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quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

“Os Oito Odiados”, de Quentin Tarantino (2015)



Quentin Tarantino ataca outra vez. Seu autointitulado oitavo filme “Os Oito Odiados” merece uma rápida reflexão. Pra começar, o diretor volta ao Oeste – que foi retratado em “Django Livre” – e se utiliza de alguns símbolos do gênero, como a música de Ennio Morricone (inferior à de clássicos como as partituras compostas para Sergio Leone) e a utilização do 70 mm Panavison como antigamente, deixando a tela cheia.

Como sempre, Quentin se esforça para subverter os cânones do gênero. Ao invés das pradarias verdejantes dos westerns de John Ford, vemos uma paisagem insólita, coberta de neve, que vai percorrer toda a projeção. Os personagens não estão divididos entre mocinhos e bandidos. Todos são foras-da-lei. Novamente, ele se preocupa em usar o racismo, tão presente em “Django Livre”, e especialmente a misoginia. Samuel L. Jackson é o Major Marquis Warren, caçador de recompensas que carrega os cadáveres, enquanto seu “colega” John Ruth – maravilhosamente interpretado por Kurt Russell – prefere levar os condenados vivos. No caso, a condenada Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh, num daqueles papéis destinados pelo diretor para reavivar carreiras, como realizado com Pam Grier e Robert Forster).

A paisagem insólita e opressiva é um dos elementos da narrativa.
Interessante é que sem querer estragar as inúmeras surpresas que o roteiro em capítulos permite, “Os Oito Odiados” traz no centro de sua trama a figura feminina de Daisy, envolvida numa grande confusão quando os personagens ficam todos isolados em um armazém no meio do nada em Wyoming. Tarantino usa o exíguo espaço como um palco de teatro, onde os personagens vão se apresentando uns aos outros e tudo chega a um clímax muito antes do final. Como ele havia feito em "Bastardos Inglórios", na famosa cena do bar quando os soldados americanos são confrontados por um oficial alemão e tudo termina em carnificina.

Narrando um flashback, o diretor desvenda o mistério e transforma o banho de sangue em uma espécie de anticlímax, quando o espectador fica se perguntando “qual será o ‘coelho’ que ele vai tirar da cartola para resolver a trama?”. Só posso dizer que a justiça é feita. Todos os atores em cena têm seus momentos de brilho. Destaque especial para o veterano Bruce Dern – redescoberto em "Nebraska" - usado como um dos personagens mais reacionários em cena, o General Sandy Smithers, que dizimou uma tropa de negros durante a Guerra de Secessão. Pode-se dizer que Tarantino escalou Dern, um reconhecido rebelde de Hollywood, num papel exatamente o oposto da personalidade do ator. O diretor também coloca em cena seu elenco de preferidos como a dublê Zoe Bell, Michael Madsen e Tim Roth (lembram dele sangrando durante todo “Cães de Aluguel”?).

Russel, de atuação destacada.
O banho de sangue sempre presente em seus filmes ganha um status de quase caricatura em “Os Oito Odiados”. Para resolver o imbróglio, Tarantino faz uma autocitação, usando o prólogo de “Bastardos Inglórios” para introduzir o personagem do galã Chaning Tatum, aqui quase irreconhecível. A fotografia de Robert Richardson, velho companheiro de Tarantino, valoriza cada canto da cabana onde os personagens ficam isolados. A direção de arte consegue recriar o ambiente daqueles armazéns do velho oeste e os efeitos especiais valorizam a violência proposta pelo diretor.

Aqui no Brasil, não há intervalo, como nos Estados Unidos, o que não permite ao espectador um segundo de folga. De uma maneira geral, a crítica não tem gostado de “Os Oito Odiados”, reclamando de sua duração, de passagens dispensáveis no roteiro e dos diálogos nada inspirados. Se um dos trunfos do diretor em trabalhos anteriores era a conversa, sempre afiada, irônica e demolidora, aqui parece ter se estendido em demasia e se utilizado do termo racista “nigger” uma centena de vezes, reforçando o preconceito. Um trabalho menor na filmografia de Quentin Tarantino, “Os Oito Odiados”, mesmo assim merece ser visto.


trechos de "Os Oito Odiados"






terça-feira, 10 de março de 2020

Marisa Monte - "Mais" (1991)



"Ela tem umas coisas
 que nasceram com ela:
carisma, uma beleza calma
e uma enorme cultura musical."
Nelson Motta




Ela já havia interpretado uma música deles em seu álbum de estreia e, não muito tempo depois, um encontro num especial da Rede Globo que a colocava no mesmo palco com os Titãs, além de servir de alavanca para o namoro com o baixista Nando Reis, encaminharia a parceria que se materializaria objetivamente, logo ali adiante no excelente álbum "Mais", de 1991 e ainda abriria o caminho para, mais futuramente, o projeto Tribalistas, já mencionado aqui nos A.F., de Marisa, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, que faz a percussão em grande parte das músicas. "Mais" pode até parecer, num primeiro momento, uma espécie de projeto alternativo dos Titãs com outro tipo de concepção vocal, dada a quantidade de músicas em que eles têm, no mínimo, participação nas composições. Causa ou consequência da então recente relação de Marisa com Nando, a parceria com os Titãs refletiria na linguagem do trabalho como um todo, até mesmo, de certa forma nas versões de outros artistas. Com exceção de "Rosa", de Pixinguinha, de estrutura mais complexa e letra rebuscada, a maioria das outras covers poderia caber, sem problemas num disco do octeto paulista, como no caso de "De Noite na Cama", de Caetano Veloso, por exemplo, a adaptação do folclores nordestino, "Borboleta", e até mesmo, por incrível que pareça, "Ensaboa", de Cartola, que dentro do espectro da obra do mestre da Mangueira, pode ser considerada uma de suas letras mais minimalistas e de estrutura diferenciada. Mas seria uma injusta simplificação reduzir o trabalho a uma experimentação titânica. "Mais" é muito mais! Marisa Monte canta, encanta, brinca, emociona, impressiona. Com produção do norte-americano Arto Lindsay, o disco é eclético sem ser pretensioso e tem um equilíbrio perfeito entre as faixas o que faz com que seja prazeroso e mantenha um frescor mesmo para quem já o conhece de muitas audições.
"Beija Eu", com letra de Arnaldo Antunes, comprova que o mesmo cara que fazia coisas como "Saia de Mim", era capaz de compor algo tão belo e delicado como aquela faixa de abertura, que, por sinal, não merecia outra interpretação que não à de Marisa Monte, doce e graciosa. "Volte para o seu lar", rebelde e impositiva, é a mais titânica das músicas do disco, contando com uma leitura musical perfeita de Marisa que dosou com sabedoria a melodiosidade com a pungência da letra ("Aqui nessa casa/ Ninguém quer a sua boa educação/ Nos dias que tem comida/ Comemos comida com a mão...", "Aqui nessa tribo/ Ninguém quer a sua catequização/ Falamos a sua língua/ Mas não entendemos o seu sermão"...). "Ainda Lembro", canção de amor elegante e de muito bom gosto, conta com a luxuosa participação de Ed Motta compõe com Marisa um dueto que pode se incluído entre os grandes da música brasileira. Em "De noite na cama", Marisa dá um ar leve à canção de Caetano Veloso, inúmeras vezes regravada na discografia nacional, desta vez com uma interpretação bem solta e alegre; e a "Rosa", de Pixinguinha e Otávio Cruz, a confere senão a versão definitiva, no mínimo uma das mais memoráveis. E em "Borboleta", cantiga tradicional do nordeste, Marisa Monte começa fazendo a voz pairar suavemente sobre nosso jardim sonoro para em seguida, sobre uma base acústica, desfilar seu canto doce e gracioso.
Marisa começa esticando a voz em "Ensaboa", sugerindo um cântico de lavadeiras, a música ganha um coro no refrão que também remete a um canto do trabalho conjunto na beira do tanque e de ribeirões, e culmina num pout-pourri, simplesmente extático, com "Lamento da Lavadeira", "Colonial Mentality", "Marinheiro Só", "A Felicidade" e "Eu Sou Negão". Espetacular!
"Eu não sou da sua rua", outra muito titânica, é uma espécie de "Lugar Nenhum"l mais leve e melancólica. "Diariamente", de Nando Reis, uma das melhores do disco, usa um formato em lista, como era característico dos Titãs em músicas como "Nome aos bois", do próprio Nando, só que aqui com atividades e situações rotineiras, numa anáfora conduzida de maneira brilhante pela cantora sobre uma base de violão constante e repetida.
Marisa se aventura pela primeira vez em uma composição solo e se sai bem na gostosa "Eu Sei";
"Tudo pela metade", parceria de Marisa com Nando, talvez seja a mostra mais perfeita no álbum do êxito da combinação de seu estilo com o dos Titãs, ficando bem evidenciado o ponto onde acaba um, começa o outro e onde se fundem. Um pop delicioso de refrão cativante e que fica mais bacana ainda na última vez em que se repete com um coro de crianças bem espontâneo e "bagunçado"; e "Mustaphá", uma balada zen, tranquila, com um belíssimo trabalho de violão, fecha o disco com competência.
"Mais" era a confirmação de Marisa Monte. Se passara uma boa impressão com o primeiro disco "MM", um ao vivo só de versões de outros artistas, mas deixara uma certa dúvida sobre ser ou não um daqueles fenômenos efêmeros que parecem de vez em quando, este disco mostrava que ela não era só mais uma cantora de um ou dois hits. Ela chegara para ficar. Era mais uma das grandes mulheres da música brasileira. Uma mulher com M maiúsculo! M de música, M de Marisa, M de Mais.

