da letra de “Haddock
Lobo, Esquina com Matoso”
Ed Motta, profundo conhecedor da música soul e, além de tudo, sobrinho de Tim Maia, disse certa vez: “’Nêgo’ tá de bobeira com negócio de [Tim
Maia] Racional, muito menos musical. O lance é esse aqui.” O “lance” a que
ele se refere é “Nuvens”, que seu
tio gravara em 1982. Uma preciosidade da soul
music brasileira da fase final da era black
rio que Tim foi, se não o principal, um dos protagonistas juntamente com
Cassiano, Hyldon, Dom Salvador, Érlon Chaves, Oberdan Magalhães, Carlos Dafé,
entre outros craques. Tudo gente da maior categoria, músicos de primeira, a
quem Tim, em “Nuvens”, faz questão de reverenciar de uma forma ou de outra.
O disco, assim, é uma volta às raízes da errante carreira desse junkie total chamado Tim Maia (afinal, o
cara, cheirava, fumava, bebia e comia, tudo em excesso). Tim já era uma lenda desde
o final dos anos 50, antes mesmo apresentar seu gogó de veludo ao mundo do
entretenimento. Nos anos 60, viajou, no peito e na raça (negra), para os
Estados Unidos em plena ebulição de Luther King e Black Panthers e em uma época
que não era comum um preto sul-americano pobre fazê-lo (ainda não é...) para
viver no gueto de Nova York fazendo música “y
outras cositas mas”. Foi, evidentemente, deportado por porte de drogas... Voltou
ao Brasil, foi gravado pelo já ícone Roberto Carlos e fez dueto com outro
ícone, Elis Regina. Tudo isso antes do seu aguardado – e confirmado – debut solo, "Tim Maia" (1970) (já
resenhado aqui no ClyBlog). Entre sucessos estrondosos ao longo da década
seguinte (“Primavera”, “Não Quero Dinheiro”, “Você”, “Azul da Cor do Mar” e
mais uma dezenas de hits), Tim também
amargou fracassos homéricos, fosse pela sua inabilidade como empresário à
frente da gravadora própria, a Seroma, fosse pelo comportamento de toxicômano
ou pelo seu temperamento irascível, o que lhe indispunha diretamente com toda a
indústria fonográfica. O limite da “irracionalidade” se deu em 1975, quando, em
uma séria crise de abstinência, parou com todas as drogas químicas para se viciar
na Cultura Racional, uma espécie de seita ocultista cuja filosofia ia do nada
ao nada, mas que o motivou a gravar os dois históricos discos “Tim Maia
Racional Vol. 1” e “Vol. 2”.
Após o (óbvio) fracasso do projeto (o Racional virou cult no mundo 30 anos depois sem render,
no entanto, nenhum centavo ao bolso de Tim) e de um retorno com tudo às drogas,
ele limpou-se de novo e ainda se recuperou nas paradas no final dos anos 70,
mas tudo com mais baixos do que altos. Curiosamente, a despeito do caixa
zerado, esse período de sua carreira é extremamente rico e fértil. Maduro como
músico (tocava quase todos os instrumentos, do violão à bateria, além compor,
arranjar e de dominar a mesa de estúdio), Tim enfileira discos excepcionais,
como os homônimos de 1976 (que contém “Rodésia”) e 1978 (o todo em inglês) e
“Reencontro”, de 1979 (o da linda “Lábios de Mel”). “Nuvens”, como Ed Motta
ressalta, é o ápice dessa fase, e um dos segredos para tal êxito está
justamente na volta às origens. Tim, então chegado aos 40 anos, parecia ter compreendido
que era necessário não se afastar de todos, como fizeram na fase Racional, mas,
sim, se reaproximar (física ou espiritualmente) daqueles que construíram sua
história, expondo, assim, o que ele realmente era: um cara de talento ímpar,
excêntrico e difícil, mas generoso e amigo.
Assim, voltam à cena Hyldon, Robson Jorge e, principalmente, o “genial
Genival”: Cassiano, cuja participação já lá no primeiro álbum de Tim é
fundamental. A faixa-título e de abertura, parceria de Cassiano com o “gringo
brasileiro” Deny King, evidencia seu toque refinado. Como destaca Ed Motta: “tema do Cassiano lindaço, moderno
harmonicamente”. De fato, a harmonia bossa-novista, com sinuosidades a la Marvin Gaye, ao mesmo tempo
romântica e espacial, tem a sua cara. O paraibano contribui ainda com seu falsete
e arranjo vocal no refrão, no qual forja, numa improvável alocação, a palavra “você”
dentro de apenas meio tempo do compasso sobre um riff de metais matador. Genial. Genival. Cassiano.
O álbum segue com temas interessantíssimos: o sambão romântico “Outra
Mulher”, ao estilo “Gostava Tanto de Você”, “Réu Confesso” e “Vou Correndo te
Buscar”, característico de Tim; a foliosa “A Festa”, com uma levada de baixo em
escala que é de um groove
impressionante; a autoavaliativa “Ninguém Gosta de se Sentir Só”, cuja gostosa melodia
lembra outra de Tim, “Brother, Father, Sister and Mother” (presente em “Tim
Maia”, de 1976); e a balada quase bolero “Deixar as Coisas Tristes pra Depois”,
também com a mãozinha de Cassiano no coro. Mais uma fruto de parceria com um “brother”, Robson Jorge, “Ar Puro”, de
letra ecologicamente consciente numa época em que não era moda este termo (“Mas eis que estão matando o verde/ E o quê
irá sobrar?/ Sujando os mares e os rios/ O volume do ar/ Ar.”), é daqueles soul super dançáveis, igualmente às
versões de “O Trem”, tanto o tema instrumental (infalível em qualquer disco de
Tim) quanto o “falado”, que tem improvisos super bacanas da banda Vitória Régia.
