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terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Neil Young & The Crazy Horse - "Zuma" (1975)




“Trabalhar com Neil é um privilégio,
não um direito.”
Stephen Stills


Um dos meus artistas preferidos é o cantor e compositor canadense Neil Young. Ele me foi apresentado pelo meu querido e saudoso primo José Carlos de Andrade Ribeiro, o popular Chico Caroço, em 1972, quando ele mostrou pra mim o disco “Harvest”. De cara, chapei com “Old Man” e fiquei de olho em alguma coisa que lançassem dele no Brasil. Só voltei a ouvi-lo com toda a atenção em 1975, quando o mesmo Chico Caroço me apresentou o disco favorito de hoje: “Zuma”, de Neil Young e seus fiéis escudeiros, o trio Crazy Horse (Frank Sampedro na guitarra base; Billy Talbot, no baixo, e Ralph Molina na bateria.
Com uma capa muito expressiva de Mazzeo, “Zuma” foi lançado após uma trilogia de discos muito bons, porém terrivelmente tristes (“Time Fades Away”, de 1973; “On the Beach”, de 1974, e o melhor de todos, “Tonight's the Night”, de 1975), inspirados na morte por overdose de Danny Whitten, o guitarrista original do Crazy Horse.
A viagem começa com “Don't Cry No Tears”, uma típica música de NY com Crazy Horse. As guitarras distorcidas fazem a cama para uma letra onde Neil Young pergunta: “Eu fico pensando quem está com ela esta noite?/ E eu fico pensando quem a está abraçando bem apertado/ Mas não tem nada que eu possa dizer/ para fazê-lo ir embora/ Um velho amor verdadeiro não é difícil de ver/ Não chore, sem lágrimas perto de mim”. Uma pegada country rock com ênfase no rock.
“Danger Bird” põe o dedo sujo na ferida do relacionamento de Young com a atriz Carrie Snodgress, mãe de seu filho Zeke. Como em todo o disco, as guitarras ditam o clima que iria inspirar Lou Reed a dizer que Neil tinha se tornado um grande guitarrista nesta época. E a letra é de um ressentimento absoluto: “Agora eu penso em você o dia inteiro/ Este é o momento em que ele se despedaça/ Porque você esteve com outro homem/ Há um tempo atrás no museu com seus amigos/ Aqui você está e aqui estou eu”. O homem ciumento que Neil havia se tornado lhe inspira a se comparar a um pássaro perigoso cujas asas viraram pedra. Mas mesmo assim ele consegue voar pra bem longe.
“Pardon my Heart” dá uma pausa na eletricidade e tem Neil em todos os instrumentos, especialmente guitarras e violões e percussão mais o baixista Tim Drummond e os backing vocals de Billy Talbot e Ralph Molina. Uma balada bem folk ao velho estilo. Mais um recadinho para Carrie Sondgress: “É uma triste comunicação/ Com pouca razão para acreditar/ Quando um não está dando/ E o outro finge receber”. Mais adiante, ele tenta remendar a situação dizendo: “Perdoe meu coração/ Se mostrei que me importava/ Mas eu te amo mais do que os momentos/ Que nós dividimos ou não”.
A próxima canção, “Looking for a Love”, tem uma base country music e um alívio na tristeza. “Tenho procurado um amor/ Mas ainda não a encontrei ainda/ Ela não será nada do que eu imaginei/ Nos seus olhos descobrirei/ Outra razão porque/ eu quero viver e fazer o melhor do que eu possa”. Mas ele sabe que não é moleza lhe aguentar quando, no refrão, ele garante: “Tenho procurado um amor que seja certo pra mim/ Não sei quanto tempo vai durar/ Mas espero tratá-la bem/ e não mexer com sua cabeça/ quando ela começar a ver o meu lado negro”. Autocrítica em dia, né?
“Barstool Blues” fala de um bebum num banco de bar e de sua tristeza. “Se eu conseguisse aguentar por apenas um pensamento/ o suficiente para saber/ porque minha mente está se movendo tão rápido/ e a conversa é devagar”. Lá pelas tantas, o fantasma de Danny Whitten volta a habitar – e a assombrar – Neil: “Era uma vez tinha um amigo meu/ que morreu milhares de mortes/ Sua vida era cheia de parasitas/ e incontáveis ameaças vadias/ Ele confiava numa mulher/ e nela fez suas apostas/ Era uma vez tinha um amigo meu/ que morreu incontáveis mortes”. A mulher, no caso, a heroína que causou a morte de Whitten.
Apesar do disco estar cheio de guitarras luminosas e aparentemente ser mais “solar" dos que os anteriores, “Zuma” tem sua carga de demência, ódio e ressentimento. O lado B começa com uma diatribe dirigida a uma “Stupid Girl”. Comenta-se que a canção seria direcionada à cantora e compositora canadense Joni Mitchell, com quem ele teve um namoro rápido e conturbado. E a letra é puro rancor: “Você é uma garota tão estúpida/ Realmente tem muito o que aprender/ Comece a viver de novo/ Esqueça de lembrar/ Você é uma garota tão estúpida”. E a agressão não dá refresco: “Você é um peixe muito bonito/ Pulando na areia do verão/ Olhando pra onda que perdeu/ quando outra já está chegando/ Você é uma garota tão estúpida”. Como as mensagens são diretas, a música não poderia ser diferente. Batidas simples, baixo marcando o tempo e as guitarras em distorção total. Nada de sofisticação.
A faixa seguinte abre com o que diria o meu amigo João César Nazário, o grande Alemão: uma guitarrada pra levantar defunto. “Drive Back” tem os solos mais lancinantes de todo o disco. Os puristas da guitarra acham que Neil é um mau músico, que não tem técnica. Pode até ser. Ele não é nenhum Larry Carlton, Allan Holdsworth ou Steve Vai. Mas o feeling deste homem é incrível. Carregando esta selvageria nas seis cordas, tem mais uma letra detonando: “O que te levar pela noite/ tá certo pra mim/ quando chegar a hora de dizer adeus/ Vou te fazer ver/ Que você não me conhece/ Não vou te ligar/ Não estarei aqui/ pra te lembrar/ o que você me disse/ Quando te mostrei/ pela manhã/ Deixa te dizer/ Dirija de volta pra sua velha cidade/ Quero acordar com ninguém por perto”. Restou alguma dúvida, querida?
“Cortez the Killer” é a faixa mais conhecida do disco. Ele a regravou em “Live Rust” e ainda toca em seus shows. A letra conta a história de Hernán Cortes, um conquistador espanhol que derrotou o império asteca de Montezuma, comandando um dos grandes massacres de índios da história do mundo ocidental. “Ele veio dançando através da água/ com seus galeões e arma/ À procura do novo mundo/ naquele palácio no sol/ Na praia estava Montezuma/ com suas folhas de coca e pérolas/ E nos lugares onde andava/ com os segredos das palavras... E as mulheres eram todas bonitas/ E os homens eram formes e fortes/ Eles ofereceram suas vidas em sacrifício/ para que outros pudessem continuar”. Durante sete minutos e 29 segundos, Neil e o Crazy Horse contam esta história de conquista e dizimação dos mais fracos.
Depois de tudo, a última faixa dá uma folga pras guitarras e Neil resgata uma canção do abortado projeto de reunião de CSN&Y em 1974, no Hawaii, com “Through my Sails”. Nela, os quatro cavaleiros do country rock mesclam suas vozes em harmonias perfeitas ao som do violão de Young, do baixo de Stephen Stills e das congas do convidado Russ Kunkel. As coisas realmente não estavam fáceis para eles nesta tentativa de reencontro. Os sentimentos eram conflitantes e Neil os captura bem falando de velejar, um dos esportes favoritos de seu irmão e rival de música, Stills: “Ainda fitando as luzes da cidade/ No Paraíso eu me elevo/ Incapaz de descer/ por razões que não sei explicar/ total confusão/ Desilusão/ Coisas novas que estou aprendendo... Vento soprando através das minhas velas/ Parece que estou longe/ Deixando o vento soprar/ através de minhas velas”.
Mesmo tendo as guitarras na linha de frente e dando a impressão de ser um disco ensolarado, especialmente após as tragédias de “Tonight's the Night”, “Zuma” não deixa de ser um disco carregado de uma raiva inerente a tudo que estava acontecendo na época. Além disso, esta foi uma das fases mais complicadas de Neil Young com as drogas, as mulheres, as parcerias musicais que não decolavam, o nascimento de um filho com paralisia cerebral e a morte rondando tudo o tempo inteiro. Como a carreira de Young é pontuada por momentos de rara beleza, como "Everybody Knows This Is Nowhere", “After the Gold Rush”, “Tonight's the Night”, “Rust Never Sleeps”, entre muitos outros, “Zuma” tende a ficar num patamar secundário. Mas é meu disco favorito dele por todos estes motivos relatados acima.
Dois anos depois, Neil se reúne com a nata dos músicos de Nashville mais uma colaboradora que iria acompanhá-lo por muito tempo, a cantora Nicolette Larson, e gravaria o seu disco mais conhecido e menos neurótico de todos: “Comes a Time”. Mas esta é outra história.
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FAIXAS:
1. Don't Cry No Tears - 2:34
2. Danger Bird -                6:54
3. Pardon My Heart - 3:49
4. Lookin' For A Love - 3:17
5. Barstool Blues - 3:02
6. Stupid Girl - 3:13
7. Drive Back - 3:32
8. Cortez The Killer - 7:29
9. Through My Sails - 2:41

