Ribeiro, João Barone)
6."Selvagem" (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna)
7."A dama e o vagabundo" (Bi Ribeiro, Herbert Vianna)
8."There's a party" (Herbert Vianna)
9."O homem" (Bi Ribeiro, Herbert Vianna)
10."Você" (Tim Maia)
11."Teerã Dub" (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna)

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Ouça:
Os Paralamas do Sucesso Selvagem?





Cly Reis

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Gilberto Gil - "Dia Dorim Noite Neon" (1985)

 


"Só quem não amar os filhos/ Vai querer dinamitar os trilhos da estrada/ Onde passou passarada/ Passa agora a garotada, destino ao futuro".
Da letra de "Roque Santeiro, O Rock"

Os anos 80 foram de instabilidade na carreira de Gilberto Gil. Assim como com seus companheiros de Tropicalismo Caetano Veloso e, ainda mais, Tom Zé – este, relegado a um ostracismo graças a Deus interrompido tempo depois – a década com a pecha de "perdida" parece ter influenciado com seu mau agouro os consagrados músicos da MPB. O BRock de Legião Urbana, Barão Vermelho, Blitz, Titãs, Lobão, RPM e outras bandas da época ocupavam as rádios, o que, somado com o que vinha de fora, quase não deixava espaço para o "produto nacional". 

Gil, exímio compositor que é, até emplacou sucessos no começo da década de 80. "Andar com Fé" e "Vamos Fugir" tocaram bastante, é bem verdade. Em compensação, seus álbuns passavam longe de terem a mesma regularidade e reconhecimento de crítica e público frente a seus clássicos dos anos 60 e 70, como o disco de 1968, "Expresso 2222", de 1972, ou a revolucionária trilogia "Re" ("Refazenda"/"Refavela"/"Realce", 1975, 1977 e 1979 respectivamente). Também, o baiano tentara, por duas vezes quase sequentes, entrar no mercado norte-americano. Ao contrário de alguns de seus pares, como Djavan, Ivan Lins, Tânia Maria e Milton Nascimento, ele não obteve o êxito esperado e se recolheu ao nicho já conquistado: o Brasil. O destino, no entanto, reservaria mais um abalo ainda maior a Gil naquele final de década de 80: o filho Pedro, baterista de sua banda desde 1984, se acidentaria de carro no Rio de Janeiro e morreria em janeiro de 1990. Aos 19 anos.

Mas os tropicalistas têm uma vantagem sobre outros artistas da música brasileira, mesmo para com os da mesma estirpe: eles ditam tendência. E se nos anos 80 a tendência estava posta pela indústria, então o negócio era passar a ratificá-la. Como já vinha ocorrendo desde os Mutantes, Gil e Caetano tornaram-se totens de certificação a toda a geração mais jovem, de A Cor do Som a Chico Science & Nação Zumbi. "Dia Dorim Noite Neon", lançado por Gil em 1985 para comemorar os 20 anos de carreira e que completa 40 em 2025, além de trazer excelentes composições, estabelece essa consciência quase benta do velho artista para com os súditos. Porque, sim: o rock brasileiro deve muito a MPB, ao contrário do que já se tentou negar ou esconder. Um privilégio que só o Brasil tem, mas algo desqualificado pela imprensa por muito tempo.

A bela vinheta de abertura e encerramento, "Minha Ideologia, Minha Religião", traz o violão dedilhado de Gil e seu vocal acompanhando as vozes infantis em coro, que cantam uma prece universal de pureza aos deuses para iniciar a jornada – e, lá na última faixa, agradecer pela mesma. Logo na sequência, vem o hit do disco, o reggae "Nos Barracos da Cidade", um canto de contestação social de um Brasil recém saído da ditadura. “Barracos”, seu subtítulo, abriria também portas a outra música com características parecidas e de ainda maior sucesso, que é "Alagados", marco do pop rock brasileiro, gravada pelos Paralamas do Sucesso com Gil um ano depois no mesmo estúdio, Nas Nuvens.

Sem muito respiro, Gil emenda o rockasso "Roque Santeiro, o Rock", um hard rock enfezado de dar inveja a muita bandinha poser que esteve no Rock in Rio naquele ano. Gil que, aliás, havia feito uma apresentação histórica no festival meses antes com a mesma banda mas ainda com o repertório do disco anterior, "Raça Humana". Na música em questão, a excelente produção do mutante Liminha dá protagonismo à bateria potente de Pedro Gil e à guitarra de outro e original mutante, Sérgio Dias, sintonizado com a sonoridade que o vanguardista produtor norte-americano Bill Laswell estava se apropriando e que cristalizaria no referencial "Album", da Public Image Ltd., de um ano depois. Ou seja: era o auge do rock'n’roll na mídia dos anos 80.

Gil e o filhão Pedro, falecido anos depois, mas 
fundamental para a atmosfera rocker de "Dia Dorim..."
Captando todas essas pulsões, inclusive o sucesso popular da novela de Dias Gomes de mesmo nome que rodava à época na Globo, Gil se vale de sua experiência e visão tropicalista para escrever uma música altamente simbólica para aquele período. Ele sintoniza, com olhar sábio, generoso e até paternal aquilo que a juventude ansiava, do esporte radical a uma nova compreensão da religiosidade. ”Deixa ele tocar o rock/ Deixa o choque da guitarra tocar o santeiro/ Do barro do motocross/ Quem sabe ele molde um novo santo padroeiro", diz a letra. Tudo isso, claro, simbolizado na potência do rock. O filho Pedro, aliás, é fundamental neste processo. Rapaz cheio de vitalidade, foi ele quem motivou o pai a entrar na onda roqueira. Gil identificava nele um representante daquela geração a qual faz referência na música, como os Paralamas, Ultraje a Rigor, Titãs e Lobão. Era como se dissesse: "Meus filhos musicais, eu abri caminho pra vocês lá atrás. Agora, é com vocês, mas eu estarei aqui, sempre perto".