*******************
FAIXAS:
1."Beija Eu" -  Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Arto Lindsay (3:10)
2."Volte Para o Seu Lar" - Arnaldo  Antunes (4:41)
3."Ainda Lembro" - (participação especial de Ed Motta) - Marisa Monte, Nando Reis (4:05)
4."De Noite na Cama" - Caetano Veloso (4:24)
5."Rosa" - Pixinguinha, Otávio de Souza (2:43)
6."Borboleta" - Folclore Nordestino (1:56)
7."Ensaboa (Lamento da Lavadeira)" - Cartola, Monsueto Menezes (4:15)
8."Eu Não Sou da Sua Rua" - Branco Mello, Arnaldo Antunes (1:29)
9."Diariamente" - Nando Reis (4:05)
10."Eu Sei (Na Mira)" - Marisa Monte (2:40)
11."Tudo Pela Metade" - Marisa Monte, Nando Reis (4:11)
12."Mustaphá" - Marisa Monte, Nando Reis (2:23)
******************
Ouça:
Marisa Monte - Mais


Cly Reis

domingo, 31 de outubro de 2021

"Salomão Ventura, O Caçador de Lendas nº1 - A Maldição do Saci", de Giorgio Galli - Gico Mix (2011)


"A premissa da HQ é mostrar as lendas do nosso folclore
do jeito que a tradição oral as apresenta,
capturadas pelo mestre Luís da Câmara Cascudo em sua bibliografia.
Em resumo: são histórias de terror feitas para assustar."

"E minha escolha para essa primeira edição 
não poderia ser outra:
quem foi mais descaracterizado e infantilizado
do que o diabrete Saci Pererê?
Que em sua origem, conforme relatado pelo mestre Cascudo,
foi vítima de assassinato, tornou-se alma penada
e tem como objetivo causar morte e dor?
Não é para crianças..."

Giorgio Galli,
prefácio de "A Maldição do Saci"



Na data mais conhecida pela comemoração norte-americana do Halloween, mas que por aqui, simbolizando toda a riqueza de nosso folclore, é simbolizada no Saci, nosso destaque vai para um dos projetos mais legais da cena independente de quadrinhos nacional. É o projeto do artista Giorgio Galli, que, com sua série Salomão Ventura, explora as tradições folclóricas brasileiras, lançando sobre elas um olhar mais sombrio e aterrorizante, transformando lendas e personagens de tradição popular em temíveis criaturas sinistras. Assim, o Curupira e o Saci, por exemplo, têm recuperadas características estudadas por historiadores e folcloristas, e passam a ser, na visão artística de Galli, criaturas sobrenaturais e ameaçadoras que, por mais que tenham justificativas para existirem e demandas legítimas, devem voltar para seus lugares, no mundo do além, longe dos humanos. Para isso, o caçador de assombrações, Salomão Ventura, um misto de Constantine e Van Helsing, sai em busca das aberrações sobrenaturais e, com seus métodos, nada gentis (e nem podia ser diferente) mas muito "convincentes", as captura e manda de volta para o lugar de onde nunca deviam ter saído.
O primeiro número da série do Caçador de Lendas, criado por Galli, é exatamente "A Maldição do Saci", personagem de origem sinistra cujas características foram humanizadas e suavizadas para ficar mais palatável e poder fazer parte dos sítios-dos-pica-paus-amarelos da vida, mas que a bem da verdade, não é nada menos que uma alma-penada vingativa e odiosa, fruto de um brutal assassinato. O moleque tem seus motivos para voltar das trevas para alimentar sua sede de vingança, punir pais e fazer justiça em lares onde crianças são maltratadas como ele foi, só que Salomão Ventura, por mais que compreenda isso, não pode deixá-lo à solta por aí e vai atrás do pretinho endiabrado se valendo da única maneira possível de pegá-lo... (você sabe qual é, não sabe?).
Um projeto que, ao contrário do que muitos pensam, que demoniza personagens da cultura popular, na verdade a resgata e valoriza, levando ao encontro de muitos mergulhados na cultura norte- americana, um pouquinho mais das raízes brasileiras.
Trabalho de muito talento desenvolvido, como o autor mesmo revela no prefácio, ao som de The Cure, The Smiths, Jesus & Mary Chain, Titãs, Cartola, PixiesStone Roses, Kraftwerk e outras coisas mais. Com inspirações dessas, só poderia sai coisa boa, mesmo.

Página da HQ. O início da sina vingativa do Saci.


por Cly Reis



O projeto Salomão Ventura infelizmente, num primeiro momento, não foi muito adiante e ficou só em quatro números, Saci, Curupira, Lobisomem e De Volta Pra Casa, mas ao que parece, o artista resolveu pôr a mão na massa e parece estar produzindo novos episódios do caçador das trevas. Não é tão fácil de se encontrar exemplares mas volta e meia se acha em feiras de quadrinhos e eventos do tipo, além do próprio site do artista (salomaoventura.com.br).

