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segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2024

 


Se liga rapaziada de Liverpool que
o tio Wayne tá chegando
A gente que gosta de falar sobre grandes discos, volta e meia quando descobre alguma coisa, reouve ou reavalia algum disco esquecido, pensa "Eu tenho que escrever sobre esse disco!". Mas aí, muitas vezes, a gente pondera, "Poxa, mas vai ser mais um álbum do Fulano nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS... Já tem tantos". É que tem uns que é inevitável que tenham mais de um. Dois, três..., um monte.  Beatles, por exemplo, muitos defenderiam que toda a discografia estivesse destacada entre os melhores discos de todos os tempos (e não seria nenhum absurdo). Caetano Veloso, Stevie Wonder, Miles Davis, é impossível que em obras tão relevantes que influenciaram gerações, nos impressionemos e nos limitemos a destacar apenas um grande trabalho de cada um deles. Depois de alguns anos fazendo a seção de grandes álbuns, acumuladas grandes obras de diversos nomes desse porte, a gente fica sempre com a curiosidade: quantos discos daquele cara, daquela banda tem nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS?

Então surgem outras curiosidades: a gente vê vários de Rolling Stones, Elton John, Smiths, e se pergunta "Quantos ingleses tem na lista?", aí vê Ramones, Madonna, Herbie Hancock, Aretha Franklin, e compara, "Será que tem mais americanos ou ingleses?", "e os brasileiros, como estão nessa parada?", e vão surgindo categorias e mais categorias. Qual ano tem mais grandes discos lembrados? Qual década se destaca?... E assim criamos o Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, um levantamento que fazemos a cada ano, contabilizando os discos incluídos na última temporada na nossa seção, apresentando então quem está na frente em cada um dos critérios. 

No último ano, entre os artistas internacionais, os Beatles continuam firmes na ponta como aqueles com mais discos citados, mas começam a sentir a proximidade do gênio do jazz Wayne Shorter que vem chegando como quem não quer nada. No âmbito nacional, se Caetano Veloso se manteve à frente por conta de um disco em parceira com Chico Buarque, o mesmo álbum fez com que o próprio Chico se aproximasse e alcançasse a segunda posição. Entre os países, o Brasil, com 8 dos 21 discos destacados no ano, deu um salto na tabela ampliando ainda mais a vantagem em relação aos ingleses, mas ainda longe dos norte-americanos que lideram com folga.  Já nas épocas, a década de 70 continua sendo a que tem mais grandes álbuns mencionados, embora o ano que tenha mais obras seja da década de 80, o ano de 1986. No entanto, no ano passado, por trazer alguns discos que recentemente completavam 50 anos, o de 1974 foi o que apareceu mais na nossa galeria.

 Ainda no que diz respeito aos anos, vamos dar uma 'trapaceada' desta vez: como o disco "Me & My Crazy Self", do bluesman Lonnie Johnson contém gravações de 1947 a 1953, vamos incluí-lo nos anos 40 só porque, até hoje, era a única década que não tinha nenhum disco indicado. Pode ser? (Segredo nosso. Fica entre a gente. Shhhh!!!)

Como destaques tivemos as estreias da talentosíssima musa francesa Françoise Hardy e do subestimado Ivan Lins no nosso seleto grupo de elite; o disco ao vivo de Gilberto Gil, no Tuca, um dos álbuns cinquentões do ano passado; mais um da rainha Madonna para marcar sua grandiosa vinda ao Brasil; e, em ano de Olimpíadas, um disco de atleta, o excelente "Rust in Peace", do faixa preta em taekwondo Dave Mustaine do Megadeth.

Bom, chega de papo-furado: vamos às listas, às colocações, aos números que é o que interessa aqui. Com vocês o Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2024.

Dá uma olhada aí:


*************


PLACAR POR ARTISTA (INTERNACIONAL)

  • The Beatles: 7 álbuns
  • Kraftwerk e Wayne Shorter***: 6 álbuns
  • David Bowie, Rolling Sones, Pink Floyd, Miles Davis, John Coltrane e John Cale*  **: 5 álbuns cada
  • Talking Heads, The Who, Smiths, Led Zeppelin, Bob Dylan, Philip Glass e Lee Morgan: 4 álbuns cada
  • Stevie Wonder, Cure, Van Morrison, R.E.M., Sonic Youth, Kinks, Madonna, Iron Maiden , U2, Lou Reed**, e Herbie Hancock***: 3 álbuns cada
  • Björk, Beach Boys, Cocteau Twins, Cream, Chemical Brothers, Sean Lennon, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Elton John, Queen, Creedence Clarwater Revival, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, Pixies, Dead Kennedy's, Velvet Underground, Metallica, Dexter Gordon, PJ Harvey, Rage Against Machine, Body Count, Suzanne Vega, Beastie Boys, Ride, Faith No More, McCoy Tyner, Vince Guaraldi, Grant Green, Santana, Ryuichi Sakamoto, Sinéad O'Connor, Marvin Gaye e Brian Eno* : todos com 2 álbuns

*contando com o álbum  Brian Eno e John Cale , ¨Wrong Way Out"

**contando com o álbum Lou Reed e John Cale,  "Songs for Drella"

*** contando o álbum "Five Star', do V.S.O.P.



PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Caetano Veloso: 8 álbuns*#
  • Gilberto Gil * **  e Chico Buarque ++ #:  7 álbuns
  • Jorge Ben ** João Gilberto*  ****: 5 álbuns
  • Tim Maia, Rita Lee, Legião Urbana,  , e Milton Nascimento***** º: 4 álbuns
  • Gal Costa, Titãs, Paulinho da Viola, Engenheiros do Hawaii e Tom Jobim +: 3 álbuns cada
  • João Bosco, Lobão, João Donato, Emílio Santiago, Jards Macalé, Elis Regina, Edu Lobo+, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Ratos de Porão, Roberto Carlos, Sepultura, Cartola, Baden Powell***  e Criolo º : todos com 2 álbuns 


*contando com o álbum "Brasil", com João Gilberto, Maria Bethânia e Gilberto Gil

**contando o álbum Gilberto Gil e Jorge Ben, "Gil e Jorge"

*** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas"

**** contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto"

***** contando com o álbum Milton Nascimento e Lô Borges, "Clube da Esquina"

+ contando com o álbum "Edu & Tom/ Tom & Edu"

++ contando com o álbum "O Grande Circo Místico"

# contando com o álbum "Caetano & Chico Juntos e Ao Vivo" 

º contando com o álbum Milton Nascimento e  Criolo "Existe Amor"



PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 3
  • anos 40: 1
  • anos 50: 121
  • anos 60: 101
  • anos 70: 166
  • anos 80: 142
  • anos 90: 108
  • anos 2000: 20
  • anos 2010: 18
  • anos 2020: 3


*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1


PLACAR POR ANO

  • 1986: 24 álbuns
  • 1977 e 1972: 21 álbuns
  • 1969: 20 álbuns
  • 1976: 19 álbuns
  • 1970, 1971, 1985 e 1992: 18 álbuns
  • 1968, 1973 e 1979 17 álbuns
  • 1967, 1975 e 1980: 16 álbuns cada
  • 1983 e 1991: 15 álbuns cada
  • 1965, 1988, 1989 e 1994: 14 álbuns
  • 1987 e 1990: 13 álbuns
  • 1990: 12 álbuns
  • 1964, 1966, 1978: 11 álbuns cada



PLACAR POR NACIONALIDADE*

  • Estados Unidos: 218 obras de artistas*
  • Brasil: 167 obras
  • Inglaterra: 130 obras
  • Alemanha: 11 obras
  • Irlanda: 8 obras
  • Canadá: 5 obras
  • Escócia: 4 obras
  • Islândia, País de Gales, Jamaica, México: 3 obras
  • Austrália, França e Japão: 2 cada
  • Itália, Hungria, Suíça, Bélgica, Rússia, Angola, Nigéria, Argentina e São Cristóvão e Névis: 1 cada

*artista oriundo daquele país
(em caso de parcerias de artistas de países diferentes, conta um para cada)

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Weezer - "Weezer" ou "The Blue Album" (1994)


por Roberto Sulzbach Cortes

“Se você quiser destruir meu suéter, 
segure esse fio enquanto vou embora.”
da letra de "Undone (The Sweater Song)"


Olá, Clybloggers! Antes do ano acabar, venho aqui para falar de um clássico que está completando três décadas em 2024! Sabe aqueles álbuns que, quando você coloca na vitrola (ou onde quer que você escute música), transportam você para aquele tenebroso local de insegurança e incerteza na vida chamado adolescência? Pois é: apesar de eu ter nascido mais de seis anos depois dessa obra ser lançada, o disco de estreia do Weezer, que completa 30 anos e que também se chama "Weezer", mas é comumente conhecido como "The Blue Album" (devido à cor predominante em sua capa), é um dos que mais me vêm à mente.

