Pois é, este ano a grande festa mundial do cinema cai junto com a festa de Momo tão celebrada pelos brasileiros. Para os amantes do cinema as atenções se voltam mesmo para Los Angeles, onde acontece a festa de premiação, no pr´ximo dia 02 de março.
Este ano, na corrida pelo prêmio de melhor filme, ao que parece, "Trapaça" de David Russel e "Gravidade" de Alfonso Cuarón saem na frente no favoritismo, mas 'zebras' como "O Lobo de Wall Street" do oscarizado Martin Scorsese, e o já cultuado "Ela" do doidão Spike Jonze, podem surpreender.
Cate Blanchett parece despontar com uma pequena vantagem sobre suas concorrentes, por seu papel em "Blue Jasmine" e Mathew McConnaughey e Bruce Dern prometem uma disputa acirrada pela estatueta de ator.
Com disputas muito equilibradas, de filmes de muito boa qualidade, a maioria das categorias não tem favoritaços disparados, embora algumas tenham bons indicativos. Mas vamos deixar para descobrir no domingo, não?
Abaixo a lista com os indicados em cada categoria:
Melhor filme Trapaça Capitão Phillips Clube de Compras Dallas Gravidade Ela Nebraska Philomena 12 Anos de Escravidão O Lobo de Wall Street
Melhor diretor David O. Russell - Trapaça Alfonso Cuarón - Gravidade Steve McQueen - 12 Anos de Escravidão Martin Scorsese - O Lobo de Wall Street Alexander Payne - Nebraska
Melhor atriz Cate Blanchett - Blue Jasmine Amy Adams - Trapaça Sandra Bullock - Gravidade Judi Dench - Philomena Meryl Streep - Álbum de Família
Melhor ator Christian Bale - Trapaça Bruce Dern - Nebraska Leonardo DiCaprio - O Lobo de Wall Street Chiwetel Ejiofor - 12 Anos de Escravidão Matthew McConaughey - Clube de Compras Dallas
Melhor ator coadjuvante Barkhad Abdi - Capitão Phillips Bradley Cooper - Trapaça Michael Fassbender - 12 Anos de Escravidão Jonah Hill - O Lobo de Wall Street Jared Leto - Clube de Compras Dallas
Melhor atriz coadjuvante Sally Hawkins - Blue Jasmine Jennifer Lawrence - Trapaça Lupita Nyong'o - 12 Anos de Escravidão Julia Roberts - Álbum de Família June Squibb - Nebraska Melhor canção original "Alone Yet Not Alone" - Alone Yet Not Alone "Happy" - Meu Malvado Favorito 2 "Let it Go" - Frozen - Uma Aventura Congelante "The Moon Song" - Ela "Ordinary Love" - Mandela Melhor roteiro adaptado Antes da Meia-Noite Capitão Phillips Philomena 12 Anos de Escravidão O Lobo de Wall Street Melhor roteiro original Trapaça Blue Jasmine Clube de Compras Dallas Ela Nebraska
Melhor longa de animação Os Croods Meu Malvado Favorito 2 Ernest & Celestine Frozen - Uma Aventura Congelante The Wind Rises
Melhor documentário em longa-metragem The Act of Killing Cutie and the Boxer Dirty Wars The Square 20 Feet From Stardom
Melhor longa estrangeiro The Broken Circle Breakdown A Grande Beleza A Caça The Missing Picture Omar Melhor fotografia O Grande Mestre Gravidade Inside Llewin Davis: Balada de um Homem Comum Nebraska Os Suspeitos
Melhor figurino Trapaça O Grande Mestre O Grande Gatsby The Invisible Woman 12 Anos de Escravidão Melhor documentário em curta-metragem CaveDigger Facing Fear Karama Has No Walls The Lady in Number 6: Music Saved My Life Prison Terminal: The Last Days of Private Jack Hall Melhor montagem Trapaça Capitão Phillips Clube de Compras Dallas Gravidade 12 Anos de Escravidão
Melhor maquiagem e cabelo Clube de Compras Dallas Vovô Sem-Vergonha O Cavaleiro Solitário
Melhor trilha sonora A Menina que Roubava Livros Gravidade Ela Philomena Walt nos Bastidores de Mary Poppins Melhor design de produção Trapaça Gravidade O Grande Gatsby Ela 12 Anos de Escravidão
Melhor animação em curta-metragem Feral Get a Horse! Mr. Hublot Possessions Room on the Broom
Melhor curta-metragem Aquel No Era Yo (That Wasn't Me) Avant Que De Tout Perdre (Just Before Losing Everything) Helium Pitääkö Mun Kaikki Hoitaa? (Do I Have to Take Care of Everything?) The Voorman Problem
Melhor edição de som Até o Fim Capitão Phillips Gravidade O Hobbit - A Desolação de Smaug O Grande Herói
Melhor mixagem de som Capitão Phillips Gravidade O Hobbit - A Desolação de Smaug Inside Llewin Davis: Balada de um Homem Comum O Grande Herói Melhores efeitos visuais Gravidade O Hobbit - A Desolação de Smaug Homem de Ferro 3 O Cavaleiro Solitário Star Trek - Além da Escuridão
Uma das melhores combinações que existem atualmente no cinema
norte-americano chama-se Scorsese/DiCaprio. Um, atrás das câmeras, e o outro, à
frente. Martin Scorsese, o mestre que soube impor à indústria mais do que
elementos narrativos, fílmicos e estilísticos da cena underground, mas, sim, o
seu próprio olhar sensível e afiado sobre a sociedade, o qual acolhe o realístico
e o fantástico. Leonardo DiCaprio, por sua vez, é o grande ator hollywoodiano da
atualidade, capaz de, como os bons da arte de atuar, encarnar os papeis desde
galã até os mais agudos sem parecer ele mesmo de uma atuação para a outra.
Pois “O Lobo de Wall Street” (2013), quinto trabalho em conjunto da
dupla, vai além da estreia da parceria no inconsistente “Gangues de Nova York”
(2002), em que é Daniel Day-Lewis quem cumpre o “fator Robert de Niro” e não DiCaprio;
de “O Aviador” (2004), épico mas de difícil deglutição, já com DiCaprio à
frente; e do brilhante e premiado “Os Infiltrados” (2006), em que o panteão de
astros (Nicholson, Damon, Wahlberg, Sheen) faz com que os holofotes se dividam.
Neste novo longa, porém, a química do trabalho entre os dois está amadurecida e
DiCaprio conduz o filme com total controle num papel de difícil equilíbrio
dramático, pois construído sobre o perfil psicológico preferido de Scorsese
muitas vezes assumido pelo talhado e exemplar de Niro: personalidade obsessiva,
ambiciosa, extravagante e depressiva mas com grande poder de atração.