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OUÇA O DISCO

por Paulo Moreira


quinta-feira, 17 de abril de 2025

Os 25 melhores filmes dos primeiros 25 anos do séc. 21

 

Sofia Coppola, uma das 5 diretoras da lista
Transcorrido um quarto do século 21, já é possível, enfim, vislumbrar o que de melhor aconteceu no cinema neste período. E ao que se pode extrair de amostra desses 25 anos, o século da informação ou da pós-verdade ainda tem muito o que apresentar de bom. Afinal, foram 25 anos que o cinema viu o mundo se transformar. O 11 de setembro de 2001 foi o estopim para uma série de reconfigurações e a certeza de que não apenas o terrorismo se tornaria uma ameaça constante às nações como trazia a mensagem de que ninguém mais estaria seguro. Nem a razão mais está a salvo.

Reconfigurações, inclusive, econômicas. A China, então a “ameaça comunista”, enfim pôs em prática seu modelo de Capitalismo Socialista e se tornou a segunda potência do mundo. Além do enfraquecimento dos Estados Unidos (que Trump quer agora reverter a qualquer custo), a Rússia também adere de vez ao capitalismo, fortalecendo-se, porém com um ditador moderno à frente. Afora isso, guerras na Europa e no Oriente Médio, aquecimento global, polarização ideológica, avanço da extrema-direita, ecos do fascismo, crescimento dos movimentos migratórios, pandemia... Ufa! O que mais deve vir por aí? Angustia até de pensar.

Refletindo de forma direta ou não essas transformações, o cinema segue firme com produções que pululam de diversos lugares do mundo, seja nas Américas, África, Ásia ou na velha Europa. Mas com mudanças de cenário. Alguns polos se fortaleceram, como a América Latina de Argentina e Brasil. No Oriente Médio, o Irã, cada vez mais reprimido, continua mesmo assim a resistir e fazer um cinema de alta qualidade expressiva. Mas também Líbano, Palestina, Iraque, Israel, Arábia Saudita e outros.

A África é outro continente que despontou nestas duas décadas e meia. Embora não superem os aqui listados, é inegável que os países africanos, cujas descolonizações são ainda muito recentes, chegaram ao século 21 produzindo bastante, bem e em vários países, como Senegal, África do Sul, Mauritânia, Quênia, Uganda, Nigéria e outros. Títulos como "Black Tea" (2024), "Heremakono – Esperando a Felicidade" (2020), "Timbuktu" (2014) e "Atlantique" (2019), se não pareiam, deixam viva a esperança de ser ver na tela um cinema africano consolidado internacionalmente.

Em compensação, o cinema soviético, tão abundante e diverso em todo o século 20, fragmentou-se assim como o seu antigo território. E mesmo os Estados Unidos viram grandes alterações de rota. Os estúdios enfrentem novos desafios, como o streaming, a serialização e a “marvelização”. A dianteira da indústria cinematográfica estadunidense, até então sem precisar olhar para o retrovisor, passa a preocupar-se com o desgaste do imperialismo. Megaproduções como “Megalópolis” e “O Brutalista”, definitivamente, não representam mais o que representavam antes.