Atentando também à cena pop do momento de nomes como Marina, Zizi Possi e Vinícius Cantuária, Gil diminui a rotação e traz a bela 'Seu Olhar", que conta com a guitarra do "Paralama" Herbert Vianna antes deste se tornar seu parceiro em "A Novidade", o que ocorreria meses depois no celebrado "Selvagem?", terceiro disco da banda. A faixa antecede a bossa-nova introspectiva "Febril", das melhores e mais desconhecidas canções do repertório gilbertiano. Espécie de reverso de 'Palco", que exorciza os males do mundo no instante sagrado do encontro do músico com o público, "Febril", ao contrário, revela o lado solitário da existência do artista, a qual pode imperar mesmo diante de uma vasta plateia. "Tanta gente, e estava tudo vazio/Tanta gente, e o meu cantar tão sozinho". Gil e sua profundidade capaz de revelar o avesso das coisas.

A próxima faixa vem noutra sintonia, mas sem perder coerência com a atmosfera pop do álbum: o french-afoxé "Touches Pas A Mon Pote". Noutra excelente produção de Liminha, Gil, dono de um francês impecável, ressignifica, nos ritmos essencialmente afro-brasileiros, a África francófona, ou seja, Senegal, Benin, Costa do Marfim, de onde parte dos escravos vieram para o Brasil e a sua Bahia séculos antes. Esta primeira aproximação simbólico-sonora Brasil-França de Gil, vista em uma série de canções dele a partir de então, o próprio redimensionaria 23 anos depois em outra música igualmente cantada na língua de Hugo (mas também de Mbougar Sarr): "La Renaissance Africaine", originalmente do disco “Banda Larga Cordel”.

O lado B do vinil começa com mais uma agitada, mas desta vez sob a batida do funk: "Logos Versus Logo". Sob inspiração da sonoridade típica do pop soul da época de Prince, Marcus Miller, Patti LaBelle e outros artistas – bateria eletrônica, baixo em slaps, guitarra suingada e ritmo soul –, Gil aborda o papel de resistência do poeta no mundo capitalista, problematizando a questão com poesia e lucidez. Outra música que, assim como “Febril”, é de suas melhores mas também das mais esquecidas. E que bela letra: "E o bom poeta, sólido afinal/ Apossa-se da foice ou do martelo/ Para investir do aqui e agora o capital/ No produzir real de um mundo justo e belo". Só que Gil não se presta a simplesmente copiar o som da moda tocado nos Estados Unidos: ele o enriquece. Como poucos ousavam fazer naqueles idos de embate "rock x MPB", o baiano, do meio para o fim da faixa, adiciona-lhe percussões de samba, fundindo de forma empolgante o ritmo mais brasileiro de todos ao groove do funk. Pouco tempo depois, Lobão, Os Engenheiros do Hawaii e The Ambitious Lovers fariam semelhante. 

Com a autoridade de um dos pioneiros do reggae no Brasil, Gil traz um outro ainda mais raiz do que “Barracos”: “Oração Pela Libertação da África Do Sul”. Mais uma de teor espiritualista mas que, desta vez, clama por outro problema social que o mundo vivia naquele então, que era o Apartheid na África do Sul, o regime de segregação que retirou os direitos da população negra do país. Valendo-se da força de resistência e denúncia que o ritmo do ídolo Bob Marley carrega, Gil torna a atuar politicamente através da música, unindo-se, neste caso, ao movimento global de solidariedade com a luta anti-Apartheid, que aumentou a conscientização sobre a injustiça dessa política e ajudou a impulsionar a mudança 5 anos depois com a queda do regime.

Voltando ao pop, na sofisticada “Clichê Do Clichê” Gil conta com a parceria do já mencionado amazonense Vinícius Cantuária, à época estourado nas rádios com o hit “Só Você”. Ligações com “Touches...” nas diversas referências à cultura francesa, como Brigitte Bardot, Jean-Paul Belmondo e o cinema francês. Quase fechando o disco, a música que justifica a referência à personagem Diadorim do título: “Casinha Feliz”. Esse doce xote sertanejo (visivelmente uma inspiração para “Madalena”, gravada com sucesso por Gil em “Parabolicamará”, de 1992) contém os versos motivados pelo universo de Guimarães Rosa: “Onde resiste o sertão/ Toda casinha feliz/ Ainda é vizinha de um riacho/ Ainda tem seu pé de caramanchão”. E completa: “De dia, Diadorim/ De noite, estrela sem fim”.

Encerrando, outra belíssima composição, esta, do amigo Jorge Mautner. “Duas Luas” fecha com a poesia lírica e estelar própria do “maldito” num ijexá moderno, a se ver pelo elegante sax solo de Zé Luis. ”Estou adorando andar pelas ruas/ Como quem não quer nada/ Debaixo do sol/ Debaixo das luas/ Que são mais de duas”, numa referência às luzes de neon que também compõe o título deste disco precioso.