O filme conta a história do “vida loka” Jordan Belfort (DiCaprio), um
jovem sem orientação dos pais que vai trabalhar como corretor em Wall Street,
onde conhece Mark Hanna (Matthew McConaughey, magnífico nos menos de 10 minutos
em que aparece), de quem recebe ensinamentos de como lidar com dinheiro, o que
acaba levando para toda a vida. A Segunda-Feira Negra, no entanto, faz com que
as bolsas caiam repentinamente e Belfort perca o emprego. Vai trabalhar, assim,
numa corretora de fundo de quintal que lida com papéis baratos. Lá tem a ideia
de montar uma empresa focada neste tipo de negócio, cujas vendas são de valores
mais baixos mas, em compensação, o retorno para o corretor é bem mais
vantajoso. Cria, então, ao lado de Donnie Azoff (companheiro de todas as horas
e carreiras de pó) e de meia dúzia de amigos na mesma vibe de enriquecer, a corretora Stratton Oakmont, uma máquina de produzir
dinheiro que faz com que todos passem a levar uma vida sem limites dedicada ao
prazer, ao sexo e às drogas.
Neste sentido, Belfort se parece com Henry Hill (Ray Liotta) de “Os Bons
Companheiros” ou Jimmy
Doyle (DeNiro) de “New York, New York”, fator este que pode ser a única
crítica possível ao filme. Ao rodar uma nova “cinebiografia sem cortes” depois
de uma fantasia infantil, "A Invenção de Hugo Cabret" (2011), e de um terror
psicológico, "Ilha do Medo" (2010) – seus dois trabalhos anteriores –, Scorsese
estaria repetindo o formato de “Os Bons...”, “Aviador” ou “Touro Indomável”.
Sim, de fato. Mas qual o problema? Além de divertir com suas tiradas e cenas de
humor grotesco (a cena em que DiCaprio cheira cocaína para anular o efeito de
outra droga e reassumir o controle do próprio corpo para salvar o amigo,
fazendo um paralelo com o desenho do Popeye comendo espinafre na televisão, é
digna dessa classificação) e da habitual montagem hábil da mestra Thelma Schoonmaker,
“O Lobo...” é exemplar em atuações, não só do protagonista (Jonah Hill, como
Donnie, merece inquestionavelmente um Oscar de Coadjuvante, o qual concorre), mas
em condução narrativa, ainda mais tratando-se de uma produção de 3 horas, que o
espectador não vê passar tamanha a capacidade de prender-lhe a atenção.
A belíssima Margot Robbie
como Naomi, a esposa de Belfort
Igualmente, o filme presenteia o mundo com a beleza e o talento da australiana Margot Robbie, no
seu primeiro papel de relevância em Hollywood, e com a sempre magnífica trilha sonora
(que contém coisas como Bo Diddley, Ahmad Jamal Trio, Alcatraz, Foo Fighters, Devo e Cypress Hill, sabidamente
resultado do gosto pessoal de Scorsese). Mas, como ressaltado anteriormente, é
a força cênica de DiCaprio que sustenta “O Lobo...”, de quem o diretor consegue
extrair a representação certa daquilo que pretende evidenciar: o sistema
esquizofrênico e superficial da sociedade moderna. Ou melhor, da construção dos
porquês desse sistema, uma vez que a biografia do contraventor Belfort
transcorre da metade dos anos 80 até os dias atuais, acompanhando fatos
históricos como a Black Monday, o avanço tecnológico, a entrada de novas drogas
no mercado, etc. O fato de o protagonista se tornar um respeitado e rico
consultor empresarial (o que, de fato, ocorre, uma vez que a história,
roteirizada por Terence Winter, é baseada na autobiografia do próprio Belfort),
em contraposição à enlouquecida investida no submundo, elemento psicológico
reforçado ao espectador durante todos os minutos antecessores, deixa claro tal
crítica. Quem são essas pessoas públicas a quem estamos endeusando? O que está
por trás dessa imagem que a mídia engendra e tenta vender ao maior número de
pessoas possível? A que caminhos levam a supervalorização do dinheiro e do
prazer físico-carnal? Perguntas que ganham novos pontos de interrogação na
abordagem realística e desmistificada impressa por Scorsese, coisa que ele
alcança novamente e “O Lobo...” assim como faz com maestria desde quando, de
fato, acertou a mão, em “Caminhos Perigosos”, de 1973.
É
satisfatório saber que “O Lobo...” já é a maior bilheteria de Martin Scorsese
em sua carreira, tanto pela torcida pelo filme e a ele, cineasta que sempre
apostou no questionamento da sociedade contemporânea e na ruptura com os
modelos pré-estabelecidos da linguagem cinematográfica (e sem deixar de
reverenciar quem gosta), quanto pelo o que isso representa para o cinema em
dias atuais: a proposição de uma visão mais integrada das coisas, sem excessos
tanto de ideologias yankees imundas
nem de rompimento total com a arte. Nem tanto para blockbuster nem para Dogma 95. Cinema, na sua essência, é saber
contar uma história em audiovisual de uma forma interessante e cativante. Pois
o novo Scorsese/DiCaprio cumpre isso muito bem. Se vai ganhar algum Oscar,
mesmo com o ator principal sendo sério candidato, não se sabe, até porque a
Academia já cometeu muitas barbaridades em nome de ideologias políticas
duvidosas, e uma implicância com alguma ferida que o filme porventura toque não
seria de se estranhar que não leve mesmo alguma estatueta. Mas a torcida é
válida, pois predicados não faltam ao longa.
Um dos maiores realizadores vivos do cinema mundial chega aos 75 anos. Não seria necessariamente motivo de comemoração, afinal, não são poucos cineastas que, longevos, atingiram idades semelhantes nos últimos tempos. Porém, está se falando de Martin Scorsese, o mestre do cinema norte-americano, ao mesmo tempo um de seus principais renovadores e um autor de estilo muito próprio e cativante, que une a cultura pop, visíveis influências escolas de grandes diretores do cinema (Kazan, Kurosawa, Kubrick, Ford, Leone) e apuro técnico muitas vezes inigualável. Pra comemorar os 75 anos de Scorsese, completos no último dia 17, nosso blogger Paulo Moreira escolheu seus 10 filmes preferidos do mestre, cada um com com pequenos comentários:
The fucking best!! Perfeição a cada fotograma. TUDO é bom até a mini-participação do Michael Imperoli dos Sopranos como o cara que servia os drinks dos mafiosos e é morto pelo Joe Pesci na mesa de jogo. Trilha-sonora de luxo!
Scorsese com o elenco de 'Goodfellas'
Como ator em 'Taxi Driver'
2 – TAXI DRIVER(1976)
A paranoia americana e novaiorquina em seu apogeu. Jodie Foster nunca foi melhor do que aqui, assim como De Niro.
3 – CAMINHOS PERIGOSOS("Mean Streets", 1973) Onde o cinema do Scorsese começa a se mostrar. Outra trilha maravilhosa.