Além da afirmação de alguns realizadores, como Jordan Peele, Bong Joon-ho e o brasileiro Kléber Mendonça Filho, este começo de era confirma a excelência daqueles que já vinham contribuindo com suas obras para a construção dessa arte ao longo das últimas décadas – casos de Woody AllenClint Eastwood e Pedro Almodóvar. Assim, listamos 25 filmes representativos desses 25 primeiros anos, de 2001 até o ano atual. Não necessariamente um por ano, mas numericamente um símbolo que antecede os próximos 75 ainda a serem lançados e descobertos.

Alguns perguntarão, com justiça: “e as mulheres?” Sim, elas cada vez mais se tornam protagonistas. Justine Triet, Greta Gerwig, Sofia Coppola, Chloé Zhao, Samira Makhmalbaf, bem como as veteranas Jane Campion, Kathryn Bigelow e as que se foram recentemente Chantal Akerman e Claire Denis. Aqui, cinco delas figuram, mas tranquilamente poderia haver mais. Imagine-se quantas realizadoras ainda vêm por aí neste louco planeta em constante ebulição.

A relativa facilidade de se montar essa lista traz consigo certa irresponsabilidade e aquela velha questão: a incompletude. É possível abarcar tanta produção em apenas pouco mais de duas dezenas de títulos? Não deveria haver (e possivelmente caiba) muito mais pesquisa e aprofundamento? Estes são DE FATO os mais representativos, simbólicos ou melhores em qualidade fílmica? Perguntas sem respostas. Talvez, precise-se de mais um quarto de século ou mais para entender o que condiz ou não. Porém, num primeiro momento, estes foram os filmes que saltaram à memória, e isso, independente de um revisionismo ou limitantes, quer dizer, sim, alguma coisa. Se poderiam ser outros? Poderiam, mas tais obras certamente brigariam para estarem nesse rol. Quem sabe, os celebrados Gaspar NoéYorgos Lanthimos, Mati Diop ou Darren Aronofsky não pintem com aquele filmaço inquestionável ainda? Há tempo e competência para isso.

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01. “Parasita”, Bong Joon-ho (2019)

Definitivamente, o melhor filme dos últimos anos – e do século. O thriller do talentoso Bong Joon-ho arrebatou em 2019, por puro mérito, não apenas a Palma de Ouro em Cannes como, mais ainda, os Oscar de Filme e de Filme Estrangeiro! Um feito jamais igualado. “Parasita”, afinal, tem tudo o que um grande filme moderno pode: drama social, crítica ao capitalismo, humor ácido, suspense e, por vezes, toques de terror gore. Tudo numa direção absolutamente criativa, fotografia precisa, roteiro cheio de reviravoltas e atuações brilhantes. Tem mais da metade de século 21 para acontecer, mas não vai ser fácil equiparar com esta obra-prima sul-coreana que redirecionou o olhar do mundo no cinema.




02.
“A Cidade dos Sonhos”, David Lynch (2001)

Lynch nos deixou no último ano, mas legou uma obra tão marcante quanto explorável. Afinal, é dele o cinema mais misterioso já realizado em mais de 100 anos de arte cinematográfica. “A Cidade dos Sonhos” é, além de seu melhor neste século, possivelmente sua melhor realização, e olha que estamos falando de filmes como “Veludo Azul”, “Eraserhead” e “Coração Selvagem” neste páreo. Mas definitivamente a onírica e assustadora obra sobre a atriz que se muda para Los Angeles e tem sua memória e sonhos entrelaçados com a matéria da própria cidade é insuperável. Tanto que ocupa a 8ª posição no ranking de 250 filmes "The Greatest Films of All Time" da tradicional revista Sight & Sound e é considerado o melhor filme entre os 100 da BBC neste século, o qual mal começava e Lynch já dava as cartas.




03.
“Corra!”, Jordan Peele (2017)

Quando Jordan Peele estreou no cinema com “Corra!” já se sabia que ali nascia um ícone do cinema moderno. Negro, talentoso e com muita coisa a dizer, Peele surpreendeu o mundo do cinema – e o gênero de terror – com um filme que imediatamente foi elevado à categoria de obra-prima. Também pudera: a história do jovem fotógrafo Chris, que descobre uma sinistra rede de tráfico de negros para perturbadores finalidades rendeu ao diretor mais de 150 prêmios, incluindo o Oscar de Melhor Roteiro Original. “Corra!” redefine o terror no cinema. Em tempos de George Floyd, o terror não vem de fantasmas, zumbis, monstros ou extraterrestres. Vem de gente branca racista e supremacista.



04.
“Retrato de uma Jovem em Chamas”Céline Sciamma (2019)

Quanta delicadeza e força expressiva para contar uma história de algo que passou a ser um dos temas mais recorrentes dos tempos atuais, que é o LGBTQIAPN+, quando nem se pensava em classificar assim esses grupos. Céline Sciamma se esmera em contar a história de Marianne, uma jovem pintora francesa, no século 18, com a tarefa de pintar um retrato de Héloïse, com quem se vê cada vez mais próxima e atraída. As mesmas travas, os mesmos preconceitos, as mesmas opressões dos tempos atuais. Mas, otimistamente falando, a mesma possível liberdade de amar a quem se quiser mesmo que isso, necessariamente, gere consequências – ontem e hoje. Entre os diversos prêmios que "Retrato de Uma Jovem em Chamas" recebeu, o merecidíssimo César de Melhor Fotografia.



05. “Menina de Ouro”Clint Eastwood (2004)

O velho Eastwood, hein? À época, com seus 74 (hoje, quase centenário), depois de produzir sempre bem e bastante e de já ter posto seu nome na história do cinema norte-americano com filmes como “Bird” e o oscarizado “Os Imperdoáveis”, vem com essa obra-prima ao mesmo tempo delicada e pesada, triste e tocante. Tanto é que arrebatou a Academia em 2004, levando 4 dos 7 Oscar que concorreu: Melhor Filme, Diretor, Atriz e Ator Coadjuvante. A habilidade do experiente Eastwood em lidar com a luz e o mergulho nas sombras, seja no sentido estético quanto figurado, é de abismar. Impossível sair de uma sessão de “Menina de Ouro” sendo a mesma pessoa que entrou.