O ano é 1986 e Rivers Cuomo conhece o baterista Patrick Wilson, e logo, se muda para a casa dele e de seu amigo baixista, Matt Sharp. Cuomo era um rapaz tímido, que não falava direito com meninas, era fissurado em heavy metal e Role-Playing Game (RPG). Ou seja, um “nerd clássico” a la "Vingança dos Nerds". Aliás, uma curiosidade: o nome Rivers vem do inglês e se traduz como “rios”. Segundo sua mãe, é porque ele nasceu em Manhattan, entre o Rio Hudson e o Rio East. Contudo, seu pai, Frank Cuomo (também músico, tocou bateria no "Odyssey of Iska", do jazzista Wayne Shorter), dizia que era por conta de três jogadores da Copa do Mundo de 1970: os italianos Riva e Rivera, e o brasileiro Rivelino. Ao residir com os futuros colegas de banda, o metaleiro foi se afastando do gênero e se aproximou do grunge, que estava borbulhando na costa oeste, por meio de bandas como Soundgarden, Mudhoney, Pearl Jam e, claro, Nirvana, além de umas pitadas de artistas precursores, como Pixies e Sonic Youth.

Em 1992, os três roommates se juntaram ao guitarrista Jason Cropper (que, durante as gravações do primeiro álbum, foi trocado por Brian Bell por divergências pessoais) e formaram a Weezer. Àquela altura, já tocavam canções que viriam a integrar o "Blue Album", como "Sweater Song" e "Say It Ain’t So", mas ainda não tinham a aderência que viriam a conquistar. Até que Rivers gravou uma K7 que chamou a atenção da Geffen Records. Das oito músicas contidas na fita, cinco apareceram no eventual disco de estreia.

Em agosto de 1993, o quarteto entrou no Electric Ladyland, em Nova Iorque, junto do produtor Rick Ocasek, vocalista do The Cars. Praticaram muito as harmonias, que fariam parte integral da sonoridade do álbum, e definiram que as guitarras precisavam soar tão altas quanto as de "Creep", do Radiohead, lançada um ano antes. O resultado foi um hit atrás do outro, daqueles discos que podem tocar inteiros no rádio sem causar tédio em nenhum ouvinte.

A abertura é com o dedilhado de violão de "My Name is Jonas" e, na prática, explica que a tônica é o power pop direto, sem firulas. Além disso, pouco mais de 10 anos depois, ela fez parte da infância e adolescência de uma nova geração, por meio do jogo de videogame Guitar Hero III. Machismo nunca foi tão pegajoso quanto em "No One Else", em que o locutor terminou com sua namorada porque ela ria das piadas de outros homens e ele desejava alguém que não risse para ninguém além dele, e que ficasse em casa enquanto ele estivesse fora.

"The World Has Turned and Left Me Here" é o completo oposto da faixa anterior. O refrão fala que “o mundo girou e me deixou aqui, onde eu estava antes de você aparecer” e que “no seu lugar, um espaço em branco preencheu o vazio atrás do meu rosto”. Além disso, destaco a abertura da bateria de Patrick Wilson: sempre me pega. "Buddy Holly" é o "hit dos hits". Referenciando o ícone do rock dos anos 50, é um hino atemporal, cultuado por jovens e adultos ao redor do globo e que ganhou o célebre videoclipe de Spike Jonze, sucesso na MTV à época. Seu riff é meme no TikTok, e é impossível achar algo que esteja errado na música. Steve Baltin, da Cash Box, disse que você deve amar uma música que faz referência a Mary Tyler Moore. Eu não poderia concordar mais.

"The Sweater Song" começa a explorar as ansiedades e inseguranças que nosso narrador apresentou em "No One Else". A canção inicia com diálogos de dois amigos em primeiro plano (interpretados por Sharp e Karl Koch, amigo de longa data do grupo e considerado “o quinto Weezer”), enquanto sons de festa são perceptíveis ao fundo. Cuomo começa a cantar versos curtos sobre o suéter que está se despedaçando com as interações que ele tem com as pessoas - uma metáfora para sua própria saúde mental frente à fobia social que sofria. "Surf Wax America" acelera a batida novamente e aborda o distanciamento que amizades e relações sofrem com o desgaste do tempo.

Talvez a música mais interessante do projeto seja "Say It Ain’t So". A canção surgiu de um momento em que Cuomo chegou em casa, encontrou uma garrafa de cerveja no congelador e entrou em pânico. O trauma da separação dos pais, causada pelo alcoolismo de Frank, seu pai, fez com que ele temesse pela relação de sua mãe com o padrasto, a quem tinha grande apreço. Em um trecho, a letra se traduz: “Como pai, padrasto, o filho esta se afogando da avalanche”. "Say It Ain’t So" surge dessa angústia, desse pedido para que a história não se repetisse.

Em "In the Garage", Cuomo fala sobre como “dentro da garagem”, ele se sente seguro, junto de seu jogo de tabuleiro RPG Dungeons and Dragons, da Kitty Pryde, do Noturno (ambos, dos X-Men) e de sua guitarra, e como “ninguém se importa com o seu jeito”. Lembrando algo que disse no começo do texto: Cuomo é um nerd, esquisitão e que não se encaixa direito na sociedade em que vive. Em "Holiday", o objetivo é fugir para um lugar distante, em uma batida harmônica, parecendo uma versão eletrificada dos Beach Boys.

Assim como "My Name Is Jonas" tem um "cheiro de abertura”, "Only In Dreams" foi fabricada para finalizar a obra. A linha de contrabaixo de Matt Sharp é afiadíssima (com o perdão do trocadilho em inglês: sharp é “afiado”) e é protagonista na melodia durante seus 7 minutos e 59 segundos de duração. A tônica do álbum é encerrada com a história de um jovem que gosta de uma menina, mas não tem a coragem de ir atrás dela; portanto, é apenas nos seus sonhos que ele fica com ela. A narrativa é, proporcionalmente, pequena perto da duração dos seus quase oito minutos, mas os arranjos nos contam até mais da história do que a própria letra. Da metade para o final, um épico musical é formado e se torna a despedida perfeita para um álbum que gira em torno da esquisitice que é ser adolescente, a busca por aceitação e a procura do amor perfeito que os hormônios mais ladinos provocam nos jovens de geração em geração.

As gravações foram finalizadas em setembro de 1993, com o lançamento previsto para maio de 1994. Kurt Cobain faleceu tragicamente em abril de 1994 e, com ele, toda a onda grunge perdeu um de seus principais expoentes. Contudo, a música “alternativa” estava espalhada por todo o mainstream, e a porta estava aberta para quem quisesse a atenção das massas, algo que, talvez, possibilitou que o "Blue Album" (lançado menos de um mês depois) se tornasse o sucesso que se tornou. Além de, claro, clipes produzidos pelo Spike Jonze são sempre bem-vindos.