4 – DEPOIS DE HORAS ("After Hours", 1985) Kafka em NYC. Precisa dizer mais?? E ainda tem uma cena que tira sarro da minha ídola suprema, Joni Mitchell. Griffin Dunne no maior papel de sua diminuta carreira.
5 – TOURO INDOMÁVEL ("Raging Bull, 1980) Fotografia em P&B pra não chocar com tanto sangue - mal sabia ele que os Sexta-Feiras 13 iriam dar um banho de sangue sem pudor no público. De Niro engorda, emagrece, engorda, emagrece e dá um show. Cathy Moriarty fazendo seu próprio papel de loura platinada entediada. Gostossíssima!!
Com De Niro no ringue-cenário
Outra ponta como ator
6 - O REI DA COMÉDIA ("The King Comedy", 1983) Rupert Pupkin é o fã maluco do Jerry Lewis. De Niro sensacional e a Sandra Bernhardt incrível. Porque esta mulher não deu certo?
7 – CASSINO ("Casino", 1995) "Goodfellas" parte DOIS com a atuação estelar da Sharon Stone fazendo a mais louca das mulheres loucas. De Niro & Pesci se amando e se odiando.
9 – OS INFILTRADOS("The Departed", 2006) Duelo de titãs: DiCaprio & Nicholson mais Martin Sheen, Matt Damon e Mark Wahlberg de troco.
10 – CABO DO MEDO ("Cape Fear", 1991) Lembro quando saiu este filme o Pedro Ernesto - ele mesmo, o "Demóis" - dizia que tinha de trocar o nome pra ME CAGO DE MEDO!! HAHAHAHAH O casting é outra obra: o loucaço Nick Nolte fazendo o papel de bundão; a grande Jessica Lange da esposa mala, a chatinha Juliette Lewis da adolescente putinha e o De Niro, aqui sim como o Diabo, muito melhor do que no chatérrimo "Coração Satânico".
Conversando com De Niro nos bastidores de 'Cabo do Medo'
Deve ter sido delicioso aos que, pelo menos por algum período, puderam acompanhar
just-in-time a filmografia de algum
grande diretor do passado. No caso de Alfred Hitchcock, por exemplo: o mestre
do suspense superava-se a cada produção que lançava, reelaborando às vezes a
mesma ideia ao longo do tempo, desde a fase inglesa (anos 20 e 30), passando
pelos primeiros anos nos Estados Unidos (década de 40) até chegar às
obras-primas definitivas (50 e 60). É perceptível que a confusão no teatro
lotado de “Os 39 Degraus” (1935) se repetira em “Cortina Rasgada” (1962), ou o
mesmo tenha ocorrido com a cena da escada de “Suspeita” (1941) e, depois, na
clássica de “Psicose” (1960), a que Norman Bates mata o detetive. Dois exemplos
de um realizador que soube como poucos reciclar suas próprias ideias e
progredir constantemente.
Dadas as devidas dimensões, os espectadores e cinéfilos de hoje podem gozar
dessa sensação quanto ao cinema de Alejandro González Iñárritu. Ele, que começara em alto nível com a trilogia “Amores
Perros” (2000), “21 Gramas” (2003) e “Babel” (2006), resvalou um pouco no
hiperbólico “Biutiful” (2010) mas logo retomou-se com o labiríntico "Birdman" (2014), Oscar de melhor filme do ano passado. Agora, o cineasta mexicano,
aproveitando com parcimônia elementos de todas as suas realizações anteriores,
avança em estilo e estética e lança o filme que certamente é sua obra-prima até
então: “O Regresso”. Dos favoritos
para levar o mesmo prêmio que “Birdman”, é a produção de mais indicações este
ano, 11 no total, tendo ainda grandes chances à estatueta em Melhor Ator, com Leonardo DiCaprio, e em Direção, com o próprio Iñárritu.
O filme, baseado numa história verídica (sobre o romance de Michael
Punke) situa-se na primeira metade do século XIX e conta a história de Hugh
Glass (DiCaprio), um forasteiro que parte com seu filho para o oeste americano
disposto a ganhar dinheiro caçando. Atacado por um urso na floresta, fica
seriamente ferido e é abandonado à própria sorte por um dos parceiros, John
Fitzgerald (Tom Hardy, digno de Oscar também), o qual ainda mata seu filho.
Entretanto, mesmo com toda adversidade, Glass consegue sobreviver e inicia uma
árdua jornada em busca de vingança. Dado a personagens fortes, o talentoso
DiCaprio, provavelmente o melhor ator de sua geração, se esbalda no papel. É
impressionante vê-lo na pele de Glass nas cenas de solidão desafiando a
natureza opressiva e ainda doente, com dor, fome e dilacerado por dentro pela
brutal perda do filho.
Com a ajuda de um elenco afinado e de uma fotografia acachapante (de Emmanuel
Lubezki, impecável tanto nos grandes planos quanto nos fechados), Iñárritu
compõe um filme extremamente intenso, porém rigoroso. Nada está fora do lugar,
nem mesmo a intensidade. Do roteiro (Iñarritu e Mark L. Smith) ao figurino, da
cenografia à edição de som, da trilha sonora – do mestre Ruiychi Sakamoto – à montagem (Stephen Mirrione). Tudo é muito exato, porém, sem recair no artificial, comum
ao tecnicista cinema norte-americano. Afinal, está se falando de um esteta do
cinema da atualidade. Estão preservados vários elementos estilísticos que já se
tornaram marcas de Iñárritu: sua câmara andante, contemplativa e participativa,
o estreitamento entre civilização e barbárie, o limite entre vida e morte, o
contato com o etéreo e, mais do que tudo, o animalesco instinto de
sobrevivência do bicho homem.
Com esse suco, o diretor cria um western
estilizado em que a carga emocional é permanente, mas muito bem conduzida.
Diferentemente de outros filmes seus, em “O Regresso” Iñárritu, tão louvado
pela linguagem inovadora, vale-se sem embaraço de uma narrativa clássica. E não
poderia ter sido a melhor escolha, pois o enredo se presta a isso. Neste caso,
a estrutura tradicional do cinema preenche o enredo, prescindindo da
dificultação intrínseca à linguagem moderna. Com uma trama em que os
personagens são apresentados de início e partindo de um problema, gera-se uma
“crise” na história que faz com que os caminhos se diluam e se dificultem. Esse
problema de resolução complicada é vencido pouco a pouco pelo personagem
principal, gerando tensão à história, até que este chegue a seu objetivo. Não
muito diferente de milhares de filmes nesta linha, o clímax é uma vingança. A
construção dos personagens também respeita isso: há o herói com mais qualidades
que defeitos e que, embora bruto, é movido por sentimentos genuínos. Em
contrapartida, o vilão é tomado de inveja e maldade, enquanto há aqueles que,
por não penderem nem a um nem a outro, cumprem a função de dar o contrapeso. Como
na vida. Entretanto, até nisso é dado um teor diferenciado. Seguindo a
abordagem realista que permeia toda a história, os índios não são nem os perversos
dos bang-bangs enlatados nem idiotas
indefesos. São, sim, mostrados como a História os deve ver: um bravo povo
dizimado pela gananciosa civilização do homem branco.