Clintão com a oscarizada Hillary Swank em um dos melhores filmes do século


06.
“O Pianista”, Roman Polanski (2002)

Daqueles filmes talhados a obra-prima. O tarimbado Polanski, cujo nome está gravado na história do cinema por filmes como “O Bebê de Rosemary”, “Chinatown” e “Cul-de-Sac”, acerta em tudo em “O Pianista”, uma obra pungente e necessária, inclusive para o próprio Polanski, judeu que perdera os pais no Holocausto. O filme venceu Palma de Ouro, Bafta e Cesar, mas o Academia do Oscar dos Estados Unidos, país onde Polanski é considerado fugitivo por um crime de estupro nos anos 70, não cedeu. Deu ao filme as estatuetas de Melhor Ator, Roteiro Adaptado e de Diretor, o qual o diretor recebeu e agradeceu via vídeo bem longe, na Europa. A de Filme, no entanto, não. A aclamação veio naturalmente.



07.
“O Segredo dos Seus Olhos”, Juan José Campanella (2010)

A Argentina já vinha preparando o terreno para que o mundo a reconhecesse como uma das principais produtoras do cinema da atualidade desde os anos 80. O Oscar de Filme Estrangeiro para “A História Oficial”, sobre a ditadura no país, já anunciava isso. Porém, o amadurecimento do cinema local e a formação de cineastas e profissionais do audiovisual colocaram o cinema a América Latina em real evidência no século 21 pela primeira vez. Ah! tem mais um fator a favor de "O Segredo dos seus Olhos", que se chama Ricardo Darín. O grande ator do novo cinema argentino é a cara dessa geração não poderia estar de fora daquele que é, mesmo com outros grandes concorrentes, o melhor filme da Argentina do século até aqui. Tanto que o Oscar de Filme Estrangeiro veio de novo, inevitavelmente. Naquele 2009, não teve pra ninguém com esse thriller que junta suspense, policial, romance, comédia e o velho dedo na ferida dos argentinos com a ditadura.



08.
“A Pele que Habito”, Pedro Almodóvar (2011)

Almodóvar é aquele diretor que é tão talentoso, que pode se dar ao luxo de fazer filmes menos expressivos dentro daquele seu universo kitsch e absurdo para, do nada, criar uma obra-prima surpreendente. “A Pele que Habito”, além de contar com velhos parceiros (Antonio Banderas, Marisa Paredes, Jean-Paul Gaultier, Alberto Iglesias) é, sem dúvida, uma revitalização do cinema do próprio cineasta espanhol, o filme que o reinventou (como se não bastasse já haver se reinventado outras várias vezes anterior e posteriormente). Espécie de “O Médico e o Monstro” com ares da bizarrice que marca os roteiros de Almodóvar: sexo, culpa, vingança, problemas psicológicos. Uma ressignificação de obras anteriores como “Matador”, “Ata-me” e “Carne Trêmula”.



09.
“Onde os Fracos não têm Vez”, Joel e Ethan Coen (2007)

Se nos anos 90, os Coen já haviam realizado sua obra-prima, “Fargo”, nos 2000 o seu grande filme é “Onde os Fracos não têm Vez”. Quase um aperfeiçoamento de “Fargo” em alguns aspectos, seja na trama errática, na câmera observante, na presença de personagens amorais ou na estética inospitaleira, o filme troca o branco da neve do primeiro pela aridez dos tons terrosos do deserto. E também volta a explorar a fragilidade do humanismo diante da brutalidade da sociedade. E ainda tem aquele que é um dos mais assustadores e marcantes psicopatas da história do cinema, o assassino de aluguel Anton Chigurh, vivido brilhantemente por Javier Barden. Arrebatou 4 Oscar: Melhor Filme, Diretor, Roteiro Adaptado e Ator Coadjuvante, além de ganhar três BAFTA, dois Globos de Ouro, American Film Institute e o National Board of Review of Motion Pictures.



10. “Cidade de Deus”, Fernando Meirelles e Katia Lund (2007)

Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe”, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” e, agora, "Ainda Estou Aqui", se equiparem em importância a “Cidade de Deus” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria sem antes ter existido "Cidade..."? Fernando Meirelles, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso por conta do extraordinário filme, autoral, pop e inovador em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Internacional, mas como Filme e Diretor, outra porta que abriu para “Ainda Estou Aqui”.


11. “Bastardos Inglórios”, Quentin Tarantino (2009)

A última frase dita no filme, na voz do célebre personagem Aldo, o Apache (Brad Pitt) é: "acho que eu fiz minha obra-prima". Está certo que Aldo se referia ao ferimento a faca que marcou na testa do igualmente histórico personagem Cel. Hans Landa (Christopher Waltz), mas é inegável que a frase é propositalmente ali posta por Quentin Tarantino por este reconhecer, sem falsa modéstia, que havia chegado, sim, à sua melhor realização. Ao menos, a mais madura e a mais bem produzida entre todos os seus nove longas. Se “Pulp Fiction” marcou uma nova era do cinema de autor nos anos 90, nos 2000 não tem igual a "Bastardos Inglórios".  um bingo!"... é assim que se diz na América: "um bingo"? 



12.
“A Fita Branca”, Michael Haneke (2009)

É difícil escolher um Haneke, esse cineasta peculiar que desde os anos 80 produz um cinema marcado pelo olhar crítico dos padrões da sociedade ocidental e o consequente declínio da moral hegeliana. Porém, “A Fita Branca”, além de seu congelante p&b e as assustadoramente reais atuações dos atores mirins, tem a incisividade de identificar o "ovo da serpente", ou seja: os impulsos que levaram às Grandes Guerras, tão definidoras de caminhos do mundo no século 20, principalmente da Europa, Cannes, que não é boba, identificou a essencialidade do filme para a cinematografia moderna dando-lhe a inconteste Palma de Ouro de 2009.



13.
“Roma”, Alfonso Cuarón (2019)

Há quem o considere "Roma" o filme mais injustiçado do Oscar dos últimos tempos, visto que merecedor do de Melhor Filme Estrangeiro, que venceu, como também de Melhor Filme, dado naquele 2019 ao contestado "Green Book". A triste história da empregada Cleo na Cidade do México nos anos 70 é contada com um misto de poesia, realismo e fatalismo pelo diretor Alfonso Cuarón, que também roteiriza, produz, edita, fotografa e conduz a própria câmera num p&b capaz de reinventar memórias. E quão potente é a sutil alusão à antiga cidade italiana, berço da civilização moderna. Seria mesmo uma sociedade "civilizada"? Além do Oscar, levou Leão de Ouro em Veneza, Globo de Ouro, Bafta e Chritcs Choice.