Ainda no espírito de resgates, Tim chama Hyldon para tocar na
regravação do maior sucesso do amigo, “Na rua, na chuva, na fazenda (Casinha de
Sapê)”, em que empresta seu vozeirão com direito a ouverdub para a pegajosa letra da canção: “Jogue suas mãos para o céu/ E agradeça se acaso tiver...”. Mas para
muitos críticos e fãs é “Haddock Lobo, Esquina com Matoso” – endereço do bairro
da Tijuca, Zona Norte do Rio, ponto de encontro de uns moleques que se
tornariam algumas maiores nomes da MPB dos anos 50 até os dias de hoje – o
verdadeiro hit de “Nuvens”. “Foi lá que
toda a confusão começou”, alerta Tim! Pois foi lá que Tim formou seu
primeiro grupo musical juntamente com Roberto Carlos, Arlênio Lívio (aquele que “pega a pelota”), o “bom menino” Edson Trindade (um
dos grandes parceiros de Tim ao longo da carreira, autor do clássico “Gostava
Tanto de Você”, gravada por Tim em 1973) e Wellington Oliveira, Os Sputniks,
posteriormente, renomeado The Snakes, já sem Tim e Roberto mas com as
substituições de outro Roberto, o China, e de outro Carlos, o Erasmo. Ele recobra esta origem de subúrbio ao trazer situações e personagens,
como Jorge Ben (“A turma estava formada/
Com lindas meninas/ E o Jorge com um camarada/ Era o Babulina”) e os
próprios Roberto e Erasmo (“Erasmo, um
cara esperto/ Juntou com Roberto/ Fizeram coisas bacanas/ São lá da esquina...”).
Como se vê, uma das
lembranças gostosas desse tempo está relacionada a futebol, nas peladas que
batiam pelas ruas quando meninos. Uma menção breve acerca do esporte, mas
bastante simbólica no que se refere ao conceito de resgate emocional (Tim era
um jogador de futebol frustrado) que o disco carrega.
Depois dessa passagem
nostólgico-futebolística, merecem atenção dois funks. O primeiro, “Apesar
dos Poucos Anos”, de Tim e Cajueiro, mas que quem dá a roupagem caprichada é
Cassiano na fineza da harmonia e da linha vocal com sutilezas de Nile Rodgers e Quincy Jones. Por último, justamente a faixa que encerra o disco, “Sol
Brilhante”, uma canção, simplesmente, solar, tal seu colorido e boas energias
que transmite: “Vê que dia lindo/ Com
muito amor, viver sorrindo/ Com este sol da manhã/ Com este sol penetrante/ Sol
brilhante...”. Tudo numa execução exata da banda, num ritmo swingado e com vocal
aberto, cantado pra fora. Inspiração total. O jornalista e escritor Marcello
Campos, admirador e conhecedor da obra do artista, que diz: “’A musica do Sol’ é uma das coisas mais lindamente
felizes e inspiradoras que eu já ouvi. Lindo demais.”
Definitivamente,
“Nuvens” é um dos mais ricos e bem-acabados trabalhos da longa e sinuosa
carreira de Tim Maia, seja pelas interpretações, pelos arranjos perfeitos, pela
diversidade rítmica – percebida antes com tanta variedade, a bem da verdade,
somente nos Racional – ou pelas referências que absorve, que vão desde Banda
Black Rio até Gaye, James Brown, Curtis Mayfield e Stevie Wonder, passando
pelos companheiros de rock e soul dos anos 60-70 e o samba carioca. Tudo isso
não quer dizer, entretanto, que “Nuvens” tenha sido um sucesso. Marcello Campos
confirma isso: “Esse disco é ensolarado
como a capa, mas, por questões ‘tim-maianas’, um fracasso de mercado“. Mas,
como de costume na obra te Tim Maia, virou mitológico tempo depois. Qual a
validade disso? Em relação a Tim Maia, “só não vale dançar homem com homem e
nem mulher com mulher”. O resto vale.
"Haddock Lobo, Esquina com Matoso" - Tim Maia
"Haddock Lobo, Esquina com Matoso" - Tim Maia
FAIXAS:
1. "Nuvens" (Cassiano/Deny King) - 3:05
2. "Outra Mulher" - 3:11
3. "Ar Puro" – (Tim Maia/Robson Jorge) - 3:08
4. "O Trem - 1ª Parte" - 1:56
5. "A Festa" - 4:26
6. "Apesar dos Poucos Anos" (Tim Maia/Beto Cajueiro)- 3:24
7. "Deixar as Coisas Tristes para Depois" (Pedro Carlos
Fernandes) - 2:58
8. "Ninguém Gosta de se Sentir Só" - 3:13
9. "Haddock Lobo, Esquina com Matoso"- 3:53
10. "O Trem - 2ª Parte" - 1:56
11. "Na Rua, na Chuva, na Fazenda (Casinha de Sapê)" (Hyldon)
- 3:38
12. "Sol Brilhante" (Tim Maia/Rubens Sabino) - 2:50
Todas de Tim Maia, exceto
indicadas
OUÇA O DISCO
por Daniel Rodrigues