Clássico clipe de "Buddy Holly", da Weezer, 
com direção de Spike Jonze


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FAIXAS:
1. "My Name Is Jonas" (Jason Cropper, Patrick Wilson, Rivers Cuomo) - 3:23
2. "No One Else" - 3:14
3. "The World Has Turned And Left Me Here" (Wilson, Cuomo) - 4:26
4. "Buddy Holly" - 2:40
5. "Undone - The Sweater Song" - 4:55
6. "Surf Wax America" (Wilson, Cuomo) - 3:04
7. "Say It Ain't So" - 4:18
8. "In The Garage" - 3:56
9. "Holiday" - 3:26
10 "Only In Dreams" - 8:03
Todas as composições de autoria de Rivers Cuomo, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Cartola - "Cartola" (1974)


“Por incrível que pareça, esse disco que só a perspectiva histórica permitirá compreender, no futuro, é o primeiro long-play de um dos poucos verdadeiros gênios da música popular brasileira”. 
José Ramos Tinhorão

“Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. O nobre, o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada". 
Carlos Drummond de Andrade

Há 50 anos o Brasil corrigia um erro crasso de, pelo menos, outro meio século anterior. Um dos maiores autores da música popular brasileira, finalmente, registrava sua obra pela própria voz: Angenor de Oliveira, o Cartola. Assim como ocorreu com outros sambistas prejudicados pela disfunção anacrônica da indústria fonográfica de um país desleixado com sua própria cultura (leia-se Nelson Sargento, Dª Ivone Lara, Clementina de Jesus, Adoniran Barbosa e outros velhos bambas desafortunados), Cartola, à exceção de uma rara gravação de 1965 junto ao coro da Escola de Samba do compositor Almeidinha, só pode realizar esse feito na terceira idade, aos 65 anos de uma vida sofrida e batalhada. Como a de todo brasileiro pobre, mas que, por mérito, deveria ser poupada a gênios como ele.

O ano foi 1974 e Sérgio Cabral, no texto da contracapa do LP, celebrava que, finalmente, havia um disco do grande Cartola. A realização deste feito, no entanto, se deve em grande parte ao destino e ao sentimento de dívida para com Cartola alimentado por algumas personalidades importantes da cultura carioca. O primeiro ė Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, jornalista e cronista que, em 1956, certa noite, descobriu que o já histórico compositor e fundador da Mangueira, dado por ele como morto, estava num subemprego de lavador de carros, ajudando-o, por fim, a retornar à carreira musical. Anos depois, nos anos 60, preterido pelos sambas-canções bolerizados e, principalmente, pela bossa-nova, Cartola se desilude, mas volta aos holofotes quando, em plena Ditatura Militar os jovens ligados ao CPC/UNE passam a valorizar artistas da velha-guarda do samba como ele. É quando participa, por iniciativa de Hermínio Bello de Carvalho, do memorável projeto "Fala, Mangueira" ao lado de outros bambas de seu calibre: Nelson Cavaquinho, Clementina, Carlos Cachaça e Odete Amaral

Impossível não citar ainda outro ardoroso venerador de Cartola dos que lhe ajudaram em vida e que foi responsável por, enfim, colocá-lo num estúdio: João Carlos Botezelli. Produtor musical e fã, Pelão levou a ideia ao selo Marcus Pereira de gravar um LP da lenda viva do samba. As sessões ocorreram entre os dias 20 e 21 de fevereiro e 16 e 17 de março daquele ano, contando com as participações de exímios músicos, como o percussionista Mestre Marçal, o violonista e arranjador Dino 7 Cordas, o flautista Copinha e o trombonista Raul de Barros. Não havia músico no Rio que quisesse perder aquela oportunidade de participar de um momento histórico: Cartola lançaria seu primeiro álbum solo, que já nascia clássico.

Basta ouvir os primeiros acordes da faixa inicial, “Disfarça e Chora”, para perceber que se inaugurava ali uma era na música brasileira – ou melhor, se resgatava o tempo perdido. Samba elegante, letra exata, melodia engenhosa, poesia romântico-parnasiana. Que acordes bonitos e criativos! Nunca o samba, nem com Paulo da Portela, com Dª Ivone, com Candeia, com Wilson Batista, com Batatinha, havia sido tão lírico. Lirismo e perfeição, aliás, caminham juntos durante todo o álbum. O que dizer de cânones da MPB como “O Sol Nascerá (A Sorrir)”, dele e de Elton Medeiros, e seus versos infalíveis em melodia, harmonia e poesia? “Finda a tempestade/ O Sol nascerá/ Finda esta saudade/ Hei de ter outro alguém para amar”.

Ou “Alvorada”? “Alvorada lá no morro/ Que beleza/ Ninguém chora/ Não há tristeza/ Ninguém sente dissabor/ O sol colorindo é tão lindo/ É tão lindo/ E a natureza sorrindo/ Tingindo, tingindo”. Parceria com Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, remete, em sua repetição harmoniosa de palavras e na economia harmônica de seus acordes, a simplicidade universal de outro sambista contemporâneo seu, o baiano Dorival Caymmi. É muita maestria.

E os clássicos só vão se avolumando. “Tive Sim”, uma das mais singelas declarações de amor da música brasileira e que pode ser considerada irmã de outra composição de Cartola, “Nós Dois”, de seu terceiro disco, “Verde que te Quero Rosa”, de 1977, pois conta sobre a felicidade de se ter um amor (Dª Zica, companheira do segundo casamento até sua morte) sem esconder que teve, sim, “um outro amor antes" daquele. Composta em 1968, a música participou da Primeira Bienal do Samba, defendida por Cyro Monteiro, e ficou em quinto lugar. Outra irreparável é “Corre e Olha o Céu”, com a bela introdução em que Copinha e Raul de Souza dão a deixa com seus sopros para Cartola entoar com a elegância de sempre os versos. “Linda!/ Te sinto mais bela/ Te fico na espera/ Me sinto tão só”. 

Porém, há os clássicos entre os clássicos. Isso é a mais certeira afirmação, pois trata-se da música chamada “Sim”. Samba de 1962, gravado originalmente por Gilberto Alves, é a exatidão da palavra cantada no ritmo mais afro-brasileiro por excelência. “Para ter uma companheira/ Até promessas fiz/ Consegui um grande amor/ Mas eu não fui feliz/ E com raiva para os céus/ Os braços levantei/ Blasfemei/ Hoje todos são contra mim”. Não são dignos de um Álvares de Azevedo estes versos?

E o que dizer, então, de “Acontece”? Um assombro a capacidade de Cartola de sintetizar em pouco mais de 1 min tamanha perfeição musical. Traços de Villa-Lobos emanam do morro. E que canto o de Cartola! Elegante, afinado, emotivo, seguro, dono da própria criação. "Esquece nosso amor, vê se esquece/ Por que tudo no mundo acontece". Sem dúvida nenhuma, top 10 entre as melodias mais bem construídas da música brasileira. Para um país que tem o privilégio de ter compositores do calibre de Caymmi, Gil, Edu, Garoto, Donato, Joyce, Chico, Tânia, Moacir, alguns destes, maestros formados, isso é bastante representativo. 