É interessante notar a maturidade adquirida por Iñárritu no transcorrer
de sua filmografia. Este começou com três filmes de tramas corais, quase novelas,
bastante alicerçadas no roteiro do conterrâneo Guillermo Arriaga. Em
“Biutiful”, quando tenta emancipar-se do parceiro de escrita, escorrega
principalmente neste quesito, exagerando na dose de dramaticidade. Não repete o
erro e, ainda por cima, realiza o inesperado e ousado “Birdman”, em que
apresenta uma narrativa totalmente contemporânea e igualmente distinta da
utilizada em seus primeiros filmes. Assim, em “O Regresso” Iñárritu pinça com
inteligência feições de todas as suas obras anteriores, porém, sem deixar com
que este perca personalidade. De “Biutiful”, está o aspecto espiritual do
protagonista, que mantém contato constante com a esposa morta e, depois, com o
filho. Até o enquadramento e o conceito fotográfico da tomada da copa de
pinheiros altos com fumaça e cinzar no ar sob a neve é parecida. De “Birdman”,
mesmo sendo o que mais se difere de “O Regresso” entre suas obras, é visível
que a câmera na mão, ligeira mas firme e de ritmo humano, é novamente um
personagem a mais na trama. Da trilogia
inicial, também: no segundo quadrante do filme criam-se quatro histórias
paralelas: Glass tentando voltar; os companheiros já chegados ao forte;
Fitzgerald e um comparsa a caminho; e o grupo de franceses trapaceando os
índios. De “Amores Perros”, em especial, a equiparação bicho x homem é ainda mais clara. Um pouco de cada um dos cinco
anteriores, mas principalmente do próprio “O Regresso”.
A impactante e real cena do ataque do urso.
Outro fator-base da história, também largamente usado no cinema
clássico – mas de fácil ocorrência de erros –, são os elementos da natureza simbolizando
os narrativos. A atmosfera selvagem não é apenas mostrada permanentemente
através da fotografia, inóspita e desafiadora, mas num conceito amplo em que o
homem é apenas mais um componente dentro daquele universo, assim como os animais
e as intensas intempéries. Os sentidos estão todos despertos. Do tato, a
umidade, o frio, o calor, a dor. Da audição, o zumbido do vento, o ofego do
respirar, o estrondo das quedas d’água, os ruídos da mata. Tudo se mistura e se
integra com muita propriedade à edição de som e à trilha sonora, igualmente
inserida com lucidez e sem excessos. Tudo é vivo, o que faz com que tudo seja também
morte. Dessa forma, Iñárritu se utiliza do ambiente natural e dos sentidos não
como adereço, mas numa constante construção dos personagens e da narrativa. Glass,
por exemplo, durante o seu regresso e ainda tentando se recuperar da surra do
urso, põe sobre os ombros uma pele justamente deste grande mamífero, como se
assumisse o papel do bicho. Antes mesmo, quando, muito debilitado, assiste a Fitzgerald
matar seu filho sem poder fazer nada e espuma saliva pela boca, a mesma que o
próprio urso deixa escorrer sobre seu rosto quando o ataca, pois o fazia pelo
mesmo motivo que movia Glass: proteger sua cria. Homem e animal: nenhuma
diferença.
DiCaprio, atuação para Oscar novamente.
Essa cena, aliás, é altamente impactante e merece destaque. Feita com
um urso de verdade, o mais impressionante é que o ator também é de verdade.
Sim, não é um dublê: é o próprio DiCaprio, inteiro dentro do personagem. Mesmo
contracenando com um animal adestrado, ele saiu bem machucado pelo que se tem
notícia. Valeu o esforço. Certamente é das cenas mais célebres dos últimos 20
anos, junto com a chuva de sapos de “Magnólia” ou o acidente no ringue com a
lutadora de “Menina de Ouro”. Daquelas que entra para a seleta lista de cenas
inesquecíveis do cinema mundial. Mas não apenas essa: o filme é uma sucessão de
grandes momentos e sequências, várias daqueles de tirar o espectador da
poltrona, como o ataque indígena do início, a fuga de Glass sobre o cavalo e,
obviamente, o duelo final, cujo requinte da montagem remete ao tempo fílmico de Sergio Leone e John Ford. Chega a ter parecença com o tradicional ritmo de Quentin Tarantino, que o próprio muito se valeu no seu último longa, "Os Oito Odiados", também um western eque guarda-lhe também semelhanças
estéticas. Diferentemente do filme de Tarantino, cujo proveito do máximo das
sequências e dos diálogos o tornam de fato por vezes arrastado, em “O Regresso”,
por conta da conjunção do tom realístico e da estrutura clássica da narrativa,
os tempos de tensão e distensão estão perfeitos. Simbolizam, em última
instância, a luta eterna entre o calor e o frio, entre o fogo e a água, entre o
som e o silêncio, entre o bem e o mal. Entre o espaço e o tempo.
É o próprio tempo que, já fora da tela, poderá aligeirar-se no que
tange a premiar Iñárritu dando-lhe a primazia jamais alcançada por ícones como
William Wyler, Elia Kazan e Billy Wilder: o de levar o Oscar de Diretor em dois
anos seguidos – feito obtido por apenas dois craques desde 1929: John Ford e Joseph
L. Mankiewicz. Ou, contrariamente, o mesmo tempo venha a reconhecer com atraso
DiCaprio, merecedor da estatueta há bastante tempo, seja em filmes que
concorreu (“O Aviador”, “Diamante de Sangue”, "O Lobo de Wall Street") ou não
(“Django Livre”, “J. Edgar”). Além destes, “O Regresso” desponta como favorito
para levar ainda Filme, Ator Coadjuvante, Fotografia e Edição de Som. O
reconhecimento no prêmio Bafta anteviu isso. Afinal, não se trata apenas da
melhor produção de 2016: é, sim, um dos grandes dos últimos 10 ou 15 anos. Pode-se
colocá-lo tranquilamente ao lado de títulos como “A Vida dos Outros”, "Guerra aoTerror" e “Ida”. Daqueles que vem para entrar para a lista dos essenciais do
cinema, porque o tempo (novamente ele) é quem o dignificará para a eternidade.
Ganhe o Oscar ou não.
