Enfrentar um original consagrado já é difícil, encarar uma lenda, então, é uma tarefa ainda mais inglória. "O Corvo", 1994, como se não bastasse ser um filme cultuado entre os góticos, darks, o pessoal que curtia a cena alternativa dos anos 80, praticamente o representante cinematográfico dessas tribos, marca a morte trágica, dentro do set de filmagens, do ator Brandon Lee, o protagonista da história que interpreta nada menos que um homem que volta do mundo dos mortos. Era como se fosse o próprio personagem, ninguém mais poderia ter feito aquele filme senão ele. Brandon Lee em tela, na pele do personagem Eric Draven era por si só uma espécie de lenda em movimento.
Por si só o desafio de refilmar "O Corvo" era algo pouco recomendável. Teria que conquistar o fiel público que praticamente endeusa o original, e ainda conseguir algo parecido com o carisma e a aura de Brandon Lee.
Assim, a tarefa mais viável seria uma aproximação com a nova geração de modo a conquistar o público atual. Uma linguagem mais adequada ao século XXI, comportamento, costumes, anseios, etc. O visual, a música, a dinâmica, os hábitos, tudo isso teria que ser repensado. Mas a nova versão de "O Corvo" não atende praticamente nada. Não dialoga com os antigos fãs e nem fica marcante para os novos interessados. Se afasta do original exatamente em pontos que poderia tirar proveito, não consegue imprimir uma estética, uma identidade visual, não empolga, e não consegue personificar em Bill Skarsgard um protagonista carismático.
Em ambos os filmes Eric Draven e sua namorada Shelly Webster são assassinados mas uma entidade sobrenatural permite que aqueles que foram mortos injustamente retornem para realizar sua vingança. Eric então retorna ao mundo dos vivos, incólume fisicamente, imortal, e vai à caça daqueles que os mataram a fim de encontrar e ficar com Shelly no mundo dos mortos.
Basicamente isso mas com algumas diferenças: no primeiro, o casal é assassinado na chamada Noite do Demônio, uma data em que todos os crimes e atrocidades acontecem, sem controle, pelas ruas. O apartamento deles é invadido por uma gangue, ela é brutalmente violentada por todos eles e ele é morto com um tiro. Um ano depois, um pássaro negro misterioso, um corvo, aparece em sua sepultura, o desperta da morte, o guia até o antigo apartamento e, lá, diante das memórias do casal que vão aparecendo para ele em flashes, fica claro que sua alma só descansará mesmo ao lado da namorada quando se vingar daqueles que os mataram. Ele então vai atrás de cada um da gangue.
O cenário é sombrio, a Noite do Demônio é lindamente caótica, a angústia de Eric ao se descobrir morto, ao recuperar as imagens de Shelly é comovente, sua iniciativa de se disfarçar como uma figura assustadora é instintiva e inspirada, e sua maquiagem de arlequim das trevas é simplesmente icônica. Em uma cidade constantemente chuvosa, decadente e sem lei, uma trilha sonora empolgante embala a saga de vingança de Draven dando a morte adequada a cada um que lhes fizeram mal. Imortal, imune à dor, inatingível a balas ele elimina todos os capangas até chegar até o chefão, Top Dollar, um excêntrico figurão que descobre que a força vital do vingador das trevas está no pássaro que o acompanha. Em uma tocaia Top Dollar fere o pássaro e então fica praticamente condições de igualdade para encarar o palhaço imortal num duelo decisivo.
"O Corvo" (1994) - trailer
"O Corvo" (2024) - trailer
Na nova versão, a relação do casal é um pouco mais explorada. Os acompanhamos desde quando se conheceram em uma clínica de reabilitação para dependentes químicos onde se apaixonam e de onde fogem quando Shelley se diz perseguida por alguém. Ao saírem do sanatório, se refugiam na casa de um antigo amigo dela, onde são assassinados por homens que procuravam algo que estaria em poder da moça. Eric, interpretado por Bill Skarsgård, então acorda numa espécie de limbo onde uma entidade permite que ele retorne à vida para vingá-la desde que nunca duvide de seu amor por ela. Ele concorda mas ao retornar e entender os envolvimentos dela e do que os bandidos estavam atrás, ele fraqueza quanto a seu sentimento e morre novamente. Desesperado ela tenta um último acordo com o guia do além, de matar Roeg, o líder de uma seita satanista que estava atrás de segredos que Shelly escondia, de modo a trocar sua alma pela dela no inferno.