Num período em que vinha um tanto inconstante, “Dia Dorim Noite Neon” ajustou a rota e elevou novamente a régua de Gil diante da própria obra. E muito se deve ao vigor contagiante de Pedro Gil, que deixou este plano bem cedo, mas não antes de reenergizar seu próprio pai com o espírito do rock. Vieram, na sequência, “O Eterno Deus Mu Dança”, de 1989, álbum de estúdio em que aproveita algumas receitas do antecessor, a trilha do filme “Um Trem para as Estrelas”, em inédita parceria com Cazuza, e dois ótimos discos ao vivo: “Live in Tokyo” e “Gilberto Gil em Concerto”, todos os três de 1987. Mas “Dia Dorim...” pode tranquilamente ser considerado seu melhor trabalho em toda aquela década. Antenado com seu momento histórico em letras, melodias, atmosfera e sonoridade, mas sem soar datado como muita coisa dos anos 80 – a começar pelo próprio álbum anterior, “Raça Humana” –, o disco serviu, inclusive, para ajudar a quebrar preconceitos entre música popular e o então fortalecido rock, como se o primeiro fosse coisa de velho e o segundo de jovens. Sem divisar. O Rappa, Planet Hemp e Skank são fruto dessa mentalidade arejada nos anos 90. 

Gil provou que, como diz na vinheta do disco, sua forma de pensar/ser é aceitar a impermanência das coisas e conectar-se à espiritualidade. No caso, a igreja do rock. "Outrora, o reino do Pai/ Agora, o tempo do Filho com seu novo canto." Esse tal de rock'n'roll pode até ser coisa do diabo, mas também sabe muito bem ser divino.

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FAIXAS:
1. “Abertura: Minha Ideologia, Minha Religião” – 0:26
2. “Nos Barracos Da Cidade (Barracos)” (Gilberto Gil, Liminha) - 4:11
3. “Roque Santeiro, O Rock” - 4:25
4. “Seu Olhar” - 4:02
5. “Febril” - 3:41
6. “Touches Pas A Mon Pote” - 3:45
7. “Logos Versus Logo” - 3:05
8. “Oração Pela Libertação Da África Do Sul” - 3:28
9. “Clichê Do Clichê” (Gil, Vinicius Cantuária) - 4:20
10. “Casinha Feliz” - 3:14
11. “Duas Luas” (Jorge Mautner) - 3:32
12. “Final: Minha Ideologia, Minha Religião” – 0:25
Todas as composições de autoria de Gilberto Gil, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:
Gilberto Gil - "Dia Dorim Noite Neon" 


Daniel Rodrigues

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

The Police - Estádio Maracanã - Rio de Janeiro / RJ (08/12/2007)


Se tem um cara que tem um agente bom, uma gravadora atuante, uma retaguarda comprometida, é o Sting. Que ele é um baita músico, isso não há dúvidas, mas que ele nunca foi do tamanho que a promoção dele o faz, isso temos que concordar. Tá certo, lá, que foi vocalista de uma banda de sucesso, tá bem que tem carisma e tal, mas o que fizeram na primeira vinda solo dele ao Brasil, em 1987, foi algo, assim, de um Elvis, de um John Lennon, de um Michael Jackson! Tinha boa circulação, boa aceitação, reconhecimento, mas não tinha bola pra lotar um Maracanã!

Só que, na ocasião, rádios, TV's, jornais, todo tipo de mídia, divulgaram tão insistentemente aquela turnê, enaltecendo tanto o artista, que todo mundo, mesmo quem mal conhecia, queria ir no show do cara. Por extensão, promoviam o recém lançado álbum "...Nothing Like The Sun", um disco interessante, mas nada mais que regular, um tanto cansativo em seu formato duplo, que trazia alguns hits, é verdade, mas que cativara muito a brasileirada, em especial, pelo fato de Sting cantar uma das canções em português em português, "Frágil", sem falar numa visita a uma tribo indígena, cocar na cabeça, foto com Cacique e tudo mais. 

O resultado dessa forçação toda foi Sting lotando estádios pelo Brasil, inclusive o gigantesco Maracanã, sem que, grande parte do público conhecesse sequer metade de suas músicas, mesmo as do tempo de Police, e quase nenhuma de sua, então recente, carreira solo. Pra ele, no fim das contas, deu certo. O público é que ficou meio, assim, "o que é que eu tô fazendo aqui?", e depois , em casa, o "e, gora, o que é que eu faço com esse disco?".

Introduzi com tudo isso para chegar ao show do The Police, em 2007, que foi mais ou menos a mesma coisa. Tá certo que a banda fez muito mais sucesso que a carreira solo de seu líder e vocal mas, mesmo em sua melhor época, nunca foi banda de arena, nada assim de apelo tão forte, idolatria para deslocar multidões. Pra se ter uma ideia, em seu auge, em 1982, sequer encheram o Maracanãzinho. 

No entanto, contra tudo isso, marcaram o evento para o Maracanã.

E, de novo, o pessoal da retaguarda fez a lição de casa: começou a divulgar meses antes, insistiu, botou outdoors, conseguiu levar de novo o Police às rádios, refrescou a memória de eventuais desinteressados que viveram na época e que resolveram reviver aquilo, e plantou uma curiosidade e uma certo estímulo em um público que sequer conhecia o grupo. De minha parte, fazia parte dos que tinham ouvido aquilo nos anos 80, gostava o suficiente para ir num revival da minha época, embora não entendesse muito bem como uma banda com um apelo nada mais que médio pudesse encher um dos grandes estádios do mundo. Mas...