14.
“Bacurau”, Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)

O pernambucano Kléber Mendonça Filho realiza, sem sombra de dúvida, o cinema mais completo do Brasil nos últimos anos. Sua filmografia de longas é só acerto. Primeiro, “O Som ao Redor”. Depois, “Aquarius”, passando por este e o documentário “Retratos Fantasmas”. “Bacurau”, no entanto, é daqueles filmes sui generis, um faroeste sertanejo sobre limpeza cultural, resistência ao imperialismo e o império da violência. Um retrato do Brasil ameaçado pelo fascismo e pela consequente americanização das mentes. Com a edição característica e as marcas da maneira de filmar de Kléber (fusões, zoons, closes x planos abertos), tem na trilha e nas atuações naturais outras de suas forças. Por imperícia da Academia Brasileira de Cinema, não foi o escolhido para concorrer pelo Brasil ao Oscar de Filme Estrangeiro, feito que somente agora “Ainda Estou Aqui” atingiu. Se tivesse ido, tinha boas chances. O próprio Bong Joon-ho, vencedor dessa categoria com “Parasita”, disse que ‘Bacurau” “tem uma energia única, traz uma força enigmática e primitiva.” É.



15. “A Vida dos Outros”, Florian Henckel von Donnersmarck (2006)

Retratos da Alemanha Oriental ainda hoje não são muito comuns no cinema. Talvez por vergonha do que acontecia de ruim do lado vermelho do Muro, talvez porque a vida fosse, de fato, muito monótona que não inspirasse filmes sobre aquela realidade. Este brilhante filme de Florian Henckel von Donnersmarck é, de certa forma, um pouco dessas duas coisas: uma mostra de que não era uma maravilha a vida sob o regime socialista alemão e que, sim, os dias não tinham muito sabor. Ao vigiar 24 horas a vida do escritor Georg Dreyman e de sua namorada a mando do governo, o militar Gerd Wiesler começa aos poucos a se dar conta da existência do amor, do companheirismo e da dor existencial de viver num país coercitivo e punidor que ele mesmo ajudava a manter. "Abaixo às ditaduras", sejam elas do lado que for. Oscar, César, British Academy e Donatello de Melhor Filme Estrangeiro, entre outros, "A Vida dos Outros" foi apontado pela revista National Review como o "O Melhor Filme dos Últimos 25 anos". Não podemos estar tão errados em elencá-lo também.

Memorável filme de von Donnersmarck reflexiona aquilo que o séc. 20 não ousou,
que é a crítica à ditadura - inclusive, as de esquerda


16.
“O Regresso”, Alejandro González Iñárritu (2015)

Iñarritu apareceu para o mundo do cinema no seu México natal, mas em seguida foi absorvido pela indústria dos Estados Unidos. Entre erros e acertos, completou sua trilogia iniciada em “Amores Perros” com “21 Gramas” e “Babel”, derrapou no confuso “Biutiful” e conquistou o Oscar com o ousado “Birdman”. Mas foi na narrativa tradicional de "O Regresso", ao contar a história real de vingança do personagem Hugh Glass, num inóspito Oeste norte-americano do século 19, que o cineasta foi só acerto. Teve como aliados, bem verdade, Leonardo DiCaprio atuando e Ryuichi Sakamoto na trilha. E a cena do ataque do urso?! O que é aquilo?! Só ela, já valia.



17.
“Zona de Interesse”, Jonathan Glazer (2024)

Somente a abertura do filme, com quase 1 minuto de tela preta sobre um som tenso, insistente e inconclusivo, já demostra a personalidade deste impactante filme. Difícil, aliás, encontrar alguém que não guarde o impacto que o filme lhe causou ao mostrar com crueza a comparação entre desumanidade e a normalidade da vida de uma abastada família alemã vizinha do campo de concentração de Auschwitz. “Zona de Interesse” não tem, inclusive, muito enredo. E um roteiro de poucos acontecimentos, que se presta a evidenciar sem filtros a perversidade humana. Filme que encerra a linha de títulos pós-Segunda Guerra inaugurado simbolicamente em 1947 com “Alemanha Ano Zero”, de Roberto Rosselini. O Oscar de Melhor Filme Internacional era-lhe certo, como de fato foi.



18.
“Match Point”, Woody Allen (2024)

Woody Allen é como Paul McCartney ou Caetano Veloso na música: não precisa provar nada depois do que já realizou. O cineasta dos geniais “Manhattan”, “Hannah e suas Irmãs”, “Crimes e Pecados” e outros já deixou sua contribuição para a história do cinema há muito tempo. Mas ele entrou os anos 2000 produzindo. E bastante. Após um período um tanto oscilante em termos de qualidade, Allen vem com este filme surpreendente, que começa parecendo uma comédia romântica, vira um drama, passa a ser um policial, até tornar-se um suspense eletrizante. Há outros de Allen de até mais sucesso deste período, como “Vicky Cristina Barcelona”, “Para Roma com Amor” e o queridinho “Meia-Noite em Paris”, mas nenhum bate “Match Point”, um filme único em sua extensa filmografia.



19.
“Melancolia”, Lars Von Trier (2011)

Lars Von Trier surgiu na Dinamarca dos anos 80 com um cinema autoral, criou e passou pelo Dogma 95 nos anos 90, chegou a Hollywood nos anos 2000 e tornou-se uma lenda viva do cinema mundial. “Melancolia”, seu 22º longa, parece arrecadar todas essas experiências, mas de uma maneira ainda assim particular. Estão nele o cinema de arte dos primeiros filmes, a câmera na mão e a montagem naturalista do Dogma e a convocação de grandes astros (Kirsten Dunst, Kiefer Sutherland, Charlotte Gainsbourg). Mas mais do que isso: "Melancolia" tem uma narrativa absolutamente instigante em uma ficção científica que faz uma metáfora da insustentabilidade dos cansados padrões sociais. O que isso resulta? Em catástrofe. Questionamentos urgentes que os novos tempos de pós-verdade exigem.



20. “O Pântano”, Lucrecia Martel (2001)

O cinema argentino conta com vários outros cineastas talentosos. Porém, nenhum deles possui um estilo tão pessoal como o de Lucrécia Martel. Dona de um cinema de linhagem moderna carregado e perspicaz, ela vale-se da dificultação do olhar e da fragmentação narrativa para expressar sentimentos e angústias da sociedade contemporânea, adentrando nas profundezas de seus personagens. Exímio em expressar esse universo, “O Pântano” fala sobre duas famílias que, em meio a um verão infernal na cidade de La Cienaga, entram em conflito. Texturas, sensorialidades e densidade se homogeinizam para expor tensões interpessoais, que se encaminham fatalmente para o pior. Uma reflexão visceral sobre classe, natureza, sexualidade e política, e uma das mais aclamadas estreias de realização contemporâneas. Prémio para Melhor Primeira Obra no Festival de Cinema de Berlim.