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Caetano Veloso - Teatro da Ospa - Porto Alegre (1992)


O conhecimento que adquiri sobre cultura é, hoje, para um adulto de 42 anos, bem mais assimilável diante dos olhos alheios do que quando eu era jovem. Naquela época, meu gosto e entendimento por cinema e música causavam espanto, visto que não correspondiam com o de muito adulto, quanto menos ao de outros jovens da minha idade. Como um guri de 13 anos, negro e de classe média é capaz de gostar (e entender!) daquilo que somente a classe média alta (e branca) detém? Enfim, não se escapa ileso disso no Brasil. Considerando a devida bagagem adquirida de lá para cá, posso dizer que, na juventude, já me mostrava interessado e conhecedor de muita coisa – principalmente, em comparação a pessoas então da minha idade, muito mais preocupados em ter grana para gastar na balada do fim de semana. Eu, um ET entre meus pares, queria saber mesmo era de filmes e de música. Meus gastos se voltavam a locadoras, discos e a conhecer coisas.

Caso de Caetano Veloso, a quem havia descoberto fazia alguns anos mas que, naquele 1992, completando 50 anos de vida, se revelava fortemente a mim através do seu então novo disco, “Circuladô”. Pela MTV, via seguidamente o ótimo clipe da música de trabalho “Fora da Ordem”. Mas, principalmente, minha curiosidade se despertava por causa da antenada Rádio Ipanema. Pela rádio, minha escola musical-cultural, ouvia não apenas esta música, mas também outras joias daquele disco, como a pedrada crítico-social “O Cu do Mundo”. Fui atrás do disco, óbvio. Adquiri-o em K7, trabalho que se tornou, até hoje, um dos meus preferidos de Caetano e sobre o qual já falei aqui no blog. Assim. quando o baiano anunciou que vinha a Porto Alegre para a turnê do álbum, não pestanejei. Sem ninguém tão empolgado quanto eu para ir ao show, fui sozinho.

Seria o primeiro sem a companhia de ninguém, nem pais, nem irmão, nem amigo. Só eu. Era comum ir às sessões especiais de cinema sozinho, mas a um show, que acabaria tarde da noite, nunca. E longe de onde era minha casa, na zona Sudeste de Porto Alegre. De ônibus, por cerca de 1 hora, me desloquei até o alto do Bom Fim/Independência em direção ao antigo e hoje desativado Teatro da Ospa, onde ocorreria o show. Com a devida preocupação de minha mãe, fui. Lembro que tinha fila Av. Independência afora, passando pela frente da casa da Cruz Vermelha, uma novidade para mim, que não frequentava aquelas imediações. Já ali, minha figura impressionava aqueles que assistiriam junto comigo dali a algumas horas o memorável show de Caetano. Lembro-me claramente que um senhor de meia-idade, de óculos e provavelmente fã do músico desde quando era adolescente, perguntou a mim com admiração que idade eu tinha.

Caetano e a grande banda comandada por Jaques Morelenbaum
Já lá dentro, na plateia superior esquerda, num bom lugar para quem não tinha dinheiro suficiente para pagar o valor para se assistir lá de baixo, posso dizer que foi naquela feita que me deparei pela primeira vez com a maestria do pessoal dessa geração (ele, Chico, Paul, Milton, Stevie, Bethânia, Stones, Gil, etc.). Não apenas a qualidade musical, mas a maestria de saber montar set-lists. Cruzes! “Circuladô”, o disco, já trazia músicas que garantem uma apresentação de alto nível se entremeadas com sucessos antigos e outras canções mais populares, o que normalmente se faz repertórios de shows. Mas essa “turma” sabe ir além disso. Caetano e sua ótima banda (Luiz Brasil, guitarra, violão e Synthaxe; Marcos Amma e Welington Soares, percussões; Dadi, baixo; Marcelo Costa, bateria; e Jaques Morelenbaum, cello, além da produção do show) articulam um show cujo encadeamento das músicas é tão bem construído que virou, não à toa, referência na obra do próprio Caetano. 

Equilibrando hits, clássicos, versões, textos, letra de idiomas diferentes e releituras suas e de outros compositores, além das faixas do disco que motivava a turnê, o show é uma sequência de tirar o fôlego de qualquer fã ou aspirante a isso, como eu o era ali. Momentos mais enérgicos, outros, mais cândidos; outros, ainda, mais populares ou mais conceituais. Mas sem jamais perder o ritmo narrativo. Aliás, como não se embasbacar com uma sequência inicial como esta?: Abre-se com a clássica “A Tua Presença” num novo e magnífico arranjo; engata uma versão bossa-nova “banquinho-violão” de “Black or White”, de Michael Jackson, expediente que o próprio Caetano já inovara poucos anos antes ao fazer o mesmo com “Billie Jean”, também autoria do Rei do Pop, mas que, ali no show, pegava todo mundo de surpresa; e uma virada sem pausa para um rock minimalista com o texto inédito “Os Americanos”, este, não cantado, mas lido por seu autor, que, além da qualidade inequívoca de compositor, é também um escritor de mão cheia.
Não lembro bem onde entrava no show “Fora da Ordem”, mas com certeza era na primeira metade em se tratando de música de trabalho do disco novo. O fato é que, logo em seguida, emenda-se outra sequência incrível e inesperada: a linda “Um Índio” – em uma versão melhor que a original dos Doces Bárbaros –, a novelística "Queixa" e uma assombrosa "Mano a Mano", clássico tango de Carlos Gardel com Morelenbaum ao cello e Caetano apavorando no vocal. Mas não terminava aí: só na voz e violão, vêm uma trinca com a assertividade dissonante de "Chega de Saudade"; uma surpreendente versão de "Disseram que eu Voltei Americanizada", do repertório de Carmen Miranda; e “Quando eu Penso na Bahia", em que Caetano torna Ary Barroso muito caymmiano.

A bela arte da capa do disco ao vivo,
que fazia cenário para o show visto
na Ospa
Intercalando um que outro dos ótimos temas de “Circuladô” – como “A Terceira Margem do Rio" (das raras dele e de Milton Nascimento), “Itapuã” e a já citada “O Cu do Mundo” –, Caetano traria ainda outras pérolas consagradas (“Você é Linda”, “Os Mais Doces Bárbaros", “Sampa”) e mais surpresas. Uma delas, é a versão para "Oceano", então recente sucesso de Djavan que emocionou a galera. Outra: uma estupenda versão para “Jokerman”, de Bob Dylan, ponto alto do show e que lhe confere o começo de uma segunda e derradeira parte. Mas não terminava ali (Caramba!). Tinha mais coelhos naquela cartola, pois o espetáculo trazia também duas revelações. Primeiro, a de que a querida “O Leãozinho” havia sido escrita, nos anos 70, justamente para um dos integrantes daquela banda, Dadi, o que resultou numa execução desta somente com o seu contrabaixo acompanhando a voz de Caetano. A outra revelação também é relativa aos anos 70, mas consideravelmente mais melancólica visto que resultante dos reflexos da Ditadura Militar. Antecipando o que traria em seu livro-ensaio “Verdade Tropical”, de 1997, Caetano conta para a plateia, antes de cantar “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos”, que Roberto e Erasmo Carlos a escreverem em sua homenagem, e que conheceu a canção recém-composta numa visita de Roberto a ele e Gil no exílio, em Londres, ocasião aquela em que se emocionou muito.