Mas o fato é que o esforço da produção valeu e o Maracanã, se não encheu, não fez feio de público.

Muito bom show!

Banda competentíssima!

Lembro de ficar de olho ligado, especialmente, no baterista Stewart Copeland, que admiro demais, e em sua performance e desenvolvimento em cada canção. Mas Sting também é fera, é claro, manda muito bem no baixo e tem um dos vocais mais marcantes do rock, sem falar em Andy Summers que sempre deu conta do recado numa boa, e no show, em momentos solo, até superou minhas expectativas.

De quebra, ainda teve Paralamas do Sucesso, na abertura, uma ótima escolha considerando a conexão muito próxima entre o som deles com o do Police, e uma excelente atração e entretenimento para o público, antes do evento de fundo, ao contrário do que costuma acontecer quando a gente só quer que o show de abertura acabe logo.

Curioso desse show é que eu trabalhei nos bastidores do evento o dia inteiro e poderia tê-lo assistido sem custo e em posições mais privilegiadas do que a que fiquei no estádio. Como a empresa que eu trabalhava, na época, faria montagem de infra-estrutura, bares, divisórias, etc., eu tinha a possibilidade de ficar no grupo da manutenção. Até já tinha o ingresso, comprado com bastante antecedência, mas poderia pedir para entrar na escala da noite, venderia o ingresso e ainda faria algum lucro. Mas era tudo muito complicado. Tinha o ingresso da minha esposa também, eu teria que encontrá-la lá dentro e talvez conseguir uma credencial para ela para os setores privados sem falar que eu poderia ser chamado a qualquer momento por causa de um problema com funcionário ou um conserto qualquer ... Ah, quer saber: a melhor coisa era entrar pelo portão, passar pela roleta, sentar na arquibancada, comprar uma cerveja e desfrutar do show.

The Police- Rio de Janeiro (08/12/2007)
show completo


Cly Reis

sábado, 9 de junho de 2018

O Rappa - "Rappa Mundi" (1996)





"O futebol faz parte da cultura nacional não é à toa. 
É um esporte que representa pra caramba
a maneira que a gente vive.
O que é?
Você driblando as atrocidades,
as condições impróprias que a gente tem."
Falcão, vocalista