Transcorrido um quarto do século 21, já é possível, enfim,
vislumbrar o que de melhor aconteceu no cinema neste período. E ao que se pode
extrair de amostra desses 25 anos, o século da informação ou da pós-verdade
ainda tem muito o que apresentar de bom. Afinal, foram 25 anos que o cinema viu
o mundo se transformar. O 11 de setembro de 2001 foi o estopim para uma série
de reconfigurações e a certeza de que não apenas o terrorismo se tornaria uma
ameaça constante às nações como trazia a mensagem de que ninguém mais estaria
seguro. Nem a razão mais está a salvo.
Reconfigurações, inclusive, econômicas. A China, então a
“ameaça comunista”, enfim pôs em prática seu modelo de Capitalismo Socialista e
se tornou a segunda potência do mundo. Além do enfraquecimento dos Estados
Unidos (que Trump quer agora reverter a qualquer custo), a Rússia também adere
de vez ao capitalismo, fortalecendo-se, porém com um ditador moderno à frente. Afora
isso, guerras na Europa e no Oriente Médio, aquecimento global, polarização
ideológica, avanço da extrema-direita, ecos do fascismo, crescimento dos
movimentos migratórios, pandemia... Ufa! O que mais deve vir por aí? Angustia até
de pensar.
Refletindo de forma direta ou não essas transformações, o
cinema segue firme com produções que pululam de diversos lugares do
mundo, seja nas Américas, África, Ásia ou na velha Europa. Mas com mudanças de
cenário. Alguns polos se fortaleceram, como a América Latina de Argentina e
Brasil. No Oriente Médio, o Irã, cada vez mais reprimido, continua mesmo assim
a resistir e fazer um cinema de alta qualidade expressiva. Mas também Líbano, Palestina,
Iraque, Israel, Arábia Saudita e outros.
A África é outro continente que despontou nestas duas décadas e meia. Embora não superem os aqui listados, é inegável que os países africanos, cujas descolonizações são ainda muito recentes, chegaram ao século 21 produzindo bastante, bem e em vários países, como Senegal, África do Sul, Mauritânia, Quênia, Uganda, Nigéria e outros. Títulos como "Black Tea" (2024), "Heremakono – Esperando a Felicidade" (2020), "Timbuktu" (2014) e "Atlantique" (2019), se não pareiam, deixam viva a esperança de ser ver na tela um cinema africano consolidado internacionalmente.
Em compensação, o cinema
soviético, tão abundante e diverso em todo o século 20, fragmentou-se assim
como o seu antigo território. E mesmo os Estados Unidos viram grandes alterações
de rota. Os estúdios enfrentem novos desafios, como o streaming, a serialização
e a “marvelização”. A dianteira da indústria cinematográfica estadunidense, até
então sem precisar olhar para o retrovisor, passa a preocupar-se com o desgaste
do imperialismo. Megaproduções como “Megalópolis” e “O Brutalista”,
definitivamente, não representam mais o que representavam antes.
Além da afirmação de alguns realizadores, como Jordan Peele,
Bong Joon-ho e o brasileiro Kléber Mendonça Filho, este começo de era confirma
a excelência daqueles que já vinham contribuindo com suas obras para a
construção dessa arte ao longo das últimas décadas – casos de Woody Allen, Clint Eastwood e Pedro Almodóvar. Assim, listamos 25 filmes representativos
desses 25 primeiros anos, de 2001 até o ano atual. Não necessariamente um por
ano, mas numericamente um símbolo que antecede os próximos 75 ainda a serem
lançados e descobertos.
Alguns perguntarão, com justiça: “e as mulheres?” Sim, elas
cada vez mais se tornam protagonistas. Justine Triet, Greta Gerwig, Sofia Coppola, Chloé Zhao, Samira Makhmalbaf, bem como as veteranas Jane Campion, Kathryn Bigelow e as que se foram recentemente Chantal Akerman e Claire Denis. Aqui,
cinco delas figuram, mas tranquilamente poderia haver mais. Imagine-se quantas
realizadoras ainda vêm por aí neste louco planeta em constante ebulição.
A relativa facilidade de se montar essa lista traz consigo
certa irresponsabilidade e aquela velha questão: a incompletude. É possível
abarcar tanta produção em apenas pouco mais de duas dezenas de títulos? Não
deveria haver (e possivelmente caiba) muito mais pesquisa e aprofundamento? Estes
são DE FATO os mais representativos, simbólicos ou melhores em qualidade
fílmica? Perguntas sem respostas. Talvez, precise-se de mais
um quarto de século ou mais para entender o que condiz ou não. Porém, num
primeiro momento, estes foram os filmes que saltaram à memória, e isso,
independente de um revisionismo ou limitantes, quer dizer, sim, alguma coisa. Se
poderiam ser outros? Poderiam, mas tais obras certamente brigariam para estarem
nesse rol. Quem sabe, os celebrados Gaspar Noé, Yorgos Lanthimos, Mati Diop ou Darren Aronofsky não pintem com aquele filmaço inquestionável ainda? Há tempo e
competência para isso.
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01.“Parasita”, Bong Joon-ho (2019)
Definitivamente, o melhor filme dos últimos anos – e do século. O thriller do talentoso Bong Joon-ho arrebatou em 2019, por puro mérito, não apenas a Palma de Ouro em Cannes como, mais ainda, os Oscar de Filme e de Filme Estrangeiro! Um feito jamais igualado. “Parasita”, afinal, tem tudo o que um grande filme moderno pode: drama social, crítica ao capitalismo, humor ácido, suspense e, por vezes, toques de terror gore. Tudo numa direção absolutamente criativa, fotografia precisa, roteiro cheio de reviravoltas e atuações brilhantes. Tem mais da metade de século 21 para acontecer, mas não vai ser fácil equiparar com esta obra-prima sul-coreana que redirecionou o olhar do mundo no cinema.
02.“A Cidade dos Sonhos”, David Lynch (2001)
Lynch nos deixou no último ano, mas legou uma obra tão marcante quanto explorável. Afinal, é dele o cinema mais misterioso já realizado em mais de 100 anos de arte cinematográfica. “A Cidade dos Sonhos” é, além de seu melhor neste século, possivelmente sua melhor realização, e olha que estamos falando de filmes como “Veludo Azul”, “Eraserhead” e “Coração Selvagem” neste páreo. Mas definitivamente a onírica e assustadora obra sobre a atriz que se muda para Los Angeles e tem sua memória e sonhos entrelaçados com a matéria da própria cidade é insuperável. Tanto que ocupa a 8ª posição no ranking de 250 filmes "The Greatest Films of All Time" da tradicional revista Sight & Sound e é considerado o melhor filme entre os 100 da BBC neste século, o qual mal começava e Lynch já dava as cartas.