Mas tem mais. “Amor Proibido”, claramente uma forte inspiração para Paulinho da Viola em estilo melódico e cuja melodia é tão linda que ganhou, em 2008, uma versão apenas instrumental de Zé Paulo Becker, no disco-homenagem “Viva Cartola – 100 anos”. Ainda, outras preciosidades: “Quem Me Vê Sorrindo”, nova parceria com Carlos Cachaça, “Festa da Vinda”, um ano antes gravada por Elza Soares, e “Ordenes e Farei”, sua e de Aluísio Dias. Finalizando o disco, uma música de 1965 que, resgatada, traduzia o momento especial do velho bamba: “Alegria”. “Alegria/ Era o que faltava em mim”. Em depoimento a O Globo, o próprio falou sobre esse sentimento quando se deu conta de que era verdade o que vivia: “Me senti muito emocionado quando ouvi a minha voz no disco. Eu já tinha até pensado que ia morrer sem gravar um disco”. Cartola, mesmo com cerca de meio século de atraso, estava de volta.

Até debutar em estúdio, Cartola já havia fundado, nos anos 20, uma das mais tradicionais escolas de samba cariocas – a qual ele mesmo, com seu senso estético apurado, escolhera as cores verde e rosa como símbolo. Já havia composto sambas-enredo campeões de diversos carnavais nas décadas de 40 e 50. Já havia inventado um ritmo, o samba-canção. Já havia posto sucessos nas vozes de artistas como Carmen Miranda, Noel Rosa, Francisco Alves e Aracy de Almeida. Já havia sido aprendiz de tipografia, pedreiro, pintor, guardador e lavador de carros, vigia de edifícios e contínuo de repartição pública. Já havia enviuvado e casado novamente, sido pai, dono da casa noturna Zicartola e radialista junto com Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres. Tudo isso, toda uma vida antes desta estreia como artista solo. 

Isso é muito sério e diz bastante sobre o Brasil: rico em cultura, mas paupérrimo em autoestima. É como se a genialidade prodigiosa de Mozart, desperta na infância, fosse enclausurada na Áustria por uma vida inteira até ser revelada só quando este tivesse branqueado os cabelos. Não é exagero essa comparação, pois Cartola é o Mozart do samba. O maestro de música erudita britânico Leopold Stokowski, em excursão ao Brasil nos anos 50, já havia ficado impressionado com a musicalidade de Cartola. Nada mais do que a sua obrigação como homem da música em reconhecer o talento do brasileiro, considerou outro brasileiro genial, Carlos Drummond de Andrade. Aliás, é do poeta mineiro a definição mais sintética do que o admirável poeta do morro representa: “Cartola é daquelas criaturas que a música habita nelas”.

***********
FAIXAS:
1. "Disfarça E Chora" (Cartola, Dalmo Castello) - 2:06
2. "Sim" (Cartola, Oswaldo Martins) - 3:38
3. "Corra E Olhe O Céu" (Cartola, Dalmo Castello) - 2:23
4. "Acontece" - 1:17
5. "Tive Sim" - 2:09
6. "O Sol Nascerá" (Cartola, Elton Medeiros) - 1:42
7. "Alvorada" (Carlos Cachaça, Cartola, Hermínio Bello de Carvalho) - 2:40
8. "Festa Da Vinda" (Cartola, Nuno Veloso) - 1:59
9. "Quem Me Vê Sorrindo" (Carlos Cachaça, Cartola) - 2:07
10. "Amor Proibido" - 2:37
11. "Ordenes E Farei" (Aluízio Dias, Cartola) - 2:21
12. "Alegria" (Cartola, Gradim)- 2:44
Todas as composições de autoria de Cartola, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:
Cartola - "Cartola"


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

João Gilberto - “Live at The 19th Montreux Jazz Festival” ou "Live In Montreux" (1985)

 

No topo, capa do LP original
lançado no Brasil e, abaixo,
a da edição americana

“É a grande soma da obra de João Gilberto. É o disco que dá a visão mais ampla da ideia que ele tem de repertório, de estilo”.
Caetano Veloso

Os baianos, mais do que qualquer outra gente, são donos de uma genialidade que às vezes beira a ingenuidade. Caetano Veloso conta que, certa vez, ao visitar Dorival Caymmi em sua casa numa quente tarde de Salvador, o anfitrião mal o deixou entrar pelo portão e já se pôs a mostrar-lhe uma novidade que havia descoberto para aliviar aquele intenso calor. Levou, então, Caetano até a sala e solenemente lhe apresentou sua mais nova obra de engenharia doméstica: havia disposto a cadeira na qual estava sentado só de bermuda e chinelos feito um Buda nagô de frente para um... ventilador! 

Por mais óbvio que pareça o raciocínio de Caymmi, ele guarda, no fundo, uma percepção que, muitas vezes, foge aos mortais preocupados em complexar a vida: a simplicidade. Foi valendo-se do mesmo senso natural que outro baiano favorecido pelos Céus, João Gilberto, chegou a uma conclusão semelhante. Além daquilo que produzia nos invariavelmente indispensáveis discos de estúdio desde o final dos anos 50, João costumava reinventar seu repertório a cada nova apresentação ao vivo. Geralmente, só ele é o inseparável violão. Uma magia inimitável a qualquer outro momento da história da música moderna. Então, do fundo de sua cabeça privilegiada mas distraída, pensou: "porque não gravo um disco ao vivo que transmita essa atmosfera?" 

Sim, passados mais de 30 anos de carreira, João nunca havia feito um álbum neste formato. Tinha até então dois ao vivo, todos com parcerias e/ou bandas/orquestra acompanhando: "Getz/Gilberto #2", em companhia do saxofonista de jazz norte-americano Stan Getz, de 1965, e o especial da TV Globo "João Gilberto Prado Pereira de Oliveira", de 1980, no qual recebe vários convidados. Assim, só ele no palco, nunca.

O que parecia óbvio, por se tratar da essência do som do homem que inventou a moderna música brasileira com a concepção da bossa nova, ganhava, enfim, um registro fiel. Já havia se tornado comum a artistas brasileiros a partir dos anos 70 gravarem seus shows no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, desde que a curadoria do evento se abrira para a sonoridade da MPB como sendo cabível no gênero do "jazz moderno". De A Cor do Som a Elis Regina, passando por Gilberto Gil, Pepeu Gomes e Hermeto Pascoal. Faltava João.

E o Bruxo de Juazeiro não deixa por menos. Com seu repertório impecável selecionado cirurgicamente, une velhos sambas, como os de Ary Barroso, Haroldo Barbosa, Geraldo Pereira e Wilson Batista, a então novos clássicos. Melhor exemplo é "Menino do Rio", de Caetano, lançada em 1979 pelo autor e já versada pelo próprio João um anos depois. Mas ocorreu que a música fizera novamente muito sucesso em 1982 na voz de Baby Consuelo para a trilha do filme homônimo, e João, ao resgatá-la, transformava-a imediatamente de um hit para um clássico. 

João destila musicalidade. É tocante ouvir o trato de cada detalhe, de cada pronúncia, de cada acorde ou silêncio. A permanente confluência harmonia-melodia, as variações de ritmo, o casamento de cordas vocais e cordas de nylon num constante entendimento, entrelaçando-se, dançando. "Tim Tim Por Tim Tim", conhecida do repertório de João, abre com um verdadeiro show de gingado. Quem escuta ele tocando e cantando com tamanha naturalidade pode até pensar que se trata de um improvido. Mas o mais impressionante de João é que tudo aquilo faz parte de um exercício de controle absurdo, e ao vivo isso fica mais evidente. As soluções harmônicas, as escolhas de tempos, a voz afinadíssima mas sem vibrato, o controle da cadência, o que arpejar e o que silenciar: tudo se resolve ali, na hora, no palco, diante do microfone e da plateia. 