O rock nacional dos anos 80 já começava a dar sinais de desgaste. Cazuza já tinha morrido, Renato Russo agonizava em público e sua doença refletia nos discos da Legião, Lobão começava a perder o rumo, os Titãs perdiam integrantes e a identidade, os Engenheiros se afastavam do grande público e, só os Paralamas, mesmo com discos um tanto irregulares, tenham conseguido sustentar o sucesso comercial e o interesse do público. Nesse ínterim, naquele início de anos 90, um bom time de novas bandas nacionais começava a dar as caras vindas de diferentes lugares do Brasil e trazendo sonoridades e propostas interessantes: os calangos do Raimundos e seu hardcore irreverente e desbocado; os mineiros do Pato Fu com seu bom humor e criatividade; o pessoal do Skank, também de Minas, apresentando com um pop gostoso e contagiante; também das Gerais o Jota Quest com seu pop-soul, estes já um pouco mais apelativos comercialmente; os recifenses do Mangue-Beat misturando sons regionais com peso e tecnologia; e no Rio, O Rappa, um pessoal que fundia reggae, com hip-hop, com soul, com MPB, utilizando-se de peso de guitarras distorcidas e elementos eletrônicos como samples e batidas programadas. A banda já havia aparecido bem com seu álbum de estreia, de mesmo nome, de 1994, chamando atenção, além da sonoridade, pelas ótimas letras com abordagens de questões sociais de forma lúcida e consciente, veio a conquistar definitivamente público e crítica com seu segundo álbum, "Rappa Mundi" de 1996.
Produzido pelo mestre dos estúdios no Brasil, Liminha, "Rappa Mundi" teve uma série de grandes sucessos com suas faixas sendo executadas incansavelmente nas rádios e na MTV. Contando com as letras sempre críticas e engajadas do então baterista Marcelo Yuka e com o vocal poderoso e versátil do carismático vocalista Falcão, a banda discorria sobre temas como drogas, violência urbana, trabalho infantil, religião, racismo e pobreza, das formas mais criativas, desde a maneira mais incisiva à mais bem-humorada.
Em "A Feira", por exemplo, faixa que abre o disco, num raggae-pop descontraído e embalado, falam sobre a venda de "substâncias ilícitas" e a facilidade de se encontrar os produtos em qualquer esquina; em "Miséria S.A." Falcão interpreta como se recitasse um texto decorado a criativa letra do cantor e compositor Pedro Luís, que imita aqueles bilhetinhos que pedintes entregam aos passageiros nos ônibus, escancarando a realidade da pobreza no Brasil e as situações a que se sujeitam homens, mulheres e muitas vezes crianças; "Vapor Barato", clássico multi-regravado da música brasileira, ganha uma versão competentíssima, mais embalada e de interpretação marcante de Marcelo Falcão, incluindo-se entre as grandes versões que a canção de Waly Salomão e Jards Macalé já recebeu. "Ilê Ayê", conhecida na voz de Gilberto Gil no álbum "Refavela", vai perfeitamente ao encontro do discurso e da proposta dO Rappa e com uma pegada mais elétrica e vibrante, é outra cover que não decepciona. Assim como "Hey Joe", outra versão, esta da canção imortalizada por Jimi Hendrix, que, embora não tenha o brilho daquela do gênio da guitarra, garante uma boa releitura em português e completamente carregada no reggae.
Grande sucesso, a inspiradora "Pescador de Ilusões" é aquele trunfo radiofônico perfeito; "Uma Ajuda" juntamente com "Lei da Sobrevivência" talvez sejam as menos empolgantes do disco; já "O Homem Bomba" e "Tumulto", por sua vez são incendiárias, ambas abordando a indignação do home  comum, do cidadão tão desrespeitado no dia a dia. "Tumulto", em especial, muito a calhar, fala sobre manifestações populares, povo, não o povo da Paulista, mas o povo de comunidades, indo à rua por justiça, por igualdade, por necessidades básicas ou por conta da violência cotidiana. Mais uma porrada dO Raapa!
Altamente ligados a futebol, torcedores e frequentadores de estádios, tendo inclusive participado da coletânea de hinos de clubes brasileiros, da revista Placar, gravando o hino do Flamengo, o esporte, que segundo eles mesmos tem tudo a ver com a música e com a vida do brasileiro, aparece em vários momentos no disco. A ótima "Eu Não Sei Mentir Direito", por exemplo, começa com os versos "No país do futebol/ Eu nunca joguei bem..." revelando alguém que, numa terra de onda a malandragem é a lei, não consegue se adaptar à conduta dominante enraizada na cultura do brasileiro; "O Homem Bomba", fala em "tocar bumbo na garganta do Maracanã"; "Óia o Rappa", música que fecha o disco e que também fala sobre o jeito do cidadão se virar, refere-se a "pênalti" quando a situação fica crítica numa batida da polícia num negócio informal um tanto suspeito. Mas é em "Eu Quero Ver Gol" que a verve futebolística fica totalmente exposta retratando a realidade de um torcedor que enfrenta os perrengues do dia a dia, dá duro durante a manhã na praia, mas que não quer perder de jeito nenhum o jogo do fim da tarde e, mais do que qualquer coisa, ver seu time ganhar ("Tô no rango desdas duas e a lombra bateu/ O jogo é as cinco e eu sou mais o meu/ Tô com a geral no bolso, garanti meu lugar/ Vou torcer, vou xingar pro meu time ganhar"). A versão do especial acústico gravado para a MTV, que posteriormente viraria CD e DVD, gravada em 2005 é ainda mais "boleira" e tem mencionados, em seu final, os nomes de vários jogadores da Seleção Brasileira que estavam prestes a disputar a Copa de 2006, num final apoteótico para aquela apresentação.
Depois de "Rappa Mundi" a banda ainda apresentaria o bom "Lado B, Lado A" mas após um incidente urbano em 2001, infelizmente cada vez mais familiar a todos nós, uma tentativa de assalto que vira a deixar Marcelo Yuka, baterista e principal compositor da banda paraplégico, O Rappa, com sua saída, perdia bastante em qualidade de letras e criatividade mostrando-se irregular e inconsistente, embora ainda conseguisse sustentar um relativo sucesso comercial. Mas "Rappa Mundi" com toda sua atitude, gingado, irreverência e sonoridade já havia garantido o nome dO Rappa em destaque entre os grandes discos da música brasileira e por extensão, para nós, na galeria dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS do ClyBlog.
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FAIXAS:
1. "A Feira" - Marcelo Yuka (3:59)
2. "Miséria S.A." - Pedro Luís (4:01)
3. "Vapor Barato" - Waly Salomão, Jards Macalé 4:23)
4. "Ilê Ayê" - Paulinho Camafeu (3:50)
5. "Hey Joe" (participação de Marcelo D2)  - Bill Roberts, versão: Ivo Meirelles, Marcelo Yuka (4:25)
6. "Pescador de Ilusões" -  Marcelo Yuka (4:29)
7. "Uma Ajuda" - Marcelo Yuka (4:29)
8. "Eu Quero Ver Gol" - Falcão, Xandão (3:41)
9. "Eu Não Sei Mentir Direito" -  Marcelo Yuka 4:03
10. "O Homem Bomba" - Marcelo Yuka (3:14)
11. "Tumulto" - Marcelo Yuka (3:14)
12. "Lei Da Sobrevivência (Palha de Cana)" - Falcão (3:05)
13. "Óia O Rapa" - Lenine, Sérgio Natureza (6:00)

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Ouça:
O Rappa - Rappa Mundi


Cly Reis

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

As minhas 20 melhores capas de disco da música brasileira



Dia desses, deparei-me com um programa no canal Arte 1 da série “Design Gráfico Brasileiro” cujo tema eram capas de discos da música brasileira. Além de trazer histórias bem interessantes sobre algumas delas, como as de “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque, “Severino”, dos Paralamas do Sucesso,  e “Zé”, da Biquíni Cavadão, ainda entrevistava alguns dos principais designers dessa área aos quais nutro grande admiração, como Gringo Cardia e Elifas Andreato.