21.
“Holy Spider”, Ali Abbasi (2022)

Asghar Farhadi, Jafar Panahi, Mohammad Rasoulof, Nafiseh Zare e Peivand Eghtesadi são todos realizadores iranianos com grandes obras e que mantêm o alto nível do cinema deste complicado país islâmico. Outro cineasta, Ali Abbasi, no entanto, foi quem produziu aquele que pode ser considerado o mais impressionante filme desta safra do século 21 no Irã. "Holy Spider" acompanha a aterrorizante história real do serial killer mais temido do Irã, "Spider Killer", que atuou entre os anos de 2000 e 2001, vitimando 16 prostitutas em nome de uma jornada "espiritual" de limpar a cidade da corrupção e imoralidade. Este thriller policial desvela uma série de padrões sociais muito arraigados na sociedade islâmica com os quais a jornalista Arezoo Rahimi precisa se deparar. O anseio pela mudança da condição da mulher vem novamente à tona como em diversos outros filmes iranianos. Porém, parece que algo está evoluindo – mesmo que ainda seja mais vontade que realidade. 



22.
“Encontros e Desencontros”, Sofia Coppola (2003)

Pode-se contar nos dedos os cineastas que, de largada, fizeram seu melhor filme. Nem Renoir, nem Pasolini, nem Ophuls, nem Wilder, nem Kubrick. Nem mesmo Francis Ford Coppola, pai de Sofia que, esta sim, conseguiu tal feito. “Encontros e Desencontros”, o apaixonante e originalíssimo romance passado numa Tóquio tão populosa quanto inóspita, é um marco do cinema feminino neste século. Referências a Ozu, a Tati, a Tarkowsky, a Wenders. Mas, principalmente, a própria Sofia, que formula um cinema com a sua cara: profundo, plástico e autoral. Um dos grandes vencedores do Globo de Ouro daquele ano, ganhou como Melhor Filme em Comédia ou Musical, Ator em Comédia ou Musical (Bill Murray) e Roteiro, categoria na qual foi também premiado no Oscar. Que debut!



23.
“Drive my Car”, Ryūsuke Hamaguchi (2021)

Contar bem uma história é a essência do cinema. Agora, contar bem uma história longa e cheia de detalhes e encadeamentos sem perder a fruição é digno de aplauso. É o que o cineasta Ryūsuke Hamaguchi fez ao adaptar para a tela o conto do renomado escritor japonês Haruki Murakami. Em suma, embora todos os minutos das praticamente 3 horas de duração de "Drive my Car" sejam totalmente aproveitáveis, o filme nada mais é do que a narração da história de duas pessoas solitárias que encontram coragem para enfrentar o seu passado. Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, não teve pra outros em 2022. O Japão, aliás, sempre tão essencial para o cinema, segue rendendo bons frutos. Filmes como “Assunto de Família”, “Pais e Filhos” e “Monster” bem podiam estar aqui também.



24.
“O Cavalo de Turim”, Béla Tarr e Ágnes Hranitzky (2011)

O velho fazendeiro Ohlsdorfer e sua filha dividem um cotidiano dominado pela monotonia. A realidade dos dois é observada pela vista da janela e as mudanças são raras. Enquanto isso, o cavalo da família se recusa a comer e a andar. O filme é uma recriação do que teria ocorrido com o animal após ter sido salvo da tortura pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche durante uma viagem a Turim, na Itália. Este "épico do nada" foi o canto-do-cisne do aclamado diretor húngaro Béla Tarr, que disse que o filme aborda “o peso da existência humana”. Takes longos, poucos diálogos, trilha econômica e plasticidade carregada e altamente poética, marcas que Tarr dividiu a direção em sua última obra com a esposa e constate colaboradora Ágnes Hranitzky. Prêmio FIPRESCI e do Grande Júri em Berlim.



25. “Ainda Estou Aqui”, Walter Salles Jr. (2024)

Muito se falou nos últimos meses do filme que, enfim, conquistou o tão almejado Oscar para o Brasil. Somente por isso, o longa de Walter Salles já garantiria seu posto entre os mais importantes deste quarto de século 21 ao recolocar a América do Sul no mapa mundial da indústria do cinema. Porém, "Ainda Estou Aqui" é mais do que somente sua simbologia. De um roteiro cirúrgico e atuações marcantes, principalmente da oscarizável Fernanda Torres, tem o poder de tocar o espectador e de saber contar com sensibilidade uma história real e tão universal, que trata, antes de tudo, sobre liberdade. Além do Oscar e do Globo de Ouro para Fernandinha, vários prêmios de fina estirpe assinalam isso, como Veneza, Goya e Miami.

E fechamos com Fernandinha, que fez história no cinema brasileiro (e latino-americano)
neste final de primeiro quarto de século 21

PS: Mesmo não incluídos na lista acima, merecem “menção honrosa” estes outros 25, pois são todos excelentes filmes, que bem podiam estar ali: 

“Pina” (Win Wenders, 2011)
“Senhores do Crime” (David Cronenberg, 2007)
“Assunto de Família” (Hirokazu Koreeda, 2018)
“Edifício Master” (Eduardo Coutinho, 2002)
“Três Anúncios para um Crime” (Martin McDonagh, 2017)
“Moonlight” (Barry Jenkins, 2016)
“Sangue Negro” (Paul Thomas Anderson, 2007)
“Infiltrado na Klan” (Spike Lee, 2018)
“Interestelar” (Christopher Nolan, 2017)
“Film Socialisme” (Jean-Luc Godard, 2009)
“Visages, Villages” (Agnès Varda e JR, 2018)
“O Clã” (Pablo Trapero, 2015)
“A Separação” (Asghar Farhadi, 2011)
“Gran Torino” (Clint Eastwood, 2008)
“Assassinos da Lua das Flores” (Martin Scorsese, 2023)
“O Lobo de Wall Street” (Scorsese, 2013)
“Cópia Fiel” (Abbas Kiarostami, 2010)
“Elefante” (Gus Van Sant, 2003)
“Ela” (Spike Jonze, 2013)
“Eu, Daniel Blake” (Ken Loach, 2016)
"Kill Bill - vol. 1” (Quentin Tarantino, 2003)
“Irreversível” (Gaspar Noé, 2002)
“Nomadland” (Chloé Zhao, 2020)
“Anatomia de uma Queda” (Justine Triet, 2023)
“Triângulo da Tristeza” (Ruben Östlund, 2022)