03.“Corra!”, Jordan Peele (2017)
Quando Jordan Peele estreou no cinema com “Corra!” já se
sabia que ali nascia um ícone do cinema moderno. Negro, talentoso e com muita
coisa a dizer, Peele surpreendeu o mundo do cinema – e o gênero de terror – com
um filme que imediatamente foi elevado à categoria de obra-prima. Também
pudera: a história do jovem fotógrafo Chris, que descobre uma sinistra rede de
tráfico de negros para perturbadores finalidades rendeu ao diretor mais de 150
prêmios, incluindo o Oscar de Melhor Roteiro Original. “Corra!” redefine o
terror no cinema. Em tempos de George Floyd, o terror não vem de fantasmas, zumbis,
monstros ou extraterrestres. Vem de gente branca racista e supremacista.
04.“Retrato de uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019)
Quanta delicadeza e força expressiva para contar uma história de algo que passou a ser um dos temas mais recorrentes dos tempos atuais, que é o LGBTQIAPN+, quando nem se pensava em classificar assim esses grupos. Céline Sciamma se esmera em contar a história de Marianne, uma jovem pintora francesa, no século 18, com a tarefa de pintar um retrato de Héloïse, com quem se vê cada vez mais próxima e atraída. As mesmas travas, os mesmos preconceitos, as mesmas opressões dos tempos atuais. Mas, otimistamente falando, a mesma possível liberdade de amar a quem se quiser mesmo que isso, necessariamente, gere consequências – ontem e hoje. Entre os diversos prêmios que "Retrato de Uma Jovem em Chamas" recebeu, o merecidíssimo César de Melhor Fotografia.
05.“Menina de Ouro”, Clint Eastwood (2004)
O velho Eastwood, hein? À época, com seus 74 (hoje, quase centenário), depois de produzir sempre bem e bastante e de já ter posto seu nome na história do cinema norte-americano com filmes como “Bird” e o oscarizado “Os Imperdoáveis”, vem com essa obra-prima ao mesmo tempo delicada e pesada, triste e tocante. Tanto é que arrebatou a Academia em 2004, levando 4 dos 7 Oscar que concorreu: Melhor Filme, Diretor, Atriz e Ator Coadjuvante. A habilidade do experiente Eastwood em lidar com a luz e o mergulho nas sombras, seja no sentido estético quanto figurado, é de abismar. Impossível sair de uma sessão de “Menina de Ouro” sendo a mesma pessoa que entrou.
Clintão com a oscarizada Hillary Swank em um dos melhores filmes do século
06.“O Pianista”, Roman Polanski (2002)
Daqueles filmes talhados a obra-prima. O tarimbado Polanski, cujo nome está gravado na história do cinema por filmes como “O Bebê de Rosemary”, “Chinatown” e “Cul-de-Sac”, acerta em tudo em “O Pianista”, uma obra pungente e necessária, inclusive para o próprio Polanski, judeu que perdera os pais no Holocausto. O filme venceu Palma de Ouro, Bafta e Cesar, mas o Academia do Oscar dos Estados Unidos, país onde Polanski é considerado fugitivo por um crime de estupro nos anos 70, não cedeu. Deu ao filme as estatuetas de Melhor Ator, Roteiro Adaptado e de Diretor, o qual o diretor recebeu e agradeceu via vídeo bem longe, na Europa. A de Filme, no entanto, não. A aclamação veio naturalmente.
07.“O Segredo dos Seus Olhos”, Juan José Campanella (2010)
A Argentina já vinha preparando o terreno para que o mundo a reconhecesse como uma das principais produtoras do cinema da atualidade desde os anos 80. O Oscar de Filme Estrangeiro para “A História Oficial”, sobre a ditadura no país, já anunciava isso. Porém, o amadurecimento do cinema local e a formação de cineastas e profissionais do audiovisual colocaram o cinema a América Latina em real evidência no século 21 pela primeira vez. Ah! tem mais um fator a favor de "O Segredo dos seus Olhos", que se chama Ricardo Darín. O grande ator do novo cinema argentino é a cara dessa geração não poderia estar de fora daquele que é, mesmo com outros grandes concorrentes, o melhor filme da Argentina do século até aqui. Tanto que o Oscar de Filme Estrangeiro veio de novo, inevitavelmente. Naquele 2009, não teve pra ninguém com esse thriller que junta suspense, policial, romance, comédia e o velho dedo na ferida dos argentinos com a ditadura.
08.“A Pele que Habito”, Pedro Almodóvar (2011)
Almodóvar é aquele diretor que é tão talentoso, que pode se
dar ao luxo de fazer filmes menos expressivos dentro daquele seu universo
kitsch e absurdo para, do nada, criar uma obra-prima surpreendente. “A Pele que Habito”, além de contar com velhos parceiros (Antonio Banderas, Marisa Paredes,
Jean-Paul Gaultier, Alberto Iglesias) é, sem dúvida, uma revitalização do
cinema do próprio cineasta espanhol, o filme que o reinventou (como se não
bastasse já haver se reinventado outras várias vezes anterior e
posteriormente). Espécie de “O Médico e o Monstro” com ares da bizarrice que
marca os roteiros de Almodóvar: sexo, culpa, vingança, problemas psicológicos.
Uma ressignificação de obras anteriores como “Matador”, “Ata-me” e “Carne
Trêmula”.
09.“Onde os Fracos não têm Vez”, Joel e Ethan Coen (2007)
Se nos anos 90, os Coen já haviam realizado sua obra-prima, “Fargo”, nos 2000 o seu grande filme é “Onde os Fracos não têm Vez”. Quase um aperfeiçoamento de “Fargo” em alguns aspectos, seja na trama errática, na câmera observante, na presença de personagens amorais ou na estética inospitaleira, o filme troca o branco da neve do primeiro pela aridez dos tons terrosos do deserto. E também volta a explorar a fragilidade do humanismo diante da brutalidade da sociedade. E ainda tem aquele que é um dos mais assustadores e marcantes psicopatas da história do cinema, o assassino de aluguel Anton Chigurh, vivido brilhantemente por Javier Barden. Arrebatou 4 Oscar: Melhor Filme, Diretor, Roteiro Adaptado e Ator Coadjuvante, além de ganhar três BAFTA, dois Globos de Ouro, American Film Institute e o National Board of Review of Motion Pictures.
10.“Cidade de Deus”, Fernando Meirelles e Katia Lund (2007)
Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe”, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” e, agora, "Ainda Estou Aqui", se equiparem em importância a “Cidade de Deus” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria sem antes ter existido "Cidade..."? Fernando Meirelles, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso por conta do extraordinário filme, autoral, pop e inovador em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Internacional, mas como Filme e Diretor, outra porta que abriu para “Ainda Estou Aqui”.