O público, neste show, aliás, merece uma atenção à parte. Até mais: merece também aplausos. Visivelmente formada por muitos brasileiros, mas certamente também por suíços e outros estrangeiros, na maioria da Europa, a plateia se emociona e transmite essa emoção para o artista, que retribui, numa corrente de energia poucas vezes vista ou perceptível em discos ao vivo. João brincando de "quém quém" ao cantar "O Pato" ou sambando com a voz em "Sem Compromisso" não deixam mentir. Mas, principalmente, "Adeus América". O samba de Haroldo Barbosa, escrito para outro símbolo mundial do Brasil (o maior deles), Carmem Miranda, como uma declaração de amor ao Brasil após ela ser tachada pelos compatriotas invejosos de "voltar americanizada" dos Estados Unidos, aqui soa (e ainda mais aos brasileiros da plateia) como um canto de exílio, um canto de saudade da terra mater. “Não posso mais, que saudade do Brasil/ Ai que vontade que eu tenho de voltar/ Adeus América, essa terra é muito boa/ Mas não posso ficar porque/ O samba mandou me chamar”. É certamente o momento mais emocionante do show, como talvez nenhuma outra gravação ao vivo de João neste ou noutros discos.

Há também a apropriação "mpbística" do jazz standart italiano "Estate", presente no memorável LP "Amoroso", de 1977, e, claro, a reverência à bossa nova. Mais precisamente, a Tom Jobim. Do maestro, João toca quatro das 15 do set-list: "Retrato em Branco e Preto", dois ícones da primeira fase bossanovista, "Garota de Ipanema" e "Desafinado"; e uma imbatível "A Felicidade", menos recorrente no repertório de João e até por isso ainda mais impactante.

Outro maestro, no entanto, é exaltado por João na histórica apresentação no 19º Festival de Montreux. Cabe ao legado de Ary Barroso fechar o show com três faixas: "Morena Boca de Ouro" e outras dois símbolos de brasilidade em música: as ufanistas "Isto Aqui o que É?" e aquele que é considerado o segundo hino da nação, "Aquarela do Brasil", numa execução de quase 10 minutos. João, que a havia protagonizado no disco "Brasil", de quatro anos antes e quando teve a companhia de Caetano e Gil para interpretá-la, encara aqui a empreitada sozinho. Coisa só de quem tem a mesma envergadura da própria música que entoa.

Prestes a completar 40 anos de seu lançamento, “Live at The 19th Montreux Jazz Festival” guarda a primazia de ser a primeira gravação fiel de um show de João Gilberto, abrindo caminho para vários outros que viriam nos anos seguinte e dos quais destacam-se pelo menos dois: “João Gilberto In Tokyo”, de 2004, e “Live At Umbria Jazz”, de 2002. No entanto, este registro evidentemente possui uma aura e uma importância especial. Mesmo que na maioria dos discos, inclusive os de estúdio, João fosse captado “just in time” pelas mesas de som, no palco não há o que editar ou refazer. É aquele pulsar orgânico e indelével. E no caso de João, isso vale mais do que o silêncio, como diz Caetano. 

E dizer que João levou mais de duas décadas para deixar essa óbvia joia da cultura brasileira para a posteridade... Às vezes, a obviedade é mesmo genial.

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Originalmente lançado no Brasil e no Japão em 1985 como LP duplo de 15 faixas, "Live At The 19th Montreux Jazz Festival", na versão norte-americana, de um ano após, chamou-se apenas de "Live In Montreux" e contendo 13 músicas: sem "Tim Tim Por Tim Tim", "Desafinado" e "O Pato" e tendo acrescida "Rosa Morena" (Dorival Caymmi).

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FAIXAS:
1. “Tim Tim Por Tim Tim” (Geraldo Jacques, Haroldo Barbosa) - 3:38
2. “Preconceito” (Marino Pinto, Wilson Batista) - 2:25
3. “Sem Compromisso” (Geraldo Pereira, Nelson Trigueira) - 4:05
4. “Menino Do Rio” (Caetano Veloso) - 3:45
5. “Retrato Em Branco e Preto (Antonio Carlos Jobim, Chico Buarque) - 6:36
6. “Pra Que Discutir Com Madame?” (Haroldo Barbosa, Janet de Almeida) - 6:25
7. “Garota De Ipanema” (Antonio Carlos Jobim, Vinicius De Moraes) - 3:42
8. “Desafinado” (Antonio Carlos Jobim, Newton Mendonça) - 4:53
9. “O Pato” (Jaime SIlva, Neuza Teixeira) - 6:08
10. “Adeus América” (Geraldo Jacques, Haroldo Barbosa) - 6:50
11. “Estate” (Bruno Brighetti, Bruno Martino) - 5:18
12. “Morena Boca de Ouro” ((Ary Barroso) - 5:37
13. “A Felicidade” (Antonio Carlos Jobim, Vinicius De Moraes) - 5:10
14. “Isto Aqui, O Que É? (Sandália de Prata”) (Ary Barroso) - 6:43
15. “Aquarela Do Brasil” (Ary Barroso) – 9:05



Daniel Rodrigues


segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Wayne Shorter - "Etcetera" (1980)

 


Acima, a capa criada em 1965 com 
arte de Patrick Roques e foto de Francis
 Wolff, e, abaixo, a arte para o
lançamento póstumo, em 1980 
“Minha ambição desde o início como engenheiro de gravação era capturar e reproduzir a música melhor do que outros na época. Fui levado a fazer a música soar mais próxima da maneira como soava no estúdio. Essa era uma luta constante - fazer com que os eletrônicos capturassem com precisão o espírito humano.”
Rudy Van Gelder

Destacar como exemplo um trabalho de Rudy Van Gelder, que completou um século de nascimento no último dia 2, é impossível. Ele é a mente e as mãos que moldaram a sonoridade da música mais avançada do mundo, o jazz, ao longo de quatro décadas. O talento de gênios como John Coltrane, Thelonious Monk, Tom Jobim, Don Cherry, Sonny Rollins e Miles Davis certamente não seriam transmitidos com a mesma fidelidade entre aquilo que foi pensado e o que foi gravado não fosse este judeu ex-optometrista nascido em Nova Jersey (EUA) e apaixonado por jazz desde a adolescência, nos anos 30 de Era do Jazz. Dono de uma técnica refinada e própria de engenharia e a masterização de som, Van Gelder, entre outras inovações, foi o pioneiro no uso de técnicas de captação próxima, limitação de pico e saturação de fita para imbuir a música com uma sensação adicional de imediatismo. Sua estética de gravação é dotada de uma inconfundível acústica. Límpida, elegante e orgânica.

Após montar um pequeno estúdio na casa dos pais, na metade dos anos 40, foi na década seguinte que ele passa a realizar as gravações para o selo Vox Records. Um de seus amigos do meio do jazz, o saxofonista Gil Mellé, apresentou-o, em 1953, a Alfred Lion, cabeça da Blue Note Records. Em 1959, muda, então, o Van Gelder Studio para o lendário endereço na Englewood Cliffs, onde assina, por diversas gravadoras como Prestige, Verve, A&M, CTI e, claro, a própria Blue Note, centenas de trabalhos, grande parte deles clássicos absolutos da história da música moderna, como “Maiden Voyage”, de Herbie Hancock, “A Love Supreme”, de Coltrane, ”Walkin'”, de Miles, e “Song for my Father”, de Horace Silver.

São tantas realizações de Van Gelder, que seria impossível resumir em apenas uma. No entanto, “Etcetera”, do saxofonista e compositor Wayne Shorter, é certamente uma dessas extraordinárias joias modeladas por Van Gelder. Gravado na fase áurea de Shorter pela Blue Note, em meados dos anos 60, embora tenha permanecido inédito até 1980, traz na banda Hancock, ao piano; Joe Chambers, bateria, e Cecil McBee, baixo. Há muito considerado um dos melhores álbuns de estúdio do artista, “Etcetera” tem cinco composições de autoria de Shorter, com exceção de “Barracudas” de Gil Evans, um extenso tema modal com atuação especialmente destacável para um possuído Hancock em estado de graça.