Para mim, que conhecia de cabo a rabo “Circuladô”, ficou claro por que, de todas, tanto“Ela Ela”, arranjada e tocada em estúdio com Arto Lindsay, como “Lindeza”, com Ryuichi Sakamoto aos teclados, igualmente sui generis, cada qual com suas particulares performances irreproduzíveis à altura sem esses músicos específicos, não se executaram. Além de compreensíveis ausências, ambas nem de longe fizeram falta ao show, que, antes de tudo, foi um show de repertório. Tão marcante foi tal apresentação, que se tornou o primeiro de uma série de discos ao vivo de Caetano, o CD duplo “Circuladô Vivo”, algo que passou a acontecer com regularidade a partir de então após cada disco de estúdio lançado. A qualidade técnica da gravação, que se tornava disponível à época no Brasil pós-Collor, certamente colaborou para isso. Porém, antes de qualquer coisa, o tratamento dado pela também iniciante parceria entre Caetano com Jaques Morelenbaum é crucial para o sucesso do álbum ao vivo, um dos mais celebrados da carreira de Caetano. Se no estúdio os Ambitious Lovers Arto e Peter Scherer vinham numa ótima tabelinha com o baiano desde “O Estrangeiro”, de 1989, o que se adensaria em “Circuladô”, no palco, era a mão versátil do maestro líder da Banda Nova de Tom Jobim que ditava a musicalidade. Por influência dele, "Terra" (que ficou de fora do CD, assim como outra clássica, "Baby"), talvez a melhor melodia de Caetano, ganhou no show a talvez sua melhor versão das várias que o autor já registrara ao longo da carreira.

Não tenho idade para ter ido a shows célebres de Caetano em Porto Alegre, como o da turnê do disco “Cinema Transcendental”, em 1979, ou o de 1972, no Araújo Vianna, de onde, após encantar a plateia, partiu com figurino e tudo rumo ao histórico e único encontro que teve com Lupicínio Rodrigues, no Se Acaso Você Chegasse, na Cidade Baixa. Mas a ver pela repercussão que este show de 1992 teve, tanto com o lançamento e sucesso do CD ao vivo como também de um especial para a TV Manchete e um documentário dirigidos por Walter Salles Jr. e José Henrique Fonseca – à época, em VHS –, era impossível Caetano não conquistar de vez aquele pré-adolescente da periferia porto-alegrense, que, encantado com o que vira, nem se abalou por andar sozinho tarde da noite de volta para casa. Aliás, ele nem lembra como e quando chegou em casa. Mas que chegou, chegou – para alívio de sua mãe. Se não, ele não estaria aqui agora, redigindo este texto recordado da grande noite em que viu Caetano Veloso pela primeira vez ao vivo.

Show "Circuladô Vivo" (1992)

Documentário "Circuladô Vivo" (1992)


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

"A Garota de Rosa-Shocking", de Howard Deutch (1986) vs. "Alguém Muito Especial", de Howard Deutch (1987)


Sabe aquela máxima do futebol que diz que "em time que está ganhando não se mexe"? Pois é,... não se aplica se John Hughes for o cartola. Depois do sucesso de "A Garota de Rosa-Shocking", o produtor e roteirista, insatisfeito com o produto final e contrariado pelo fato do desfecho original, escrito por ele, ter sido mudado para agradar o público, resolveu, um ano depois, rodar outro filme, "Alguém Muito Especial", para fazer as coisas do jeito que realmente queria. Para isso resolveu trocar toda a comissão técnica, demitindo, num primeiro momento, até o treinador mas voltando atrás logo em seguida e dando a ele, novamente, o comando do projeto. Ambos os filmes foram dirigidos por Howard Deutch, que na primeira versão fez um filmes típico de adolescentes dos anos 80, bem ao estilo de John Hughes, como em "Gatinhas e Gatões", "Mulher Nota 1000", "Curtindo a Vida Adoidado, bem descontraído, colorido, com personagens bem carismáticos, ritmo ágil e uma trilha sonora recheada de hits da década. Já na segunda versão, embora mantenha o clima juvenil, gere situações engraçadinhas, Deutch conduz um filme mais sério e com abordagens um pouco mais profundas sobre as relações humanas, dinheiro, futuro, aparências e escolhas pessoais e profissionais.
Uma diferença crucial é a mudança do gênero dos personagens principais de um filme para o outro: enquanto no primeiro a protagonista é uma garota, Andie, que é vidrada no bonitão ricaço da escola; no segundo, até para dar uma virada geral no panorama, o personagem central é um rapaz, Keith, cujo alvo é uma bela garota, Amanda Jones, que até não é tão endinheirada, mas só anda com a classe alta. No primeiro, Blane, o boa pinta, até está a fim de Andie e arrasta uma asa violenta pra ela, mas se leva muito pelas aparências e no que vão pensar os amigos e a família rica; Amanda, por sua vez, no remake, parece inalcansável num primeiro instante, com um namorado risquinho e babaca e andando com a turminha esnobe da zona nobre da cidade. No entanto, em ambos os casos, nossos heróis estão tão cegos com a beleza dos seus desejados que não percebem que o verdadeiro amor está debaixo dos seu narizes. Duckie, o engraçado e esquisitão amigo de Andie é até contundente em alguns momentos e não esconde dela sua paixão; já a alternativa baterista Watts, embora mais discreta quanto a seus sentimentos, até disfarçando, se escondendo, fazendo beicinho, também não deixa de transparecer o que tem em seu coração.
Assim, escalados, os dois times entram em campo. O time de rosa-choque sai na frente por uma jogada individual. Molly Ringwald, uma das atrizes símbolo dos anos 80 e, no caso particular, uma protagonista bem mais marcante do que é Eric Stoltz na refilmagem, assume o protagonismo do jogo e tira o primeiro zero do placar. Só que a refilmagem, com um esquema de jogo mais bem mais pensado, com um conjunto melhor, empata o jogo.

"A Garota de Rosa-Shocking"
 Duckie na loja de dicos dublando "Try a Little Tenderness"

"Alguém Muito Especial" 
Watts ensinando Keith a beijar



 Em outra jogada individual, Duckie, numa performance incrível na cena da loja de discos, em que dubla "Try a Little Tenderness", de Otis Redding, marca o segundo para o time original. Mas se o melhor amigo de lá marca um, o do remake responde também com o seu. Mary-Stuart Masterson, como Watts, está tão espetacular que chega a dar vontade de pegar no colo e consolá-la cada vez que ela chora ou se decepciona pelo amigo. Sua atuação de luxo é outro gol para a segunda versão. 2x2. Mas aí vem a trilha sonora do filme de 1986 e aí é um golaço. É New Order tabelando com Echo and The Bunnymen, tocando para Otis Redding, que passa pra The Smiths, que rola para OMD e... toca a múúsicaaaa! 3x2 para "A Garota de Rosa-Shocking". Mas se o quesito é música, a referência aos Rolling Stones nos nomes dos três personagens principais, Keith, Jones e Watts garante novo empate para "Alguém Muito Especial". 3x3.
Jogo se encaminhando para o final. A segunda versão quer ser melhor e para isso a cartolagem intervém. A ordem vem lá de cima, da sala da diretoria, e o técnico do time de 1987 obedece e queima sua ultima troca. Sobe a placa: sai o final em que um protagonista fica com um personagem dos sonhos e entra o final em que o protagonista fica com quem realmente o merece. Gol do remake! Golzinho chorado , aos 44 do segundo tempo. Que virada!
A torcida vaia o resultado, acha injusto. Mas não adianta, o time de 1986 é mais badalado mas o de 1987 é melhor.

Substituição:
Sai "final de conto de fadas" e entre "final mais justo e realista".
Vitória com o dedo do treinador (mas com a mão da diretoria).