Elifas: o mestre do design de capas de disco no Brasil
Motivo suficiente para que eu quisesse montar uma lista com as minhas capas de discos preferidas da MPB. Já tivemos aqui no Clyblog as melhores capas do pop-rock internacional, mas com esse recorte tão “tupiniquim”, ainda não. Além de eu gostar muito da música brasileira, desde cedo admiro bastante também as artes que acompanham. Seja por meio do trabalho de desingers gráficos ou da incursão de elementos das artes visuais, é fato que o Brasil tem algumas das mais criativas e peculiares capas de disco do universo musical.

Assim como ocorre nos Estados Unidos e Europa, a tradição da arte brasileira acabou por se integrar à indústria fonográfica. Principalmente, a partir dos anos 50, época em que, além do surgimento do método de impressão em offset e a melhora das técnicas fotográficas, a indústria do disco se fortaleceu e começou a se descolar do rádio, até então detentor do mercado de música. Os músicos começaram a vender discos e, na esteira, o pessoal das artes visuais também passou a ganhar espaço nas capas e encartes que envolviam os bolachões a ponto de, às vezes, se destacarem tanto quanto o conteúdo do sulco.

Arte de Wahrol para o selo
norte-americano Verve
Lá fora, o jazz e o rock tiveram o privilégio de contar na feitura de capas com as mãos de artistas como Andy Wahrol, Jackson Pollock, Saul Bass, Neil Fujita, Peter Saville e Reid Miles. No Brasil, por sua vez, nomes como Caribé, Di Cavalcanti, Glauco Rodrigues, Rubens Gerchman e Luiz Zerbini não deixaram por menos. Além destes consagrados artistas visuais, há, igualmente, os especialistas na área do designer gráfico. Dentre estes, o já mencionado Gringo, modernizador da arte gráfica nesta área; Elifas, de que é impossível escolher apenas um trabalho; Rogério Duarte, com seu peculiar tropicalismo visual; Cesar Vilela, o homem por trás da inteligente economia cromática das capas do selo Elenco; e Aldo Luiz, autor de uma enormidade delas.

No Brasil, em especial, a possibilidade de estes autores tratarem com elementos da cultura brasileira, rica e diversa em cores, referências étnico-sociais, religiosas e estéticas, dá ainda, se não mais tempero, elementos de diferenciação diante da arte gráfica feita noutros países. Assim, abarcando parte dessa riqueza cultural, procurei elencar, em ordem de data, as minhas 20 capas preferidas da música brasileira. Posso pecar, sim, por falta de conhecimento, uma vez que a discografia nacional é vasta e, não raro, me deparo com algum disco (mesmo que não necessariamente bom em termos musicais) cuja capa é arrebatadora. Quem sabe, daqui a algum tempo não me motive a listar outros 20?

Sei, contudo, que estas escolhidas são de alta qualidade e que representam bem a arte gráfica brasileira para o mercado musical. Impossível, aliás, não deixar de citar capas que admiro bastante e que não puderam entrar na listagem pelo simples motivo numérico: “Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua”, de Sérgio Sampaio (Aldo Luiz); “Minas”, de Milton Nascimento (do próprio Milton); “Nervos de Aço”, de Paulinho da Viola; “Espiral da Ilusão”, de Criolo; “Bicho”, de Caetano Veloso (Elifas); “Paratodos”, de Chico; “Barulhinho Bom”, de Marisa Monte; “Besouro”, de Paulo César Pinheiro; “Com Você Meu Mundo Ficaria Completo”, de Cássia Eller (Gringo); “Wave”, de Tom Jobim (Sam Antupit); “Caça à Raposa”, de João Bosco (Glauco); “O Rock Errou”, de Lobão (Noguchi); “Nos Dias de Hoje”, de Ivan Lins (Mello Menezes); “Paulo Bagunça & A Tropa Maldita” (Duarte); “Getz/Gilberto”, de João Gilberto e Stan Getz (Olga Albizu).

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1 - “Aracy canta Noel” – Aracy de Almeida (1954)
Arte: Di Cavalcanti 


Era o começo da indústria dos “long playing” no Brasil, tanto que se precisou fazer um box com três vinis de 10 polegadas reunindo as faixas dos compactos que Aracy gravara entre 1048 e 1950 com o repertório de Noel Rosa. A Continental quis investir no inovador produto e chamou ninguém menos que Di Cavalcanti para realizar a arte do invólucro. Como uma obra de arte, hoje, um disco original não sai por menos de R$ 500.



2 - “Canções Praieiras” – Dorival Caymmi (1954)
Arte: Dorival Caymmi

É como aquela anedota do jogador de futebol que cobra o escanteio, vai para a área cabecear e ele mesmo defende a bola no gol. “Canções Praieiras”, de Caymmi, é assim: tudo, instrumental, voz, imagem e espírito são de autoria dele. E tudo é a mesma arte. “Pintor de domingos”, como se dizia, desde cedo pintava óleos com o lirismo e a fineza que os orixás lhe deram. Esta capa, a traços que lembram Caribé e Di, é sua mais bela. Como disse o jornalista Luis Antonio Giron: ”Sua música lhe ofereceu todos os elementos para pintar”.




3 - “Orfeu da Conceição” – Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes (1956)
Arte: Raimundo Nogueira


A peça musical inaugural da era de ouro da MPB tinha, além do brilhantismo dos dois autores que a assinam, ainda Oscar Niemeyer na cenografia, Leo Jusi, na direção, e Luis Bonfá, ao violão-base. Só feras. Quando, por iniciativa do eternamente antenado Aloysio de Oliveira, a trilha da peça virou disco, Vinicius, homem de muitos amigos, chamou um deles, o pintor Raimundo Correa, para a arte da capa. Alto nível mantido.