A faixa-título, no entanto, encarrega-se de abrir o álbum dando as cartas: jazz modal pós-bop capaz de hipnotizar o ouvinte. Misto de tensão e enigma, “Etcetera” tem incursões esparsas do piano e do sax, que mantém um diálogo o tempo todo. Sustentado pelo chipô e variações tam-tam/caixa de Chambers (que, aliás, encerra a faixa com um excelente solo, cuja espontaneidade Van Gelder soube ressaltar), é mais uma prova do quanto Shorter entende de como abrir bem um disco, assim como os imediatamente anterior “JuJu”, na faixa homônima e também de 1965, e posterior, “Speak no Evil”, de 1966, com a fenomenal “Witch Hunt”.

Balada como só os mestres do jazz sabem compor e executar, “Penelope” é mais do que cativante:  é estonteante. Quanta sensualidade no sax de Shorter! E que leveza do piano até bem pouco de notas carregadas por Hancock na faixa anterior. Aqui, ele equilibra o tempo cadenciado do compasso, enquanto McBee se encarrega de apenas conduzir a saudável lentidão, como um sono prazeroso. Chambers quase se cala, não fosse os leves chispados das escovinhas na caixa da bateria.

“Indian Song”, na sequência, ocupa o lugar especial no cancioneiro de Shorter como uma de suas composições mais intensamente hipnotizantes. Dividida em duas partes, carrega a atmosfera oriental que o músico expressava com frequência desde que se identificou com essa cultura, no início daquela década. "Mahjong", de “JuJu”, e "Charcoal Blues", de “Night Dreamer”, não deixam mentir. “Indian...” também evoca as tradicionais faixas de encerramento de discos de Shorter, invariavelmente a mais rebuscada dos álbuns, tal “Playground” (de “Schizophrenia”), "Armageddon" (de “Night...”) e “Mephistopheles” (“The All Seeing Eye”),

O encontro de Van Gelder com os músicos do jazz é, certamente, um dos maiores acontecimentos da história da música moderna. A técnica, como em raros outros momentos, unia-se de forma amalgamada a uma grande profusão de expressões do mais alto nível musical proporcionadas pelo jazz a partir dos anos 40 nos Estados Unidos. Shorter, foi um desses beneficiados: sua arte maior pode, por obra deste talentoso engenheiro de som com sensibilidade de artista chamado Rudy Van Gelder, ser transmitida com precisão diante daquilo que criou. 

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FAIXAS:
1. “Etcetera” - 5:17
2. “Penelope” - 6:44
3. “Toy Tune” -7:31
4. “Barracudas (General Assembly)” (Gil Evans) - 11:06
5. “Indian Song” - 11:37
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter, exceto indicada

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Sean Lennon - “Friendly Fire” (2006)

 

"Quando eu era jovem, me preocupava com a estética do inacabado, do feito em casa. Mas com ‘Friendly Fire’ resolvi ver se conseguia fazer algo refinado. Optei por uma estética mais elegante e elaborada".
Sean Lennon

Lá fora no oceano que veleja afora/
Eu quase não posso esperar/
Para te ver mais velho/
Mas eu acho que vamos apenas ter que ser pacientes/
Porque o caminho é longo
”. 
Trecho de "Beautiful Boy", escrita para Sean 
por John Lennon em 1980, ano de sua morte

A vida de Sean Lennon é, mesmo que ele não queira, sui generis. Dono do sobrenome mais pesado entre os mortais, Ono Lennon, ele carrega a herança genética e cultural de dois ícones mundiais. Ímpar, aliás, também é seu destino. Além da rara coincidência de nascer exatamente na mesma data de seu pai, hoje, 9 de outubro, a quem, por óbvio, guarda muita semelhança, teve a infância marcada pelo trauma do assassinato do mesmo, quando tinha apenas 5 anos. Hoje, faz 49, enquanto seu pai, morto há pouco menos de 34, completaria 84 se vivo. Em contrapartida, à base de muita dor, Sean contou também com a proteção da mãe. 

Nesta redoma, não demorou muito para que o rapaz com cara de John Lennon de olhos puxados percebesse que a hereditariedade lhe favorecia. Afeito às artes visuais mas, principalmente, à música, aos 7 já participava cantando na faixa-título do disco da mãe “It's Alright (I See Rainbows)”, de 1982, com quem, aliás, contribuiria ainda diversas vezes noutros trabalhos. Mas não só com Yoko Ono: hábil em vários instrumentos e na mesa de som, tocaria com e produziria diversos outros artistas, como Cibo Matto, Lenny Kravitz, Miley Cyrus, Carly Simon, Soufly e Tom Zé, até lançar, aos 21 anos, seu primeiro disco solo, o excelente “Into the Sun”. Cristalizava-se ali um talento nato.

Mas a vida de Sean é mesmo fadada ao incomum. Herdeiro e administrador da mais valiosa obra musical do século XX, o milionário Sean não tem a menor necessidade de viver de música, o que por si só o diferencia de qualquer outro cidadão do planeta. A forma de conciliar a comodidade financeira à pulsão natural em produzir foi a escolha de fazer só aquilo que gosta e quando quer. Tanto é que, hoje, com mais de 40 anos de vida artística, Sean soma, afora trilhas sonoras e contribuições a outros artistas, apenas três álbuns solo. Para que ele entre num estúdio e grave algo seu tem que valesse a pena de verdade. Caso de “Friendly Fire”, de 2006.

Para falar desse disco e o que o motivou, contudo, precisa-se voltar um ano antes de sua gravação. A vida de Sean, como dito, anda por linhas tortas. E o que é mais passível de desgovernar o caminho de alguém? Se não a morte, o amor. No caso, o que se abateu sobre Sean foram as duas coisas. O melhor amigo, Max LeRoy, e a então namorada de Sean, Bijou Phillips, estavam envolvidos em um triângulo amoroso. Quis o destino que, tragicamente, LeRoy morresse em 2005, num acidente de trânsito, antes que os amigos pudessem se reconciliar. Claro, que o namoro também acabou. Autobiográfico, “Friendly Fire”, assim, carrega-se do profundo efeito que a morte de LeRoy teve sobre Sean, que com esse combustível compõe um dos discos mais doloridos e bonitos da música pop recente. 

Ao estilo de “discos de separação” como “Blood on the Tracks”, de Bob Dylan, neste trabalho é outra referência a um corte físico e emocional que Sean suscita, visto que ainda mais profundo. O “fogo amigo” tanto pode ser entendido como uma traição quanto como a ação fatal de alguém, LeRoy, que se autopenalizou por um erro da pior maneira possível. “Dead Meat”, título de uma das melhores faixas do álbum e responsável por abri-lo de forma melancólica e carregada, fala dessa ferida exposta, como um coração dilacerado, como uma “carne morta”. Os acordes iniciais são o toque valseado de piano tão circense quanto choroso, como se um clown desgraçado e ridículo entrasse no picadeiro para gargalharem de sua figura miserável. Tamanha é a força da música que, ao soar a orquestra ao final, intensa e emocionada, tem-se a clara impressão de que o álbum está terminando.