A Garota Rosa até pode ser a queridinha da galera, mas descobriu que tem alguém que é mais especial.








por Cly Reis

terça-feira, 17 de abril de 2018

A Dona do Samba

Lembro que nas primeiras aulas de redação da faculdade de Jornalismo, meu professor Vitor Necchi nos ressaltou que a regra para se chamar pessoas num texto jornalístico era ou o nome completo ou, nas repetições do mesmo, o sobrenome para homens e o primeiro nome para mulheres. A exceção à regra eram personalidades especiais, cujo nome diferenciava-se dos outros por si. Casos em que o nome representava mais do que simplesmente uma certidão, mas, sim, um status, uma classificação, uma imposição daquilo que a pessoa se transformara e representara em vida.

Alguns exemplos, rememoro, eram Mãe Menininha do Gantois, Dona Canô e Mestre Marçal. E Dona Yvone Lara. Aos 97 anos, recém completos no último 13, praticamente a mesma idade do gênero musical que ela ajudou a forjar e desenvolver harmônica e melodicamente, o samba, Dona Yvone parte. Corpo debilitado de quem, como todo preto do subúrbio da primeira metade do século XX (e ainda, mulher), precisou trabalhar duro a vida toda – no caso dela, a enfermagem e o serviço social, que exercera durante décadas até se aposentar, sem, contudo, nunca deixar a batucada de lado. Mas a mente lúcida, criativa, incansável. Diz que levou para o céu 40 composições novas.

Mesmo a idade avançada e a saúde fraca há anos não são suficientes para amenizar o vazio que se faz presente. Vazio que toma a quadra do Império Serrano, como uma cuíca chorosa que, de repente, para de chorar, substituída pelo silêncio. Ao menos hoje, é o que se sente. Ficam vagando, no lugar, as melodias elegantes de quem estudara com Heitor Villa-Lobos ,mas que, ao natural, instintivamente, já de antes das aulas com o maestro adicionava elementos bachianos ao samba. Quem haveria de contrariar ao ouvir “Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço”, “Confesso”, “A Sereia Guiomar”, “Aprendi a Sofrer”? Como ela, neste sentido, só Cartola.

Acordo sempre com alguma música na cabeça. Sei que havia uma das milhares que me ocorrem ao acordar hoje, mas não lembro mais qual.  Ao saber da notícia da morte de D. Yvonne, imediatamente a esqueci, e minha mente (ou meu coração) escolheu para rodar “Força da Imaginação”, a luxuosa parceria dela com Caetano Veloso. Estão aqui seus acordes e seus versos, ainda agora, enquanto escrevo essas linhas de lamentação. Quero acreditar e acredito nos seus versos:

"Quando um poeta compõe mais um samba
Ele funda outra cidade
Lamentando a sua dor ele faz felicidade
Força da imaginação
Na forma da melodia
Não escurece a razão
E ilumina o dia-a-dia”

Parte, Dona Yvone, com a força da tua música, dos repiques do samba, das melodias bachianas, da potência de fundar uma cidade. Parte com a alcunha que poucos, pouquíssimos, tiveram e terão o merecimento de serem redigidos fora do padrão. É pra quem pode.


Recebam-na com um pagode festivo aí, amigas Jovelina e Clementina.

"Tristeza rolou dos meus olhos de um jeito que eu não queria". 

Paciência. 

Parte, Dona do Samba, com um sorriso e um abraço negro.

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"Mas quem disse que eu te esqueço" - Dona Yvone Lara

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DONA IVONE LARA
(1921-2018)

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Coluna dEle #53


E aí, fakes?
Beleza?
Bom,... na verdade Eu sei que a coisa não tá muito boa.
É que..., Eu tenho que revelar uma coisa pra vocês: é que deu vírus aqui no Meu PC e o programa BR XIX deu pau total e por isso que o país de vocês tá completamente fora de controle.
A técnica, aqui tá dando duro pra resolver o problema. Pode demorar um pouco. Espero que não demore 21 anos como da última vez.

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Pelo menos o pessoal já identificou o principal vírus: chama-se Myth17.
É terrível! 
Pode causar danos irreparáveis ao sistema.

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A coisa tá tão fora de controle que tem imbecil dizendo que essa aberração que tá governando o país de vocês aí (se é que se pode chamar isso de governar), foi enviada por Mim.
Que mania que esse pessoal tem de meter Meu Santo Nome em tudo!
Comigo não, violão!
Me inclua fora dessa.
Se Eu enviei essa besta pra algum lugar foi lá pro andar de baixo e o nem o Coisa-Ruim aceitou.

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A propósito de recusas, outro idiota desses, um pastor, um desses que se dizem Meus homens, andou dizendo que Eu devia "remover" quem é contra o Estrupício. Ele pensa que o mundo é uma rede social que Eu saio removendo quem Eu bem entendo? Bom..., na verdade não é muito diferente disso. O pessoal aqui desenvolveu um aplicativo muito afudê que Me permite controlar tudo pelo Céu-lular. É o Lifebook. Esse programinha faz milagres! Pra nascer alguém, é só clicar "incluir", pra eliminar da rede mundial, eu clico "remover". Boa ideia, bispo. Tô com o dedo coçando pra remover alguém...

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Se Eu tivesse esse App na época da criação do mundo Eu não teria precisado de uma semana pra fazer tudo.

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Por falar em criação, avisa o Burrinho, filho do Burro-Sênior, que o Adão e a Eva não permitem que cortem as árvores da época que eles estavam aí. Kkkkkkkk!!!
(Meu Eu do céu! É cada um que Me aparece nesse país de vocês!)

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É bom não falar muito em aparecer que a Anta-Mor, o presidente de vocês, é capaz de bater aqui em casa de surpresa. Pelo que Eu andei sabendo ele gosta de pintar na casa dos outros sem ser convidado. Não é isso?
Se bem que, pra vocês, não seria má ideia ele pintar por aqui.
(Ah, vocês acham que ele quase veio pra cá naquele lance da facada?)
Ih, aquilo não valeu. Eu posso garantir. Eu vi tudo daqui. 
Eu sou testemunha de que era fria.

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Mas é muito idiota nesse país!
Eu não sei como é que Eu fui colocar tanto imbecil junto ao mesmo tempo no mesmo lugar.

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Mas, brasileiros, nem tudo é motivo pra lamentar.
O cantor aquele do "Deus lhe Pague" ganhou o prêmio Camões, o cinema de vocês fez bonito em Cannes...
Beleza!!!
Parabéns!
A cultura salva o país de vocês.
Pena que o Idiota-Master quer acabar com a cultura.
Pode???
É... Foi quem vocês escolheram pra presidente...

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E falando em presidente, o Chiquito, aquele lá do Vaticano, Me disse que enviou uma carta pro carinha aquele dos nove dedos. O que tá preso.
Na tal da carta diz que o "bem vencerá o mal"...
Vou dar uma olhada aqui no Lifebook, ver qual a verdade e se a justiça daí estiver fazendo merda, podexá que a Minha tarda mas não falha. 

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Ao contrário do que Eu tinha falado antes sobre os que vocês gostariam que viessem Me visitar e ficassem por aqui, tem aqueles que vocês não queriam que subissem nunca. Chegou por aqui, há pouco a Beth. Sei que vai fazer falta pra vocês mas todo mundo acaba tendo que vir uma hora. 
A mulher é só alegria! Chegou e já encontrou o Cartola, o Cavaquinho, o Jamelão, a Dona Ivone e a roda de samba tava feita. 
Não fiquem tristes por ela. Ela tá bem aqui.

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Bom. agora Eu tenho que ir que Eu ainda tenho que aprender a mexer melhor nesse aplicativo que tá me deixando louco.