4 - “À Vontade” – Baden Powell (1963)
Arte: Cesar Vilela

O minimalismo do P&B estourado e apenas a cor vermelha fazendo contraponto deram a Elenco – outro trunfo de Aloysio de Oliveira – a aura de cult. Além de, musicalmente falando, lançar diversos talentos no início dos anos 60, os quais se tornariam célebres logo após, o selo ainda tinha um diferencial visual. A capa de "À Vontade" é apenas uma delas, que junta o estilo cromático de Vilela com um desenho magnífico do violeiro, representativo da linhagem a qual Baden pertence. Uma leitura moderna da arte dos mestres da pintura brasileira aplicada ao formato do vinil.




5 - “Secos & Molhados” – Secos & Molhados (1971)
Arte: Décio Duarte Ambrósio


Impossível não se impactar com a icônica imagem das cabeças dos integrantes da banda servidas para o banquete. Impressionam a luz sépia e sombreada, o detalhismo do cenário e o barroquismo antropofágico da cena. E que disco! Fora o fato de que as cabeças estão... de olhos abertos!


6 - “Ou Não” ou "Disco da Mosca" - Walter Franco (1971)
Arte: Lígia Goulart

Os discos “brancos”, como o clássico dos Beatles ou o do pré-exílio de Caetano Veloso (1969), guardam, talvez mais do que os discos “pretos”, um charme especial. Conseguem transmitir a mesma transgressão que suas músicas contêm, porém sem a agressividade visual dos de capas negras. Ao mesmo tempo, são, sim, chocantes ao fazerem se deparar com aquela capa sem nada. Ou melhor: quase nada. Nesta, que Lígia Goulart fez para Walter Franco, o único elemento é a pequena mosca, a qual, por menor que seja, é impossível não percebê-la, uma vez que a imagem chama o olho naquele vazio do fundo sem cor.



7 – “Fa-Tal - Gal a Todo Vapor” - Gal Costa (1971)
Arte: Hélio Oiticica e Waly Salomão

Gal Costa teve o privilégio de contar com a genial dupla na autoria da arte de um trabalho seu. Em conjunto, Oiticica e Waly deram a este disco ao vivo da cantora um caráter de obra de arte, dessas que podem ser expostas em qualquer museu. Além disso, crítica e atual. A mistura de elementos gráficos, a foto cortada e a distribuição espacial dão à arte uma sensação de descontinuidade, fragmentação e imprecisão, tudo que o pós-tropicalismo daquele momento, com Caetano e Gil exilados, queria dizer.





8 - “Clube da Esquina” – Milton Nascimento e Lô Borges (1972)
Arte: Cafi e Ronaldo Bastos

Talvez a mais lendária foto de capa de todos os tempos no Brasil. Tanto que, anos atrás, foi-se atrás dos então meninos Tonho e Cacau para reproduzir a cena com eles agora adultos. Metalinguística, prescinde de tipografia para informar de quem é o disco. As crianças representam não só Milton e Lô como ao próprio “movimento” Clube da Esquina de um modo geral e metafórico: puro, brejeiro, mestiço, brasileiro, banhado de sol.




9 - “Lô Borges” ou “Disco do Tênis” - Lô Borges (1972)
Arte: Cafi e Ronaldo Bastos

Não bastasse a já simbólica capa de “Clube da Esquina”, que Cafi e Ronaldo idealizaram para o disco de Milton e Lô, no mesmo ano, criam para este último outra arte histórica da música brasileira. Símbolo da turma de Minas Gerais, os usados tênis All Star dizem muito: a sintonia com o rock, a transgressão  da juventude, a ligação do Brasil com a cultura de fora, o sentimento de liberdade. Tudo o que, dentro, o disco contém.



10 – “Cantar” – Gal Costa (1972)
Arte: Rogério Duarte

Mais um de Gal. As capas que Rogério fez para todos os tropicalistas na fase áurea do movimento, como as de “Gilberto Gil” (1968), “Gal Costa” (1969) e a de “Caetano Veloso” (1968) são históricas, mas esta aqui, já depurados os elementos estilísticos da Tropicália (que ia do pós-modernismo à antropofagia), é uma solução visual altamente harmônica, que se vale de uma foto desfocada e uma tipografia bem colorida. Delicada, sensual, tropical. A tradução do que a artista era naquele momento: o “Cantar”.


11 - “Pérola Negra” – Luiz Melodia (1973)
Arte: Rubens Maia

Somente num país tropical faz tanto sentido usar feijões pretos para uma arte de capa. No Brasil dos ano 70, cuja pecha subdesenvolvida mesclava-se ao espírito carnavalesco e ao naturalismo, o feijão configura-se, assim como o artista que ali simboliza, a verdadeira “pérola negra”. Além disso, a desproporção dos grãos em relação à imagem de Melodia dentro da banheira dá um ar de magia, de surrealismo.




12 - “Todos os Olhos” – Tom Zé (1973)
Arte: Décio Pignatari

A polêmica capa do ânus com uma bolita foi concebida deliberadamente para mandar um recado aos militares da Ditadura. Não preciso dizer que mensagem é essa, né? O fato foi que os milicos não entenderam a ofensa e a capa do disco de Tom Zé entrou para a história da arte gráfica brasileira não somente pela lenda, mas também pela concepção artística revolucionária que comporta e o instigante resultado final.