A última frase dita no filme, na voz do célebre personagem Aldo, o Apache (Brad Pitt) é: "acho que eu fiz minha obra-prima". Está certo que Aldo se referia ao ferimento a faca que marcou na testa do igualmente histórico personagem Cel. Hans Landa (Christopher Waltz), mas é inegável que a frase é propositalmente ali posta por Quentin Tarantino por este reconhecer, sem falsa modéstia, que havia chegado, sim, à sua melhor realização. Ao menos, a mais madura e a mais bem produzida entre todos os seus nove longas. Se “Pulp Fiction” marcou uma nova era do cinema de autor nos anos 90, nos 2000 não tem igual a "Bastardos Inglórios". "Éum bingo!"... é assim que se diz na América: "um bingo"?
12.“A Fita Branca”, Michael Haneke (2009)
É difícil escolher um Haneke, esse cineasta peculiar que desde os anos 80 produz um cinema marcado pelo olhar crítico dos padrões da sociedade ocidental e o consequente declínio da moral hegeliana. Porém, “A Fita Branca”, além de seu congelante p&b e as assustadoramente reais atuações dos atores mirins, tem a incisividade de identificar o "ovo da serpente", ou seja: os impulsos que levaram às Grandes Guerras, tão definidoras de caminhos do mundo no século 20, principalmente da Europa, Cannes, que não é boba, identificou a essencialidade do filme para a cinematografia moderna dando-lhe a inconteste Palma de Ouro de 2009.
13.“Roma”, Alfonso Cuarón (2019)
Há quem o considere "Roma" o filme mais injustiçado do Oscar dos últimos tempos, visto que merecedor do de Melhor Filme Estrangeiro, que venceu, como também de Melhor Filme, dado naquele 2019 ao contestado "Green Book". A triste história da empregada Cleo na Cidade do México nos anos 70 é contada com um misto de poesia, realismo e fatalismo pelo diretor Alfonso Cuarón, que também roteiriza, produz, edita, fotografa e conduz a própria câmera num p&b capaz de reinventar memórias. E quão potente é a sutil alusão à antiga cidade italiana, berço da civilização moderna. Seria mesmo uma sociedade "civilizada"? Além do Oscar, levou Leão de Ouro em Veneza, Globo de Ouro, Bafta e Chritcs Choice.
14.“Bacurau”, Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)
O pernambucano Kléber Mendonça Filho realiza, sem sombra de dúvida, o cinema mais completo do Brasil nos últimos anos. Sua filmografia de longas é só acerto. Primeiro, “O Som ao Redor”. Depois, “Aquarius”, passando por este e o documentário “Retratos Fantasmas”. “Bacurau”, no entanto, é daqueles filmes sui generis, um faroeste sertanejo sobre limpeza cultural, resistência ao imperialismo e o império da violência. Um retrato do Brasil ameaçado pelo fascismo e pela consequente americanização das mentes. Com a edição característica e as marcas da maneira de filmar de Kléber (fusões, zoons, closes x planos abertos), tem na trilha e nas atuações naturais outras de suas forças. Por imperícia da Academia Brasileira de Cinema, não foi o escolhido para concorrer pelo Brasil ao Oscar de Filme Estrangeiro, feito que somente agora “Ainda Estou Aqui” atingiu. Se tivesse ido, tinha boas chances. O próprio Bong Joon-ho, vencedor dessa categoria com “Parasita”, disse que ‘Bacurau” “tem uma energia única, traz uma força enigmática e primitiva.” É.
15.“A Vida dos Outros”, Florian Henckel von Donnersmarck (2006)
Retratos da Alemanha Oriental ainda hoje não são muito comuns no cinema. Talvez por vergonha do que acontecia de ruim do lado vermelho do Muro, talvez porque a vida fosse, de fato, muito monótona que não inspirasse filmes sobre aquela realidade. Este brilhante filme de Florian Henckel von Donnersmarck é, de certa forma, um pouco dessas duas coisas: uma mostra de que não era uma maravilha a vida sob o regime socialista alemão e que, sim, os dias não tinham muito sabor. Ao vigiar 24 horas a vida do escritor Georg Dreyman e de sua namorada a mando do governo, o militar Gerd Wiesler começa aos poucos a se dar conta da existência do amor, do companheirismo e da dor existencial de viver num país coercitivo e punidor que ele mesmo ajudava a manter. "Abaixo às ditaduras", sejam elas do lado que for. Oscar, César, British Academy e Donatello de Melhor Filme Estrangeiro, entre outros, "A Vida dos Outros" foi apontado pela revista National Review como o "O Melhor Filme dos Últimos 25 anos". Não podemos estar tão errados em elencá-lo também.
Memorável filme de von Donnersmarck reflexiona aquilo que o séc. 20 não ousou, que é a crítica à ditadura - inclusive, as de esquerda
Iñarritu apareceu para o mundo do cinema no seu México natal, mas em seguida foi absorvido pela indústria dos Estados Unidos. Entre erros e acertos, completou sua trilogia iniciada em “Amores Perros” com “21 Gramas” e “Babel”, derrapou no confuso “Biutiful” e conquistou o Oscar com o ousado “Birdman”. Mas foi na narrativa tradicional de "O Regresso", ao contar a história real de vingança do personagem Hugh Glass, num inóspito Oeste norte-americano do século 19, que o cineasta foi só acerto. Teve como aliados, bem verdade, Leonardo DiCaprio atuando e Ryuichi Sakamoto na trilha. E a cena do ataque do urso?! O que é aquilo?! Só ela, já valia.
17.“Zona de Interesse”, Jonathan Glazer (2024)
Somente a abertura do filme, com quase 1 minuto de tela preta sobre um som tenso, insistente e inconclusivo, já demostra a personalidade deste impactante filme. Difícil, aliás, encontrar alguém que não guarde o impacto que o filme lhe causou ao mostrar com crueza a comparação entre desumanidade e a normalidade da vida de uma abastada família alemã vizinha do campo de concentração de Auschwitz. “Zona de Interesse” não tem, inclusive, muito enredo. E um roteiro de poucos acontecimentos, que se presta a evidenciar sem filtros a perversidade humana. Filme que encerra a linha de títulos pós-Segunda Guerra inaugurado simbolicamente em 1947 com “Alemanha Ano Zero”, de Roberto Rosselini. O Oscar de Melhor Filme Internacional era-lhe certo, como de fato foi.
18.“Match Point”, Woody Allen (2024)
Woody Allen é como Paul McCartney ou Caetano Veloso na música: não precisa provar nada depois do que já realizou. O cineasta dos geniais “Manhattan”, “Hannah e suas Irmãs”, “Crimes e Pecados” e outros já deixou sua contribuição para a história do cinema há muito tempo. Mas ele entrou os anos 2000 produzindo. E bastante. Após um período um tanto oscilante em termos de qualidade, Allen vem com este filme surpreendente, que começa parecendo uma comédia romântica, vira um drama, passa a ser um policial, até tornar-se um suspense eletrizante. Há outros de Allen de até mais sucesso deste período, como “Vicky Cristina Barcelona”, “Para Roma com Amor” e o queridinho “Meia-Noite em Paris”, mas nenhum bate “Match Point”, um filme único em sua extensa filmografia.