Sem desespero, brasileirada!
Estamos consertando o software do Brasil e assim que estiver pronto Eu dou um toque.
Talkei?

Orações, pedidos, súplicas, manutenção de softwares, orientação para aplicativos, pedidos de amizade, devolução de encomendas, cartas de solidariedade, tudo para...
god@voxdei.gov


Fiquem Comigo e vamos juntos e shallow now!
Que Eu lhes abençoe.




Ele

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Velha Guarda da Portela – Parque da Redenção – Porto Alegre/RS (28/11/2014)




A Velha Guarda no palco da Redenção
(foto; Tita Strapazzon)
Corri pra ver, pra ver quem era/
Chegando lá era a Portela”.

Como são essas coisas da vida, né? Leocádia e eu não pudemos comparecer ao show do guitarrista Stanley Jordan, no Canoas Jazz Festival, o qual eu mesmo havia anunciado aqui no Clyblog como me sendo imperdível. Porém, um dia antes, tivemos a oportunidade de assistir a outro show de total arrebatamento. Pois mesmo sabendo em cima do laço, fomos. Coincidentemente antecipando a semana em que se comemora o Dia Nacional do Samba (2/12), o mais autêntico dos ritmos brasileiros pôs os dois pés em Porto Alegre. Em celebração aos 80 anos de Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Velha Guarda da Portela foi convidada para uma apresentação gratuita no Parque da Redenção. Um verdadeiro espetáculo, histórico na cidade, que me fez lembrar outro memorável ocorrido de 1996, quando o nobre portelense Paulinho da Viola tocou no mesmo local.

Mestre Monarco, aos 80 anos,
comandando o samba
(foto: Tita Strapazzon)
 Comandada pelo mestre Monarco (que também completou indizíveis 80 primaveras em 2014), a Velha Guarda da Portela agitou e emocionou, pondo pra sambar e cantar o grande público que esteve presente naquela noite ao ar livre. Sou apaixonado pelo conjunto desde os anos 90 quando, assistindo a um programa Ensaio, da TV Cultura, os descobri cantando junto com um de seus vários integrantes que já foram, Manacéa (o qual estava presente não só em sons como na pessoa de sua filha, Áurea Maria, uma das três pastoras do grupo). Fiquei tão maravilhado com o que vi que, guri afoito por registrar aquilo que gostava, pus um VHS para gravar o restinho de programa, que já havia começado. Bem fiz. Pude, com isso, conhecer, dentre algumas outras, pérolas como a tocante “Quantas lágrimas” (“Ah, quantas lágrimas eu tenho derramado/ Só em saber que não posso mais/ Reviver o meu passado...”) e o poup-pourriMau Procedimento/ Mulher ingrata/ Nega Danada”, ambas tocadas no show.

Mas foram muito mais que estas. Muito mais. Empolgados com a receptividade do público gaúcho, mandaram ver um show de quase 2 horas e meia, quando executaram não apenas sambas da escola que pertencem, mas de vários outros autores e agremiações, como o Império Serrano Silas de Oliveira, homenageado com “Senhora Tentação” e seu grande sucesso, o samba-enredo “Aquarela Brasileira” (considerada por Monarco como o mais bonito samba já escrito). Todo o público cantou junto de ponta a ponta a canção, que começa com os inconfundíveis versos: “Vejam essa maravilha de cenário/ É um episódio relicário...” Igualmente, a empolgante “É Hoje”, de Didi e Mestrinho, samba-enredo da União da Ilha de 1982, um dos mais célebres da história dos carnavais. Pra arrebatar os amantes do samba, Monarco, com sua voz de barítono e modos elegantes típicos de um monarca do morro, presenteou-nos com “O Sol Nascerá” (“A sorrir eu pretendo levar a vida/ Pois chorando eu via mocidade perdida...”), emblemático samba do gênio mangueirense Cartola. As emoções, no entanto, ainda não terminariam por aí.

Obras da Portela mesmo foi o que não faltou. Paulo da Portela, Chatim, Ventura, Antonio Caetano, Alvaíde, Mijinha, Chico Santana. Os nomes dos poetas e músicos desconhecidos do morro vêm à tona quando a Velha Guarda toca. A começar pelo “abre-alas” “Esta Melodia”, de Jamelão e Babu da Portela, composição híbrida das duas mais tradicionais escolas de samba do Rio, que ficou conhecida na voz de Marisa Monte. Paulo da Portela, fundador, principal compositor e exemplo para toda a geração de sambistas portelenses, foi, obviamente, lembrado mais de uma vez. “Hino Da Velha Guarda Da Portela” dele, foi executada, mas seu nome é mencionado seguidamente, como nas letras de “Corri pra ver” (“Foi mestre Paulo seu fundador/ Nosso poeta e professor”), “Passado de Glória” (“Em Oswaldo Cruz, bem perto de Madureira/ Todos só falavam Paulo Benjamin de Oliveira”) e “De Paulo a Paulinho”, que Monarco (autor também das duas anteriores) fez para homenagear o mestre e seu discípulo, unindo passado e presente: “Antigamente era Paulo da Portela/ Agora é Paulinho da Viola...”
As pastoras Áurea, Neide e Tia Surica, divinas.
(foto: Tita Strapazzon)
Paulinho, aliás, foi igualmente lembrado. “Foi um Rio que Passou em Minha Vida” foi entoada com gosto pela plateia. Candeia, outro dos grandes, também não faltou à festa, num samba cantado por Sérgio Procópio, que comandava o cavaquinho. Ele – atual presidente da Portela e parecido com Candeia, inclusive – relembrou “Dia de Graça”, dos clássicos do compositor, muito bem selecionada no set-list, pois soou extremamente adequada àquele público ligado à universidade e pela ocasião comemorativa à UFRGS. Contando a história de um filho de sambista do morro que consegue chegar à faculdade, a poética letra desfecha assim: “E cante o samba na universidade/ E verás que seu filho será príncipe de verdade/ Aí então jamais tu voltarás ao barracão”. Dele, também teve a parceria com Casquinha “Falsas Juras”, com aquela impressionante escalada vocal das pastoras no refrão: “Não adianta aos meus pés se ajoelhar/ Pode chorar, pode chorar”.

Em meio a tanta beleza, ainda tiveram a filosófica “O Mundo é Assim” (“O mundo passa por mim todos os dias/ Enquanto eu passo pelo mundo uma vez...”), de Alvaíde; “Tudo azul”, de Ventura; a linda “Lenço”, de Chico Santana e Monarco; e “Você me abandonou”, de letra extremamente feminista (“Você me abandonou/ Ô ô, eu não vou chorar/... O castigo que eu vou te dar é o desprezo/ Eu te mato devagar”), mas composta por um homem, Alberto Lonato. De Monarco, simpático e feliz pela ocasião, não faltaram igualmente suas numerosas composições importantes para o repertório do grupo. Além das já citadas, teve dele também “Portela desde que eu nasci” – seu primeiro sucesso, na voz de Martinho da Vila, quando ele, Monarco, ainda era um mero guardador de carros, nos anos 70 –, sua primeira composição, escrita quando tinha 13 anos, e os hits na boca de Zeca Pagodinho: a gostosa “Vai Vadiar” e a iluminada “Coração em Desalinho”, dos mais lindos sambas jê escritos: “Agora uma enorme paixão me devora/ Alegria partiu, foi embora/ Não sei viver sem teu amor/ Sozinho curto a minha dor”.