13 – “A Tábua de Esmeraldas” - Jorge Ben (1974)
Arte: Aldo Luiz

Responsável por criar para a Philips, à época a gravadora com o maior e melhor cast de artistas da MPB, Aldo Luiz tinha a missão de produzir muita coisa. Dentre estas, a impactante capa do melhor disco de Jorge Ben, na qual reproduz desenhos do artista e alquimista francês do século XII Nicolas Flamel, o qual traz capítulos de uma história da luta entre o bem e o mal. Dentro da viagem de Ben àquela época, Aldo conseguiu, de fato, fazer com que os alquimistas chegassem já de cara, na arte da capa.




14 - “Rosa do Povo” – Martinho da Vila (1976)
Arte: Elifas Andreato

Uma das obras-primas de Elifas, e uma das maravilhas entre as várias que fez para Martinho da Vila. Tem a marca do artista, cujo traço forte e bem delineado sustenta cores vivas e gestos oníricos. De claro cunho social, a imagem dos pés lembra os dos trabalhadores do café de Portinari. Para Martinho, Elifas fez pelo menos mais duas obras-primas das artes visuais brasileira: “Martinho da Vila”, de 1990, e “Canta Canta, Minha Gente”, de 1974.




15 - “Memórias Cantando” e “Memórias Chorando” Paulinho da Viola (1976)
Arte: Elifas Andreato


Podia tranquilamente escolher outras capas que Elifas fez para Paulinho, como a de “Nervos de Aço” (1973), com seu emocionante desenho, ou a premiada de “Bebadosamba” (1997), por exemplo. Mas os do duo “Memórias”, ambas lançadas no mesmo ano, são simplesmente magníficas. Os “erês”, destacados no fundo branco, desenhados em delicados traços e em cores vivas (além da impressionante arte encarte dos encartes, quase cronísticas), são provavelmente a mais poética arte feita pelo designer ao amigo compositor.




16 - “Zé Ramalho 2” ou “A Peleja do Diabo com o Dono do Céu” – Zé Ramalho (1979)
Arte: Zé Ramalho e Ivan Cardoso

A inusitada foto da capa em que Zé Ramalho é pego por trás por uma vampiresca atriz Xuxa Lopes e, pela frente, prestes a ser atacado por Zé do Caixão, só podia ser fruto de cabeças muito criativas. A concepção é do próprio Zé Ramalho e a foto do cineasta “udigrudi” Ivan Cardoso, mas a arte tem participação também de Hélio Oiticica, Mônica Schmidt e... Satã! (Não sou eu que estou dizendo, está nos créditos do disco.)





17 - “Almanaque” – Chico Buarque (1982)
Arte: Elifas Andreato

Mais uma de Elifas, é uma das mais divertidas e lúdicas capas feitas no Brasil. Além do lindo desenho do rosto de Chico, que parece submergir do fundo branco, as letras, os arabescos e, principalmente, a descrição dos signos do calendário do ano de lançamento do disco, 1982, é coisa de parar para ler por horas – de preferência, ouvindo o magnífico conteúdo musical junto.





18 - “Let’s Play That” – Jards Macalé (1983)
Arte: Walmir Zuzzi

Macalé sempre deu bastante atenção à questão gráfica de seus discos, pois, como o próprio diz, não vê diferença entre artes visuais e música. Igualmente, sempre andou rodeado de artistas visuais do mais alto calibre, como os amigos Hélio Oiticica, Lygia Clark e Rubens Gerchman. Nesta charmosa capa de figuras geométricas, Zuzzi faz lembrar muito Oiticica. Em clima de jam session basicamente entre Macalé e Naná Vasconcelos, a capa traz o impacto visual e sensorial da teoria das cores como uma metáfora: duas cores diferentes em contraste direto, que intensifica ainda mais a diferença (e semelhanças) entre ambas.




19 - “Cabeça Dinossauro” – Titãs (1986)
Arte: Sérgio Brito 

Multitalentosa, a banda Titãs tinha em cada integrante mais do que somente a função de músicos. A Sérgio Brito, cabia a função “extra” da parte visual. São dele a maioria das capas da banda, e esta, em especial, é de um acerto incomparável. Reproduzindo desenhos de Leonardo da Vinci (“Expressão de um Homem Urrando”, na capa, e “Cabeça Grotesca”, na contra, por volta de 1490), Brito e seus companheiros de banda deram cara ao novo momento do grupo e ao rock nacional. Não poderia ser outra capa para definir o melhor disco de rock brasileiro de todos os tempos.


20 - “Brasil” - Ratos de Porão (1988)
Arte: Marcatti

O punk nunca mandou dizer nada. Esta capa, do quarto álbum da banda paulista, diz tanto quanto o próprio disco ou o que o título abertamente sugere. “Naquele disco, a gente fala mal do país o tempo inteiro, desde a capa até a última música”, disse João Gordo. Afinal, para punks como a RDP não tinha como não sentar o pau mesmo: inflação, Plano Cruzado, corrupção na política, HIV em descontrole, repressão policial, a lambada invadindo as rádios, Carnaval Globeleza... Os cartoons de Marcatti, que tomam a capa inteira, são repletos de crítica social e humor negro, como a cena dos fiéis com crucifixos enfiados no cu ou dos políticos engravatados assaltando um moleque de rua. É ou não é o verdadeiro Brasil?



por Daniel Rodrigues
com a colaboração de Márcio Pinheiro