Sean mostrava que, em 8 anos desde seu primeiro disco, muita coisa havia mudado. Mudara, literalmente, do quente para o frio. Ao invés de se aquecer “através do sol” (“Into the Sun”), esse mesmo calor havia se convertido num “fogo amigo” que conduz à gélida morte, como um tiro que se leva de um companheiro sem intenção de ferir. Mas que fere. Até as capas são vinho e água: numa, o desenho de Sean sorridente sob o tom quente da cor laranja; no outro, um autorretrato de poucos traços de um rapaz sério em um fundo massivamente branco, sem vida. Isso tudo, claro, se reflete nos sons. Ao contrário da luminosidade experimental do trabalho de estreia, a escolha para representar esse novo momento é o refinamento pop, como que tomado pela impassibilidade e pelo assombro. Este é o caso também de "Wait for Me", cujo título dispensa explicações. “Algum lugar por entre a lua e o mar/ Eu estarei esperando por você, meu amor/ Então, espere por mim”, diz a letra deste pop-folk classudo forjado no violão, lembrando coisas nesse estilo de John com os Beatles (“I’m Only Sleeping” e “Cry Baby Cry”) ou solo (“Look at Me”).

"Parachute", outra preciosidade de “Friendly...”, é, quiça, a mais deprê de todo o disco, o que não significa que, nem por isso, Sean recaia ao enfadonho. Balada bela e lamentosa, não à toa foi o hit do disco, tendo o ajudado a alcançar o posto 152 na parada Billboard 200. Refrão marcante e delicado, daqueles que Sean, atento ao aspecto emocional das canções, sabe fazer como ninguém. Mesmo caso da faixa-título: melodia dolorida, mas que pega. Num arranjo perfect pop, as sentidas palavras de Sean dizem: “Você lançou o ataque com a primeira bola de canhão/ Meus soldados estavam dormindo/ Eu sei que você pensou que nunca iria cair/ No último minuto/ É fogo amigo”. Mesmo que inconscientemente, o amigo, ao morrer, se culpabiliza mas se vingou ao mesmo tempo. É perceptível o abatimento na voz de Sean, como se não quisesse ter que cantar aquilo. Mas há-lhe um impulso interno mais forte, que se impõe.

E quando Sean olha para o amanhã? O mesmo vazio. O blues “Tomorrow” desenvolve-se suave sobre essa desesperança. Outra balada cortante, "On Again Off Again", é mais uma prova da habilidade musical de Sean em criar canções tocantes e saborosas ao mesmo tempo. Na sequência, certamente a mais “alto astral” do repertório: "Headlights". Batida de violão, palmas marcando o ritmo, escala em lá maior. Mas alegre até por aí, visto que, nas palavras, Sean está dizendo que “a vida é apenas morrer lentamente”.

Versão de Marc Bolan, "Would I Be the One", pode-se dizer daqueles covers tão legais quanto a música original, do início dos anos 70. Afinal, parece uma música composta pelo próprio Sean, o que acaba por dar ainda mais coesão a um repertório tão pessoal. Igualmente down e comovente, como todo o restante, inclusive do tema de encerramento: a balada "Falling Out of Love". Outra título autoexplicativo. “Por favor, eu te esquecerei/ Não vou deixar você entrar no meu coração/ Eu te deixei esperando/ Esperando na escuridão/ Está tudo desmoronando”. É de cortar o coração. Sean está processando o luto de dois amores: o da namorada e o do amigo. 

Uma matéria da época do lançamento de “Friendly...” disse com assertividade: “a apresentação imponente dessas 10 músicas desmente seu tema recorrente: ser filho de uma lenda do rock'n'roll e de uma matriarca de vanguarda não torna sua vida romântica mais fácil”. De fato, ninguém escapa dos desafios do coração. Mas ainda mais certo é que, Sean, sensível e talentoso músico como cedo já demonstrava, consegue entregar um material tão sofisticado e bem elaborado desse momento de sua vida, que, ao final, soa como algo positivo, engrandecedor. Da tragédia, a beleza. Qualidade de quem aprendeu, já criança, a ressignificar a dualidade vida e morte para trilhar seu caminho único e intransferível.

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FAIXAS:
1. "Dead Meat" - 3:37
2. "Wait for Me" - 2:39
3. "Parachute" - 3:19
4. "Friendly Fire" - 5:03
5. "Spectacle" (Lennon, Jordan Galland) - 5:24
6. "Tomorrow" - 2:03
7. "On Again Off Again" - 3:18
8. "Headlights" - 3:16
9. "Would I Be the One" (Marc Bolan) - 4:58
10. "Falling Out of Love" (Lennon, Galland) - 4:07
Todas as faixas compostas por Sean Ono Lennon, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:
Sean Lennon - “Friendly Fire”


Daniel Rodrigues

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Kula Shaker - "K" (1996)

 




"Govinda Jaya Jaya
 Gopala Jaya Jaya"
saudações à deusa Krishna
na canção "Govinda"



Cara, Kula Shaker é muito Beatles!

Mas calma, não precisam se exaltar os beatlemaníacos mais apressados. Não estou dizendo que é igual, não estou dizendo que é melhor. Não são os novos Beatles. Mas a vibe de "K", o disco de estreia desses ingleses é muito a cara do quarteto de Liverpool. A psicodelia, a "pureza", aquela energia com ares de rock sessentista, os vocais em dueto, os coros de fundo nos refrões, o experimentalismo, a produção com aquela sujeira quase artesanal das guitarras... Tudo está lá.

"Into the Deep", "Magic Theatre", "Hollow Man", dividida em duas partes igualmente viajandonas, e até "Grateful When You're Dead", que faz referência direta a outra banda (Grateful Dead), são provas incontestes dessa influência.

Isso sem falar no toque oriental, indiano, característico daquelas coisas que George Harrison, especialmente, gostava de fazer, e que dão a tônica praticamente de todo o álbum. A própria capa não deixa dúvidas, não. "Sleeping Jiva", instrumental executada toda com instrumentos típicos hindus; a lisérgica "Tattva" um transe rock'n roll; a celebração reverencial de "Temple of Everlasting Light"; e, especialmente, "Govinda", uma peça apoteótica, e a que melhor conjuga o psicodelismo rock'n roll com a sonoridade exótica e suas representatividades espirituais, são os melhores exemplos dessa revisita aquela rica fusão que Harrison já levara seus companheiros de banda a experimentar lá nos idos dos 60's.

Destaque também para o rock estridente da vibrante "303", para a balada folk "Start All Over, com cara de "Rubber Soul", e para o funk-rap-krishna psicodélico "Hey Dude", cuja semelhança, "por mínima que seja", com algum título de música dos Beatles que você conheça, provavelmente, não terá sido mera coincidência.

Imitação? Não. Eu diria inspiração. E os rapazes do Kula Shaker tiraram bom proveito da fonte nesse seu magnífico "K".


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FAIXAS:

  1. Hey Dude
  2. Knight on the Town
  3. Temple of Everlasting Light
  4. Govinda
  5. Smart Dogs
  6. Magic Theatre
  7. Into the Deep
  8. Sleeping Jiva
  9. Tattva
  10. Grateful when You're Dead / Jerry Was There
  11. 303
  12. Start All over
  13. Hollow Man

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Ouça:
Kula Shaker - K


Cly Reis 

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Françoise Hardy - "Tant De Belles Choses” (2004)

 

"Henri Salvador, que tinha uma gravadora, viu minha apresentação na televisão e telefonou com a intenção de assinar um contrato comigo. A reunião nunca aconteceu, porque eu já estava sob contrato, mas eu sinto tontura toda vez que penso no meu desenvolvimento profissional e o curso que isso tomaria se um artista tão excepcional quanto Henri tivesse me colocado sob sua asa."
Françoise Hardy, em sua autobiografia "The Despair of Monkeys and Other Trifles: A Memoir by Françoise Hardy", de 2018

Ela havia completado 80 anos recentemente, o que foi motivo de celebração para os fãs desta artista cult que somente um país como a França podo gerar. Ela é Françoise Hardy, cantora, compositora, atriz e modelo, que além de linda e talentosa, reúne características daquilo que há de melhor na cultura de sua cidade-natal, Paris: o bom gosto, a delicadeza e a elegância. Mas um câncer a levou em junho deste ano, pouco mais de um mês antes da abertura das Olimpíadas iniciarem na própria Cidade-Luz. Quem sabe ela também não estaria na cerimônia de abertura às margens do Sena tocando?