Daniel Rodrigues


quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Os 12 personagens mais assustadores do cinema


O cinema é capaz de mexer com as nossas emoções como pouca coisa consegue, mesmo a gente sabendo que, na grande maioria das vezes, aquilo que estamos vendo seja apenas uma encenação. Somos, com total aceitação, levados a acreditar na “mentira” e com ela se comover. Jean-Claude Carrière, fascinado por essa magia que talvez apenas o cinema tenha no universo das artes, comenta em seu “A Linguagem Secreta do Cinema” que os instrumentos de persuasão do cinema podem parecer simples: emoção, sensação de medo, repulsa, irritação, raiva, angústia. Mas, pontua ele, “na realidade, o processo é muito mais complexo”, provavelmente até indefinível. “Envolve os mais secretos mecanismos do nosso cérebro, incluindo, talvez a preguiça, a natural indolência, a disposição para renunciar às suas virtudes por qualquer adulação.”

Isso explica em parte porque sentimos tanto medo de alguns personagens. E não estou falando apenas dos assassinos dos filmes de terror: há pessoas (afinal, acreditamos que elas, mesmo lá dentro da tela, existam de verdade) que, mesmo num drama ou outro gênero menos horripilante nos provocam igual sensação de temor. Quando essa magia intrínseca do cinema observada por Carrière se junta ao talento de cineastas e atores, a química é bem dizer infalível. Aí, soma-se a isso ainda nossa aceitação quase pueril ao que vemos e dá pra imaginar o que acontece: frio na espinha.

Ainda por cima, o universo dos vilões aterrorizantes é inegavelmente fascinante. Quem, mesmo tremendo as pernas a cada gesto que o dito cujo venha a dar, não aprecia (ou pelo menos reconhece que é sui genneris) a figura de um Freddy Krueger ou Michael Myers? Mas, como disse, não tratamos aqui somente dos carniceiros, afinal, destes é até previsível que imputem medo. Elencamos aqueles personagens e seus respectivos atores cujos papeis são tão críveis que não faríamos nenhuma questão de cruzar com eles algum dia na vida – e não precisa nem ser uma pessoa, inclusive.



O penetrante olhar do canibal Lecter.
1 – Hannibal Lecter (Anthony Hopkins)
O absolutamente frio psiquiatra, que atravessou a fronteira da sanidade para passar a matar por prazer – às vezes, até se alimentando de suas vítimas, dando-lhe o simpático apelido de Hannibal “Canibal” –, é provavelmente o mais célebre psicopata da história do cinema. Hopkins, com talento e muita sensibilidade, dá vida ao personagem do escritor Thomas Harris, o qual aparece pela primeira vez na tela no clássico “O Silêncio dos Inocentes” (Demme, 1991). Continuou assustador em outros longas, “Hannibal” (2001), “Dragão Vermelho” (2002) e “Hannibal - A Origem do Mal” (2007), mas vê-lo no primeiro e disparado melhor da série é até hoje imbatível em termos de qualidade cênica – e de medo também.





2 – Norman Bates (Anthony Perkins)
É inegável que as patologias psíquicas dão muito substrato para a criação deste tipo de personagem, seja na literatura ou no cinema. E claro que os diversos transtornos mentais existentes são um prato cheio para roteiristas. Norman Bates, psicótico atormentando pelo Complexo de Édipo encarnado como jamais o próprio Perkins conseguiu igualar, é até hoje um enigma que desafia os psiquiatras. Mas numa coisa todo mundo concorda: o cara dá medo pacas! Com a mão habilidosa de Alfred Hitchcock"Psicose", de 1960, tem talvez o melhor personagem de um thriller no melhor filme do mestre do suspense.


Monólogo final de Norman Bates - "Psicose"


Pacino, mais assustador que
muito serial-killer.
3 – Michael Corleone (Al Pacino)
Os filmes de máfia são recheados de personagens marcantes e não raro assustadores, pois altamente violentos. Porém, talvez pelo tratamento literário de drama dado por Mario Puzo, pela escolha acertada de Coppola do jovem Pacino para o papel e, obviamente, pelo talento do ator, nenhum se compare ao filho mais novo de Don Corleone. Empurrado pelo destino para o crime organizado, o ex-oficial do Exército tornou-se, mais do que qualquer outro de seus irmãos, o chefão mais impiedoso e frio da cosa nostra. Se no primeiro longa vê-se sua conversão à máfia até a natural sucessão ao pai, em "O Poderoso Chefão - parte 2", de 1974, ele está mais apavorante do que muito serial killer. Com um olhar, ele faz qualquer um congelar. Poderoso, dá-se direito a qualquer coisa, e nunca se sabe o que está maquinando naquela mente obsessiva. Coisa boa, não é. Seja nos acessos de raiva, seja no mais contido e calculista silêncio, Michael é apavorante.





Close com um sorriso nada covidativo.
4 - Alex Forrest (Glenn Close)
Não são apenas homens que fazem o espectador arrepiar. A maníaca de Alex Forrest, de “Atração Fatal” (Lyne, 1988), vivida por Glenn Close, é o melhor exemplo. Inconformada com um “pé na bunda” que levara de um homem casado, Dan Gallagher (Michael Douglas), com quem tivera um caso, ela passa a persegui-lo e a assombrar não apenas a ele, mas toda a sua família. Memoráveis cenas, como a do coelhinho de estimação da filha de Dan cozinhando na panela ou quando, depois de uma briga em que ele quase a estrangula, ela solta um sorriso horripilante, não deixam dúvida da força dessa personagem. Aliás, através da psicopatia, um símbolo à época do novo comportamento feminino, que não aceita mais a imposição machista nas relações. Não tem mais perdão: traiu, é penalizado.