A comoção não parou por aí. Vieram outros clássicos como “O Amanhã” (“Como será o amanhã/ Responda quem puder...”), clássico samba-enredo, e “Portela na Avenida” (Mauro Duarte e Paulo Cesar Pinheiro), imortalizada por Clara Nunes, que pôs tudo mundo pra sambar e cantar, acendendo a galera, num verdadeiro êxtase: “Salve o samba, salve a santa, salve ela/ Salve o manto azul e branco da Portela/ Desfilando triunfal sobre o altar do carnaval”. Simplistamente um espetáculo.

A delicadeza, a simplicidade, a pureza da poesia destes sambas, unida às engenhosas e límpidas melodias que se situam entre o partido-alto, o sambe-enredo, o samba-de-roda, o batuque, o maxixe. Assim são os sambas que a Velha Guarda da Portela, com o perdão do trocadilho, guarda. Já escrevi sobre isso no meu blog: a Velha Guarda abre um real espaço documental de registro de obras que, não fosse a valorização de apreciadores ilustres – como Paulinho e Marisa, que, em épocas diferentes, motivaram sua existência e manutenção –, perder-se-iam no terreiro de Madureira num pagode qualquer e, talvez, caíssem no esquecimento dos tempos. Ainda bem que não, para o bem de amantes desses sambas como nós que podem, ainda hoje, ser arrebatados como fomos naquela histórica noite na (ou “de”) Redenção.




quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Música da Cabeça - Programa #179


Se é pra ter aglomeração, então que seja de música boa! E isso é o que não vai faltar no MDC! Olha só quanto som legal no mesmo espaço: The Velvet Underground, Noel Rosa, Pink Floyd, Cartola, New Model Army, Gal Costa e mais. Fora isso, ainda os quadros fixos e móvel. Tudo junto e misturado hoje, às 21h, na aglomerante Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. Porque música legal não precisa de distanciamento.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Milton Nascimento - "Geraes" (1976)

 

"Esses gerais são sem tamanho."
Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas"

"Sou o mundo, sou Minas Gerais."
Da letra de "Para Lennon e McCartney", de Lô Borges, Marcio Borges e Fernando Brant


Tom Jobim e o desenho sinuoso e sensual da Rio de Janeiro. 

Dorival Caymmi e a Bahia dos pescadores e santos do candomblé. 

Moondog e as pradarias inóspitas do Wyoming. 

Robert Johnson e as infinitas plantações de algodão do Mississipi. 

Violeta Parra e a imensidão das cordilheiras andinas. 

É sublime quando um músico consegue atingir tamanha simbiose entre ele e seu espaço, a ponto de passar a representar, através de sua arte, uma paisagem física. É como se ele fosse, por intermédio dos sons, não originário deste lugar, mas, sim, o próprio lugar.

Milton Nascimento é um destes seres que, como o próprio nome indica, nasce e gera a própria terra, Minas Gerais. O homem que integra a seu próprio nome um estado inteiro, o seu mundo. E não digam que Mi(lton) Nas(cimento) é mera coincidência linguística! Mais correto é afirmar que os Deuses - os do candomblé, da Igreja, muçulmanos, indígenas, todos aqueles que perfazem a cultura mineira - assim quiseram a este carioca desgarrado abraçado como um filho pelos morros de cor ferrosa das Gerais, os quais, junto à lúdica maria fumaça, ele mesmo representa na icônica capa em desenho a próprio punho. Como um ser pertencente àquela terra a qual se homogeiniza. 

Em meados dos anos 70, Milton já havia percorrido muita estrada de terra na boleia de um caminhão. Na faixa dos 35 anos, pai, casado, consagrado no Brasil e no exterior, idolatrado e gravado por Elis Regina, mentor do movimento musical mais cult da modernidade brasileira, autor de algumas das obras mais icônicas do cancioneiro MPB. O reconhecido talento como compositor, cantor, arranjador e agente catalisador misturava-se, agora, com a sabedoria da maturidade - como se ainda coubesse mais sabedoria a este ser nascido gênio. Quase que naturalmente a quem já havia ganhado o centro do País e desbravado o principal mercado fonográfico do mundo, o norte-americano, Milton, então, volta-se à sua própria essência: a terra que lhe é e a qual pertence. 

Mas Milton, carinhosamente chamado de Bituca por quem o ama, não faz isso sozinho, visto que convoca seu talentoso Clube da Esquina, reforçando o time de amigos, inclusive. Se "Minas", a primeira parte deste duo de álbuns gêmeos, explora a grandiosidade das geraes Guimarães Rosa de Drummond, seja em sons e letras, "Geraes" solidifica essa ideia quase que como um milagre: um homem torna-se seu próprio som. Ou melhor: transforma-se em montanha para, do alto de topografia, emitir a sonoridade da natureza. Samba, rock, soul, folk, jazz, toada, sertanejo, candombe, trova, oratório... world music, não só por acepção, mas por intuição, é o termo mais adequado para classificar.

A ligação entre uma palavra e outra, entre um título e outro, entre um disco e outro, se dá pelo mesmo acorde que desfecha “Simples”, última faixa de "Minas", e abre, em ritmo de toada mineira, a linda "Fazenda" (“Água de beber/ Bica no quintal/ Sede de viver tudo/ E o esquecer/ Era tão normal que o tempo parava"). A religiosidade católica do povo, traço cabal da cultura mineira, transborda tanto em "Cálix Bento", com a marca do violão universal de Milton e o emocionante arranjo de Tavinho Moura sobre tema da Folia de Reis do norte de Minas, quanto em "Lua Girou", outro tema do folclore popular – este da região de Beira-Rio, na Bahia – vertida para o repertório pela habilidosa mão do próprio Bituca. 

O lado político, claro, está presente. Milton, consciente da situação do País e jamais acovardado, não havia esquecido das recentes retaliações da censura que quase prejudicaram seu "Milagre dos Peixes", de 3 anos antes, um verdadeiro milagre de ter sido gestado com tamanha qualidade. O parceiro e produtor Ronaldo Bastos, além da concepção da capa, é quem pega junto em "O Menino", escrita anos antes pelos dois em homenagem ao estudante Edson Luís, assassinado em 1968 em um confronto com a polícia no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, episódio que uniu a sociedade em protestos que culminaram com a famosa Passeata dos Cem Mil contra a Ditadura Militar. E que luxo a banda que o acompanha: João Donato (órgão), Nelson Angelo (guitarra), Toninho Horta (guitarra), Novelli (baixo), e Robertinho Silva (bateria). Com a mira militares a outros artistas naquele momento, como Chico Buarque, Milton pode, enfim, lançar a música e não se calar diante da barbárie. 