Surgida como uma das principais figuras do movimento yé-yé nos anos 1960, ela conquistou a Europa com sua voz suave e estilo distinto. Instrumentista desde a adolescência, ela fez faculdade de Ciências Políticas e de Letras na Sorbonne, mas não conclui nenhum dos cursos, pois já havia descoberto sua vocação. Depois de passar em uma seleção de novos talentos da gravadora Vogue, em 1961, passa a cantar na TV francesa e logo foi catapultada ao sucesso com a canção "Tous les Garçons et les Filles", que vendeu milhões de cópias. Hardy não conquistou só o público francês, mas também ganhou notoriedade internacional, gravando versões de suas músicas em italiano, alemão e inglês.

Bela, foi também musa na moda e no cinema. Com o fotógrafo Jean-Marie Périer, com quem se relacionou até 1967, Françoise entrou no mundo da moda atuando como modelo e tornou-se um ícone fashion. Em colaboração com designers renomados como Yves Saint-Laurent e Paco Rabanne, ela influenciou a moda dos anos 1960 com seu estilo característico de minissaias e botas brancas. No cinema, foi dirigida por Jean-Luc Godard, Roger Vadim, Clive Donner e John Frankenheimer, quando contracenou com Peter Sellers e Peter O'Toole no clássico "Grand Prix", de 1966. Françoise era desejada por homens e mulheres, de David Bowie a Mick Jagger, de Brian Jones a John Lennon.

Na música, no entanto, foi onde mais se desenvolveu. Evoluiu do rock inocente e passou a gravar coisas como o folk “Suzanne”, de Leonard Cohen, e, em passagem pelo Brasil, voltou para a França na mala com uma versão francófona de “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, intitulada “La Mésange”. As fronteiras sonoras de Françoise começavam a se expandir. Entre 1962 e 1973, ela lançou um álbum por ano, consolidando seu status como uma das principais artistas da época. Alguns de seus maiores sucessos incluem "Le Temps de l'Amour" e "Mon Amie la Rose". Ela trabalhou com compositores renomados como Serge Gainsbourg, que escreveu para ela o hit "Comment te Dire Adieu", e Michel Berger, que compôs duas canções para o álbum "Message Personnel" (1973). Com tudo sua voz ligeiramente rouca e afinada e muito bom gosto sonoro, tornou-se uma excelente melodista e letrista admirada por ícones como Henri Salvador, que até quis contratá-la no início da carreira.

Embora a extensa discografia, que adentrou os anos 70, 80 e 90, foi na maturidade que Françoise chegou a seu auge em termos de musicalidade. Ela já havia surpreendido crítica e público com o triunfante retorno aos estúdios depois de 4 anos de pausa com “Clair-Obscur”, de 2000, quando, além de suas excelentes interpretações, composições e versões, canta com gente como Iggy Pop, Olivier Ngog e o ex-marido e eterno parceiro musical Jacques Dutronc. Porém, precisariam mais quatro anos para que viesse, aí sim, com o irretocável “Tant De Belles Choses”, 24º de sua longa trajetória e que completa 20 de lançamento em 2024.

Françoise: ícone também
da moda e do cinema nos
anos 60 e 70
À época com 60 anos, parece que a idade dava a Françoise aquilo que poeticamente Caetano Veloso sentenciou sobre a velhice: “Já tem coragem de saber que é imortal”. A faixa-título e de abertura e encerramento, evidencia esse amadurecimento diante do mundo, diante das coisas, que se tornam graciosamente belas a seu olhar. Na sequência, a sempre presente influência da música brasileira na sonoridade dos franceses está na francesíssima bossa-nova “À L'ombre De La Lune”. Clima parecido tem “Jardinier Bénévole”, mais cadenciada e enigmática, contudo, principalmente pelas programações de ritmo, pelos teclados reverberantes e pelo contracanto de Alain Lubrano.

Balada triste e romântica, “Moments” é uma das duas cantadas em um inglês do álbum juntamente com o pop quase tribal “So Many Things” – ambas não coincidentemente muito parecidas com o som da Everything But the Girl, uma vez que a inglesa Tracey Torn certamente tem em Françoise uma grande inspiração no modo de cantar e compor. Já “Souir de Gala” é um dos belos exemplos da canção pop hardyana, com versos muito melodiosos e visivelmente composta ao violão, embora o piano faça a marcação enquanto a guitarra solta frases pontuais. A voz dela, aliás, sempre suave, bem colocada, sensual. Sem percussão, apenas sob teclados e efeitos, “Sur Quel Volcan?” é outra que merece muita atenção. Interrogativa e não menos reflexiva, a letra diz: “Eu peço emprestado passagens, becos/ Eu pego mensagens, segredos/ Neste espaço de filigrana/ Eu veria um pedaço da sua alma?/ Em qual vulcão/ Vamos dançar/ Você e eu/ A que custo?/ Quem vai queimar lá/ Você ou eu?”.

O jazz com traços franceses, que mestres como Henri Salvador e Francis Lai legaram à música ocidental, vem na gostosa “Grand Hôtel”. A linha jazzística permanece em “La Folie Ordinaire”, que antecipa a potente – e fantasticamente melódica – “Un Air de Guitare”, em que Françoise canta com urgência os versos, os quais fraciona em três instantes bem marcados. O violão, constante e premente, ganha a parceria da dona da música, a “guitare”, tocada pelo filho Thomas Dutronc. Que baita música! Já na tensa “Tard Dans La Nuit…” – que lembra os temas densos de Nico –, Françoise fala das dores e angústias que a noite esconde. “Ela não é quem deve ser culpada/ Tantos sonhos se dissipam/ É melhor se esconder nas sombras/ As ruas não são seguras/ Atrás das portas blindadas/ Cães latem impiedosamente/ Ninguém pôde dizer/ De onde vieram os golpes/ Tarde da noite”.

Finalizando, mais uma preciosidade: “Côté Jardin, Côté Cour”. Lindo refrão: melodioso, elegante, suave e intenso ao mesmo tempo. A faixa se liga diretamente com a segunda versão de “Tant De Belles Choses”, que ressurge para terminar o disco de maneira imponente. E embora Françoise tenha lançado ainda outros quatro bons trabalhos até o fim da vida, este parece melhor representar a si e ao país ao qual trazia o radical no nome. Com 20 anos de antecedência à própria despedida, ela versa, concordando com aquilo que Caetano disse, a seguinte frase: “O amor é mais forte que a morte”. Nada além da mais pura verdade quando se fala de uma artista imortal como Françoise Hardy.

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FAIXAS:
1. "Tant De Belles Choses" (Pascale Daniel/ Alain Lubrano) - 4:02
2. "À L'ombre De La Lune" (Benjamin Biolay) - 3:38
3. "Jardinier Bénévole" (Lubrano) - 4:02
4. "Moments" (Perry Blake/ Marco Sabiu) - 3:31
5. "Soir De Gala" (Thierry Stremler) - 2:46
6. "Sur Quel Volcan?" (Daniel) - 3:08
7. "So Many Things" (Blake/ Sabiu) - 3:29
8. "Grand Hôtel" (Stremler) - 3:13
9. "La Folie Ordinaire" (Ben Christophers) - 2:32
10. "Un Air De Guitare" (Françoise Hardy)  - 3:58
11. "Tard Dans La Nuit…" (Daniel/ Lubrano) - 3:27
12a. "Côté Jardin, Côté Cour" (Lubrano) - 4:10
12b "Tant De Belles Choses (Version)" (Daniel/ Lubrano) - 3:58

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Daniel Rodrigues