5 - Alien (Bolaji Badejo)
Na magia do cinema, o medo pode vir da maneira que se bem entender. Pois não é a forma humana do ator nigeriano Bolaji Badejo que configura o seu personagem mais marcante. É a fantasia que ele veste, a do extraterrestre mais apavorante do cinema: Alien. Vários da mesma espécie dão as caras no bom “Aliens - O Resgate” (Cameron, 1986) e nas desnecessárias sequências. Mas nada se compara à excelente ficção-terror de 1979, de Ridley Scott, em que apenas um exemplar da espécie vai parar dentro da nave espacial em uma missão cheia de problemas. Um, aliás, é mais que suficiente para botar terror em todo mundo. O mais interessante é que o bicho não é muito visto, pois há o recurso fotográfico e cênico de dificultação do olhar, como pede um bom thiller. O vemos de fato, por inteiro e em luz suficiente, apenas mais para o fim da fita, quando o clímax já está lá em cima. Aí, só resta se segurar na poltrona.


Cena do gato de Ripley - "Alien, o oitavo passageiro"


O Cady da primeira e o da segunda vaersão.
6 - Max Cady (Robert De Niro)
Um dos maiores atores da história, De Niro de tempo em tempo encarna figuras assustadoras, desde o taxista louco de “Taxi Driver’ até o comerciante de escravos Rodrigo Mendoza de “A Missão”. Mas nada se compara a Cady, em que revive o já ótimo personagem de Robert Mitchum na versão que inspirou Martin Scorsese a rodar "Cabo do Medo", de 1991 (“Círculo  do Medo”, 1962). União de QI elevado e músculos, o algoz da família Bowden é capaz de, aliado à abordagem do roteiro, confundir os papeis de vilão e herói. Quem é mais filha da puta ali: o ex-presidiário que se vale da liberdade para perseguir os outros, o advogado que o prendeu deliberadamente, a esposa conivente ou as leis da sociedade, interpretáveis e permissivas?






7 - HAL-9000 (Douglas Rain – voz)
Quem disse que só a violência do homem ou a selvageria do bicho podem assustar? A inteligência, quando direcionada para o lado ruim, é devastadora. Ainda mais quando essa inteligência for artificial, como a do computador HAL-9000, o cérebro-mãe da nave especial de "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968). Kubrick e Clarke criam o personagem mais estático e, talvez até por isso, amedrontador do cinema moderno. Mirar aquele seu “olho” de plástico é deparar-se com a frieza inumana capaz das piores coisas. Através de meticulosos comandos, a máquina, rebelde e neurótica, põe à sua mercê toda a tripulação, afetando, mesmo depois de “morto”, toda a expedição. Detalhe: a voz original de Douglas Rain já é suficientemente aterradora, mas a da dublagem para o português, feita pelo célebre Marcio Seixas na clássica versão da Herbert Richards, consegue superar.

Dublagem clássica de HAL-9000 - "2001: Uma Odisseia no Espaço"




8 - Zé Pequeno/Dadinho (Leandro Firmino da Hora/ Douglas Silva)
Tem que ser muito sem noção para dizer para um mal-encarado “como é que tu chega assim na minha boca?!” Não precisa ser cinéfilo pra conhecer a resposta que é dada, pois é naquela cena que um dos personagens mais incríveis do cinema dos últimos 30 anos surgia ainda mais temível. Se o pequeno Dadinho já apavorava por se ver uma criança com sede de matar nos olhos, o jovem traficante vivido magistralmente por Firmino em “Cidade de Deus” (2002), então, “lavou a égua” neste quesito. Violento, entorpecido, marginal, cruel. Como não esbugalhar os olhos quando esse cara manda matar uma criança pequena a sangue frio? Ninguém se meta com Dadinho! Ops! Agora é Zé Pequeno, foi mal aí.






O brilhante personagem de Barden.
9 - Anton Chigurh (Javier Barden)
Os irmãos Cohen são mestres do anticlímax, uma vez que seus filmes se valem largamente desse expediente, usado por eles com muita habilidade de forma a gerar impactos surpreendentes no espectador pelo jogo oportuno de quebra ou confirmação da expectativa. O personagem Anton Chigurh, encarnado por Javier Barden no faroeste moderno "Onde Os Fracos Não Tem Vez" (2007), é montado todo em cima dessa premissa. Absolutamente inexpressivo e unidirecional, o psicótico Anton não sente nada, apenas mata. A naturalidade com que ele elimina suas vítimas não tem glamour nenhum. Ele simplesmente pega e mata, e nada é capaz de freá-lo. Fora isso, dá um pavor danado sempre que ele aparece com aquela arma de ar comprimido.







10 - Harry Powell (Robert Mitchum)
“Lobo em pele de cordeiro” é a melhor definição para Harry Powell. Afinal, quem desconfiaria que um pastor aparentemente cheio de boas intenções se revelaria um tirano doméstico da pior espécie? Se a interpretação de Mitchum fora superada pela de De Niro como Max Cady, esta de "O Mensageiro do Diabo" (Laughton, 1955) fica para a história do cinema como uma das mais fortes e impressionantes já vistas nas telas. Filme impecável, também mas não apenas pelas atuações. Mas Mitchum, inegavelmente é o destaque.

"Amor-Ódio" - "O Mensageiro do Diabo"



Mais insano que qualquer outro Coringa.
11 – Coringa (Heath Ledger)
 O alucinado e diabólico vilão das histórias do Batman é um dos personagens mais originais da cultura pop mundial. Interpretá-lo é, obviamente, um privilégio. George Romero o fez muito bem na série e até o craque Jack Nicholson mandou muito bem no papel, mas nada se compara ao que Heath Ledger fez em "O Cavaleiro das Trevas" (Nolan, 2008). Ele encarna Coringa, a ponto de, dizem, amaldiçoar-se, haja vista que morreu logo depois das filmagens. Ledger achou como poucos atores para o limiar entre a loucura e a lucidez, entre o burlesco e o austero. Menção que não podia deixar de faltar na lista.






12 - Jack Torrance (Jack Nicholson)
Se Stanley Kubrick já conseguira assustar com um computador, imagina quando ele volta toda a história para isso. É o caso do perfeito "O Iluminado" (1979), outra das obras-primas do cineasta costumeiramente reconhecido como o grande filme de terror de todos os tempos e a melhor adaptação de Stephen King para as telas. Mas seu impacto certamente não seria o mesmo se não tivesse a força de Nicholson no papel de Jack Torrance. Ele vale-se de toda sua técnica e sensibilidade cênicas a serviço da construção do personagem que vai perdendo o controle de sua sanidade, pois, mediunicamente vulnerável, sucumbe aos espíritos “sanguessugas” ligados àquele que Jack foi na vida passada: um serial killer que matou toda sua família.

por Daniel Rodrigues