Aí, sim, Draven volta, empoderado, imortal, impenetrável a tiros, regenerado a ferimentos, e vai buscar o homem que prende a alma da namorada morta no inferno. Na trilha de sangue e vingança que Eric deixa, Roeg descobre os poderes sobrenaturais do jovem e resolve então roubá-los de modo a aumentar ainda mais seu poder demoníaco. Eles terão então um confronto final que definirá se Roeg conseguirá seus objetivos malignos ou se Eric conseguirá salvar a alma de sua amada.
A trama até tem mais complexidades, o casal, sua origem, a natureza de sua relação são mais explorados desde o início, a motivação inicial do vilão é menos simplória, mas nada disso garante maior qualidade. As nuances da história, personagens secundários dispensáveis, elementos pouco relevantes, afastam a trama de um ponto central; a introdução à relação de Eric e Shelly fica longa, maçante e ocupa uma parte significativa do filme sem que alguma coisa realmente avance; sem falar que a natureza do vilão, Roeg, tipo um 'demonista' ambicioso, seu envolvimento com a garota, o segredo que ela guarda é tudo simplesmente estapafúrdio.
Pra completar, cenários CGI tipo Marvel, personagens caricatos, atuações constrangedoras... "O Corvo" de 2024 dói de ruim.
De positivo, temos o bom confronto final com Roeg e as cenas de luta com muita violência gráfica e inventividade. No mais, é só buscar a bola no fundo da rede.
Um pelo visual, a ambientação, a cidade escura, decadente, chuvosa, em chamas. As vistas aéreas, as perseguições nos telhados a visão distorcida pelo olho do pássaro. Tudo demais! 1x0 .
Dois pelo figurino e maquiagem do protagonista, aquela cara branca de palhaço sorridente numa alma triste, sombria e torturada, aquele cabelo escorrido, desgrenhado, a roupa de couro preto. Uma figura sinistramente cativante que, como se não bastasse, toca guitarra pelos telhados da cidade. Muito rock'n roll, muito dark: 2x0 .
Três pela trilha sonora eletrizante e muito bem escolhida com nomes como Jesus and Mary Chain, Nine Inch Nails, Helmet, Violent Femmes e The Cure, talvez os grandes representantes e inspiradores de todo o visual do personagem. 3x0 .
E por falar na banda de Robert Smith, o quarto gol vai por conta da cena do 'surgimento' do Corvo, o momento em que, ao som da espetacular "Burn" do The Cure, no loft do casal, as memórias chegam torturando o jovem Eric, ele repassa angustiantemente o roteiro da noite de terror, entende seu destino de vingança, pinta o rosto inspirado numa máscara teatral de arlequim e, decidido, sob a luz de relâmpagos, olha do alto de sua janela redonda, a cidade onde começará sua caçada. 4x0 .
O quinto vai pela importância do corvo, do pássaro em si, no original, enquanto que no remake ele é subutilizado, meramente alegórico e quase sem importância. É ele quem vai à cova de Draven trazê-lo de volta dos mortos, é nele que está a força vital do personagem vingador, e é ele quem guia nosso herói pelas cidade, e as cenas sobrevoando do alto, com a visão do pássaro, são simplesmente incríveis. Não tem Pato, Ganso, Falcão? Por que que não pode ter gol do corvo também! É gol do Corvo! 5x0 .
O sexto é dele, Brandon Lee. Além de ser filho de craque, do mítico Bruce Lee, Brandon era carismático e perfeito para o papel. Só que acabou infelizmente tornando-se legendário pelo pior motivo possível: uma arma disparada por acidente nas filmagens que veio a tirar sua vida. Mesmo incompleto, com cenas de dublês e remendos digitais, o mero fato de ter sido concluído depois de sua morte, fez do filme, sombrio sobre morte e ressurreição, algo ainda maior e só aumentou seu culto. Brandon é o nome do gol! 6x0 Corvo '94.
Como já mencionado, o gol de honra da nova versão fica por conta das ótimas cenas de luta, especialmente na da sequência da ópera em que nosso herói vai com uma espada katana atrás de seus inimigos. Ótimas coreografias de luta, mortes criativas, muito sangue e muita brutalidade. 6x1 para o original.
E é fim de papo. O time de '94 manda seu desafiante de 2024 para a cova sem direito a ressurreição.
