Quem também garante o grito de resistência é um recente e igualmente genial amigo, com quem tanto e tão bem Milton produziria a partir de então. Justamente o então visado Chico Buarque. É com ele que Milton canta a canção-tema do filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos", de Bruno Barreto, um sucesso de bilheteria no Brasil à época, "O que Será (À Flor da Pele)". Fortemente política, a letra, cantada com melancolia e até tristeza, reflete os tempos de iniquidade humana: "O que será que será/ Que dá dentro da gente que não devia/ Que desacata a gente, que é revelia/ Que é feito uma aguardente que não sacia/ Que é feito estar doente duma folia/ Que nem dez mandamentos vão conciliar/ Nem todos os unguentos vão aliviar/ Nem todos os quebrantos, toda alquimia/ Que nem todos os santos, será que será...". Gêmea de "O que Será (À Flor da Terra)", Milton retribui o convite e divide com Chico os microfones desta última no álbum dele naquele mesmo ano, o não coincidentemente intitulado “Meus Caros Amigos”


Milton e Chico: encontro mágico promovido à época
de "Geraes" e que deu maravilha à música brasileira

A maturidade filosófico-artística de Milton era tão grande, que as dimensões do que é grande ou pequeno, do que é parte ou geral, se reconfiguram numa consciência elevada de humanidade. A ligação universal de Milton com sua terra passa a significar o ligar-se a América Latina. Afinal, sua Minas é, como toda a latinoamérica, dos povos originários. “San Vicente” e "Dos Cruces", de "Clube da Esquina”, já traziam essa semente que “Geraes”, mais do que “Minas”, solidificaria, que é essa visão ampla do território, dos povos. Primeiro, na realização do sonho de cantar Violeta Parra com Mercedes Sosa. Apresentada a Milton por Vinícius de Moraes, La Negra divide com Milton os microfones da clássica “Volver a los 17”. Igualmente, vê-se o encontro dos rios do Prata e São Francisco, que não poderiam deixar de fazer brotar aquilo que os perfaz e lhes dá sentido: água. É com o conjunto de jovens chilenos deste nome, amigos recém conhecidos, que Milton instaura de vez, na acachapante “Caldera”, a alma castelhana dos hermanos na música popular brasileira – convenhamos, muito mais do que os músicos da MPG, cuja proximidade regional do Rio Grande do Sul propiciaria tal fusão mais naturalmente. É o canto dos Andes – mas também de Minas – sem filtro. 

As amizades, aliás, estão presentes em todos os momentos, e o território de Milton é como uma grande aldeia onde ele, consciente de seu papel de pajé, mantém a egrégora sob a força do amor. Fernando Brant, parceiro desde os primeiros tempos, coassina aquela que talvez seja a música mais sintética de todo o disco: “Promessas De Sol”. A sonoridade latina das flautas andinas, a percussão marcada pelo tambor leguero, o violão sincrético de Milton e os coros constantes e tensos dão à canção a atmosfera perfeita para um os mais fortes discursos políticos que a Ditadura presenciou em música. “Você me quer belo/ E eu não sou belo mais/ Me levaram tudo que um homem precisa ter”. Épica, como uma ópera guarani, a melodia vai escalando de um tom baixo para, ao final, se encerrar com intensos vocais de Milton bradando, denunciativo: “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?” 

Parece que não cabe mais emoção num álbum como este. Mas cabe. A brejeira “Carro De Boi”, de Cacaso e Maurício Tapajós (“Que vontade eu tenho de sair/ Num carro de boi ir por aí/ Estrada de terra que/ Só me leva, só me leva/ Nunca mais me traz”) casa-se com a inicial “Fazenda” seja na ludicidade ou na sonoridade ao estilo de cantiga sertaneja. Mas tem também a jazzística e comovente “Viver de Amor”, em que novamente Ronaldo, desta vez em parceria com o excepcional Toninho Horta, compõem para a voz cristalina de Milton uma das canções românticas mais marcantes de toda a discografia brasileira. Ronaldo, múltiplo, também tira da cartola mais uma vez com Milton outra joia do disco, que é o samba-jongo “Circo Marimbondo”. Assim como Milton, de ouvido tão absoluto quanto sensível, fizera ao contar com a voz de Alaíde Costa para cantar com ele "Me Deixa em Paz" em “Clube da Esquina”, aqui ele vai na fonte mais inequívoca para este tipo de proposta musical que une África e Brasil: Clementina de Jesus. Na percussão, além de Robertinho no tamborim e surdo, também outros craques da “cozinha”: Chico Batera, no agogô; Mestre Marçal, cuíca; Elizeu e Lima, repique; e Georgiana de Moraes, afochê. E que delícia ouvir o canto anasalado e potente da deusa Quelé acompanhada pelo coro de Tavinho, Miúcha, Chico, Georgiana, Cafi, Fernando, Bebel, Ronaldo, Bituca, Vitória, Toninho e toda a patota! 

Para encerrar? A música que conjuga o primeiro e o segundo disco, o corpo e o espírito: “Minas Geraes”. O violão carregado de traços étnico-culturais de Milton, sua voz que escapa do peito emoldurando-se ao vento, a docilidade das madeiras, a singeleza do toque do bandolim. Clementina, em melismas, embeleza ainda mais a canção, lindamente orquestrada por Francis Hime – outro novo amigo cooptado por Milton da turma de Chico. Tudo converge para um final emocionante, que, como os próprios versos dizem, saem do “coração aberto em vento”: “Por toda a eternidade/ Com o coração doendo/ De tanta felicidade/ Todas as canções inutilmente/ Todas as canções eternamente/ Jogos de criar sorte e azar”. 

Ouvindo-se “Minas” e “Gerais”, duas obras não somente maduras como altamente densas, simbólicas e encarnadas, é impossível não ser fisgado pelo mistério da música de Milton Nascimento. Encantamento que remete ao mistério da criação, o mistério da vida. Wayne Shorter, parceiro de Milton e mutuamente admirador, quando perguntado sobre esta esfinge que é a obra do amigo, diz: “Bem, ouça você mesmo, pois não há palavras para descrever. Apenas sinta”. Milton, que completa 80 anos de vida sobre o mundo, o seu mundo, é tudo isso: uma força da natureza. Ele é mais do que música: é som em estado puro. É mais que tempo: é a harmonia do espaço. 

Milton é mais do que homem: é pedra. Eterna.

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É impressionante perceber hoje, em retrospectiva, que o encontro de dois gênios da música brasileira se deu exatamente na época deste trabalho. Depois de aberta a porteira da fazenda de Milton para Chico, só vieram coisas lindas. Além de parcerias nos anos subsequentes - inclusive no célebre "Clube da Esquina 2", de 1978 - naquele mesmo ano de 1976 os dois se reuniriam para gravar o compacto "Milton & Chico", lançado oficialmente um ano depois. Incluído em "Geraes" na versão para CD, esta gravação clássica dos dois traz duas faixas: a melancólica "Primeiro de Maio", que denuncia a vida oprimida do trabalhador brasileiro no feriado dedicado a ele, e "O Cio da Terra", também combativa e ligada ao trabalhador, mas do campo, que se tornaria uma das canções emblemáticas do repertório tanto de Chico quanto de Milton.

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FAIXAS:
1. "Fazenda" (Nelson Angelo) - 2:40
2. "Calix Bento"(Folclore popular - Adap.: Tavinho Moura) - 3:30
3. "Volver a los 17" - com Mercedes Sosa (Violeta Parra) - 5:10
4. "Menino" (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:47
5. "O Que Será (À Flor da Pele)" - com Chico Buarque (Chico Buarque) - 4:10
6. "Carro de Boi" (Maurício Tapajós/ Cacaso) - 3:40
7. "Caldera (instrumental)" - com Grupo Agua (Nelson Araya) - 4:25
8. "Promessas do Sol" - com Grupo Agua (Milton Nascimento/ Fernando Brant) - 5:00
9. "Viver de Amor" (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos) - 2:34
10. "A Lua Girou" (Milton Nascimento) - 3:42
11. "Circo Marimbondo" - com Clementina de Jesus (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:55
12. "Minas Geraes" com Grupo Agua e Clementina de Jesus (Novelli/ Ronaldo Bastos) - 5:13

Faixas bônus da versão em CD:
13. "Primeiro De Maio" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 4:46
14. "O Cio Da Terra" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 3:48


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OUÇA O DISCO
Milton Nascimento - "Geraes" 


Daniel Rodrigues