19.“Melancolia”, Lars Von Trier (2011)
Lars Von Trier surgiu na Dinamarca dos anos 80 com um cinema autoral, criou e passou pelo Dogma 95 nos anos 90, chegou a Hollywood nos anos 2000 e tornou-se uma lenda viva do cinema mundial. “Melancolia”, seu 22º longa, parece arrecadar todas essas experiências, mas de uma maneira ainda assim particular. Estão nele o cinema de arte dos primeiros filmes, a câmera na mão e a montagem naturalista do Dogma e a convocação de grandes astros (Kirsten Dunst, Kiefer Sutherland, Charlotte Gainsbourg). Mas mais do que isso: "Melancolia" tem uma narrativa absolutamente instigante em uma ficção científica que faz uma metáfora da insustentabilidade dos cansados padrões sociais. O que isso resulta? Em catástrofe. Questionamentos urgentes que os novos tempos de pós-verdade exigem.
20.“O Pântano”, Lucrecia Martel (2001)
O cinema argentino conta com vários outros cineastas talentosos. Porém, nenhum deles possui um estilo tão pessoal como o de Lucrécia Martel. Dona de um cinema de linhagem moderna carregado e perspicaz, ela vale-se da dificultação do olhar e da fragmentação narrativa para expressar sentimentos e angústias da sociedade contemporânea, adentrando nas profundezas de seus personagens. Exímio em expressar esse universo, “O Pântano” fala sobre duas famílias que, em meio a um verão infernal na cidade de La Cienaga, entram em conflito. Texturas, sensorialidades e densidade se homogeinizam para expor tensões interpessoais, que se encaminham fatalmente para o pior. Uma reflexão visceral sobre classe, natureza, sexualidade e política, e uma das mais aclamadas estreias de realização contemporâneas. Prémio para Melhor Primeira Obra no Festival de Cinema de Berlim.
21.“Holy Spider”, Ali Abbasi (2022)
Asghar Farhadi, Jafar Panahi, Mohammad Rasoulof, Nafiseh
Zare e Peivand Eghtesadi são todos realizadores iranianos com grandes obras e que
mantêm o alto nível do cinema deste complicado país islâmico. Outro cineasta,
Ali Abbasi, no entanto, foi quem produziu aquele que pode ser considerado o
mais impressionante filme desta safra do século 21 no Irã. "Holy Spider" acompanha a aterrorizante história real do serial killer mais temido do Irã,
"Spider Killer", que atuou entre os anos de 2000 e 2001, vitimando 16
prostitutas em nome de uma jornada "espiritual" de limpar a cidade da
corrupção e imoralidade. Este thriller policial desvela uma série de padrões
sociais muito arraigados na sociedade islâmica com os quais a jornalista Arezoo
Rahimi precisa se deparar. O anseio pela mudança da condição da mulher vem
novamente à tona como em diversos outros filmes iranianos. Porém, parece que
algo está evoluindo – mesmo que ainda seja mais vontade que realidade.
22.“Encontros e Desencontros”, Sofia Coppola (2003)
Pode-se contar nos dedos os cineastas que, de largada, fizeram seu melhor filme. Nem Renoir, nem Pasolini, nem Ophuls, nem Wilder, nem Kubrick. Nem mesmo Francis Ford Coppola, pai de Sofia que, esta sim, conseguiu tal feito. “Encontros e Desencontros”, o apaixonante e originalíssimo romance passado numa Tóquio tão populosa quanto inóspita, é um marco do cinema feminino neste século. Referências a Ozu, a Tati, a Tarkowsky, a Wenders. Mas, principalmente, a própria Sofia, que formula um cinema com a sua cara: profundo, plástico e autoral. Um dos grandes vencedores do Globo de Ouro daquele ano, ganhou como Melhor Filme em Comédia ou Musical, Ator em Comédia ou Musical (Bill Murray) e Roteiro, categoria na qual foi também premiado no Oscar. Que debut!
23.“Drive my Car”, Ryūsuke Hamaguchi (2021)
Contar bem uma história é a essência do cinema. Agora, contar bem uma história longa e cheia de detalhes e encadeamentos sem perder a fruição é digno de aplauso. É o que o cineasta Ryūsuke Hamaguchi fez ao adaptar para a tela o conto do renomado escritor japonês Haruki Murakami. Em suma, embora todos os minutos das praticamente 3 horas de duração de "Drive my Car" sejam totalmente aproveitáveis, o filme nada mais é do que a narração da história de duas pessoas solitárias que encontram coragem para enfrentar o seu passado. Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, não teve pra outros em 2022. O Japão, aliás, sempre tão essencial para o cinema, segue rendendo bons frutos. Filmes como “Assunto de Família”, “Pais e Filhos” e “Monster” bem podiam estar aqui também.
24.“O Cavalo de Turim”, Béla Tarr e Ágnes Hranitzky (2011)
O velho fazendeiro Ohlsdorfer e sua filha dividem um cotidiano dominado pela monotonia. A realidade dos dois é observada pela vista da janela e as mudanças são raras. Enquanto isso, o cavalo da família se recusa a comer e a andar. O filme é uma recriação do que teria ocorrido com o animal após ter sido salvo da tortura pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche durante uma viagem a Turim, na Itália. Este "épico do nada" foi o canto-do-cisne do aclamado diretor húngaro Béla Tarr, que disse que o filme aborda “o peso da existência humana”. Takes longos, poucos diálogos, trilha econômica e plasticidade carregada e altamente poética, marcas que Tarr dividiu a direção em sua última obra com a esposa e constate colaboradora Ágnes Hranitzky. Prêmio FIPRESCI e do Grande Júri em Berlim.
25.“Ainda Estou Aqui”, Walter Salles Jr. (2024)
Muito se falou nos últimos meses do filme que, enfim, conquistou o tão
almejado Oscar para o Brasil. Somente por isso, o longa de Walter Salles já
garantiria seu posto entre os mais importantes deste quarto de
século 21 ao recolocar a América do Sul no mapa mundial da indústria do cinema.
Porém, "Ainda Estou Aqui" é mais do que somente sua simbologia. De um roteiro cirúrgico e
atuações marcantes, principalmente da oscarizável Fernanda Torres, tem
o poder de tocar o espectador e de saber contar com sensibilidade uma história
real e tão universal, que trata, antes de tudo, sobre liberdade. Além do Oscar e do Globo de
Ouro para Fernandinha, vários prêmios de fina estirpe assinalam isso, como Veneza, Goya e Miami.
E fechamos com Fernandinha, que fez história no cinema brasileiro (e latino-americano) neste final de primeiro quarto de século 21
PS: Mesmo não incluídos na lista acima, merecem “menção honrosa” estes outros 25, pois são todos excelentes filmes, que bem podiam estar ali: