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terça-feira, 26 de março de 2024

cotidianas #825 - Novas Versões para Antigos Clássicos da Literatura - "Alice na Toca do Coelho"




Alice já estava cansada de ficar sentada no banco sem nada para fazer. Foi quando, de repente, um Coelho Branco de olhos cor-de-rosa passou correndo perto dela. Não havia nada de tão incrível nisso fora o fato do Coelho Branco repetir continuamente para si mesmo: — Ai, rapaz! Ai, rapaz! Vou me atrasar. Alice se alvoroçou mesmo foi quando o Coelho Branco sacou um relógio do bolso de seu colete, checou as horas e saiu apressado. Ela se deu conta de que nunca tinha visto um coelho com um relógio no bolso do colete. Ardendo de curiosidade, correu atrás dele a tempo de vê-lo se emburacar toca adentro no pé de uma cerca. 

No instante seguinte, era Alice quem se entocava ali. Decidiu perseguir o Coelho Branco sem refletir sobre como sairia daquele buraco. 

A toca tinha um trecho reto semelhante a um túnel. Depois, inclinava-se bruscamente para baixo, tão bruscamente que Alice não foi sequer capaz de pensar em frear. Simplesmente despencou em um poço de grande profundidade. 

Alice caía, caía, caía... Será que aquela queda não acabaria nunca? — Então, de repente: plunct! Aterrissou em um amontoado de gravetos e folhas secas. A queda havia chegado ao fim. 

Sem nenhum arranhão, ela se levantou em um instante. Olhou para cima, mas sobre sua cabeça tudo estava escuro. Atrás de Alice havia outra passagem longa, onde ainda se podia ver o Coelho Branco descendo bem depressa. Não dava para perder nem um segundo: lá foi a menina, veloz como o vento ainda a tempo de vê-lo fazer a curva. Alice estava perto dele ao fazer, mas o Coelho Branco já não podia mais ser visto. Sumira na escuridão de um salão comprido, baixo e mal iluminado. 

De repente, de um ponto qualquer na escuridão do fundo do salão, viu surgir o Coelho que avançou lentamente para uma faixa um pouco mais iluminada onde ela podia distingui-lo melhor. Ele estancou a encará-la e Alice, por sua vez, o olhou com curiosidade. 

De trás do Coelho Branco, também daquela treva, surgiram à luz algumas figuras no mínimo excêntricas: um tipo alto com uma cartola extravagante, um homenzinho baixo tão gordo que se assemelhava a um ovo, um par de gêmeos rechonchudos vestidos de forma rigorosamente igual, e um gato que a encarava com um sorriso sinistro na cara. 

O Coelho, girando a corrente do relógio de bolso, e agora parecendo ignorar a presença da menina, depois de um angustiante período de silêncio, finalmente abriu a boca e falou: - Eu não disse que ela ia me seguir? Tá aí ela, gente. Podem descer a porrada.



Cly Reis
livremente inspirado em "Alice no País das Maravilhas",
de Lewis Carrol

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Xande de Pilares - “Xande Canta Caetano” (2023)

 

“Quando não genocidam as nossas crianças elas crescem e têm grandes chances de se tornar, no futuro, um Xande de Pilares, por exemplo. Que estupendo cantor ele se confirma neste álbum que não me canso de ouvir”.
Ricardo Aleixo, poeta, músico e ativista negro

"Canto e imagino que todo o povo, toda 'gente quer ser feliz, gente quer respirar ar pelo nariz' e levar a paz." 
Xande de Pilares, em carta aberta sobre “Xande canta Caetano”


O povo preto não pode nunca deixar de estar alerta. Mãe Bernadete, Moa, Amarildo, Júlio César, Genivaldo, Moïse, Sandro. Marielle Franco. Seja pela força do Estado, seja pelo braço armado do Estado, seja pela conivência do Estado, seja pela incompetência do Estado. No Brasil, o genocídio negro vem de séculos, desde os navios tumbeiros. E quando crias negras nem sequer têm a chance de conhecerem a vida? João Pedro, Heloísa, Miguel, Eloá, Thiago, Ágatha, Maria Eduarda, Kauã, Alice, Emilly, Rebecca. Chacinados da Candelária.

Acontece que, há séculos também, este mesmo povo preto massacrado e açoitado, embora submetido à pior das condições humanas, a escravidão e o aniquilamento, resiste. Resiste e dança, tal como um personagem essencial para esta análise um dia disse: "com uma graça cujo segredo nem eu mesmo sei". 

Alexandre Silva de Assis, ou Xande de Pilares, nascido no suburbano Morro da Chacrinha e que leva no nome outro bairro pobre da Zona Norte do Rio de Janeiro, é fruto deste milagre da resistência. Criado nas rodas de samba de Ramos, Cachambi, Madureira, Pilares – o Pagode do Boleiro, o da Beira do Rio, o Pagofone, o da Geci, o Compasso da Vila, o Risco de Vida, a Adega do Sambola –, chegou ao estrelato aos 22 com o Grupo Revelação na onda pagodeira dos anos 90. Sobreviveu e se desenvolveu. Solo, lançou, entre outros, discos com títulos nada despropositados: “Esse Menino Sou Eu” e “Perseverança”. Aos 53, então, Xande valeu-se da desatenção do sistema racista para cunhar um disco que já nasce, assim como ele e seus milhões de irmãos, valoroso e celebrável. “Xande Canta Caetano” é daquelas raras obras que não precisam da permissão do tempo para se tornarem essenciais. Já vem ao mundo assim.

Vários motivos levam o disco a ser especial. A começar pelo homenageado, cuja gigantesca e assombrosa obra em tamanho e importância garante um set-list de alta qualidade. Segundo: a ideia surgiu de um convite do próprio Caetano Veloso, aceita com certo temor pela responsabilidade por parte de Xande, mas assumida com reverência, respeito e entrega pelo mesmo. Terceiro, a ousadia de trazer para o seu chão, o samba, até mesmo aquilo que não é samba na roupagem original. E quarto e principal: o primoroso resultado final. São apenas 10 faixas, que levam o canto emocionado e gabaritado de Xande para canções do baiano – muitas delas, clássicos do cancioneiro brasileiro – em versões personalíssimas e inspiradas.

Xande demonstra ser um grande fã de Caetano já na escalação do repertório. Uma seleção de quem conhece a fundo aquilo a que está se dedicando. Mas sobretudo e artisticamente falando, um entendimento do que se conecta com ele como intérprete. Fora o fato de ser um disco de duração curta e exata – como os da MPB dos velhos tempos do long player, incluindo os de Caetano –, o repertório torna-se um dos diferenciais do disco. Xande optou por músicas não óbvias do farto cancioneiro caetaneno, mesmo podendo recorrer a uma maior facilidade. Não seria nenhum crime, por exemplo, aproveitar sambas consagrados como “Desde que o Samba é Samba”, "Saudosismo", “Sampa” ou “Sem Samba não Dá”. Ou, quem sabe, sambas convictos do compositor: "Festa Imodesta", "A Voz do Morto", "Samba em Paz", "Força de Imaginação", esta parceria com a "dona do samba" D. Ivone Lara? Diminuiria a margem de erro. Mas não. Xande ousou – e acertou. A se ver pela surpreendente escolha de “Muito Romântico”, que abre o disco numa tocante versão da canção feita para a voz perfeita de Roberto Carlos em 1977 e gravada pelo autor apenas posteriormente. Samba puxado no cavaquinho, instrumento-base de Xande aprendido naquelas tais rodas de samba de outrora, nos botequins da vida. No talento trazido acorrentado da África pelos ancestrais, dos batuques sincréticos na senzala.

Pois outro jovem preto que driblou o sistema genocida é corresponsável por este feito: Ângelo Vitor Simplício da Silva, mais conhecido como Pretinho da Serrinha. Igualmente rebento dos pagodes da vida, das quadras de escola de samba, do ouvido absoluto e do talento nato. Pretinho é quem, além de produzir o disco com a mais alta competência e tocar nada menos que 24 instrumentos nas gravações, assina todos os arranjos, estes capazes de operar o milagre de fazer com que músicas de estruturas rítmicas variadas soem naturalmente sambas tal tivessem sido assim desde sempre. “Luz do Sol”, o emocionante tema escrito por Caetano para a trilha sonora do filme “Índia, A Filha do Sol”, de 1982, de uma balada melancólica vira, simplesmente, um samba-canção de muito bom gosto na tradição de Cartola e Paulinho da Viola.

E o que dizer de “Qualquer Coisa”, que, de portenha, passa a ganhar ares de sambolero com direito a bandolim de Hamilton de Holanda? Até mesmo o hit “Tigresa”, outro não-samba originalmente, é vestido por uma elegante roupagem em que Xande desfila extensão vocal e fraseados num samba lânguido e sensual. Palmas, aliás, para outro preto: Diogo Gomes – mais uma de história linda de superação e perseverança –, que capricha no arranjo de metais.

videoclipe de "Tigresa", da Araguaia Filmes

Assim como “Tigresa”, “Alegria, Alegria” é outro clássico inconteste de Caetano relido no álbum. Porém, ainda mais improvável achar samba naquela marchinha psicodélica. Pois Xande/Pretinho conseguiram, e com louvor. Das melhores do álbum, um dos hinos do movimento tropicalista, defendida pelo autor no memorável Festival da Canção de 1967, transforma-se em um misto de samba rural e afoxé em que o violão do craque Carlinhos 7 Cordas prevalece. Xande, cuja memória ainda preserva da infância as festas da Folia de Reis nas comunidades em que viveu, evidencia neste samba raiz uma atmosfera que talvez até Caetano nem percebera que sua música continha.

Outra nada óbvia – e mostra do quanto Xande caprichou na pesquisa interna à música do homenageado – é “Diamante Verdadeiro”, composta por Caetano para a mana Maria Bethânia e que abre o disco de maior sucesso da carreira dela, “Álibi”, de 1978. Como se encarnasse Moreira da Silva, Xande faz o diamante reluzir verdadeiramente como um samba-de-breque. Na sequência, para uma das mais pessoais e bonitas de todo o repertório de Caetano, “Trilhos Urbanos”, o que poderia ser equivocado se torna ainda mais assertivo. Resgatando no marcante som dos atabaques e do cavaquinho o xirê de candomblé e o samba-de-roda do Recôncavo Baiano, terra-natal de Caetano, a dupla Xande e Pretinho constrói uma das mais belas músicas de todo o disco e, quiçá, da década no Brasil. O bom-senso não recomendaria que o incomum “refrão de assovio” da original de Caetano fosse reproduzido. A solução? Um coro feminino cantarolando a melodia de “Retirantes”, de Caymmi, que faz remeter imediatamente à célebre canção-tema da novela “Escrava Isaura”, presente na memória afetiva de todo brasileiro. Sacada de mestres, astúcia de uma raça que sobrevive com graça para além das desgraças.

Formando a tríade com os maiores cantores da MPB presenteados por Caetano com sua criatividade ímpar, Xande, que passara por Roberto e Bethânia, agora chega a vez de Gal Costa, mencionada na faixa anterior por seu canto de "Balancê". E fazendo jus a um repertório pinçado com sensibilidade, ele versa ainda “O Amor”, que Caetano, sobre a poesia revolucionária do poeta russo Maiakovski, deu para a voz cristalina de Gal em 1981. A mais samba, mas nem por isso menos desafiadora, é “Lua de São Jorge”, uma reverência a ao guerreiro Ogum em ritmo de pagode. Salgueirense, Xande celebra também a escola a qual pertence, devota do mesmo santo, tão vermelha e branca quanto ele. Não à toa os metais e o agogô desenham toda a melodia, afinal, está se falando do “senhor da metalurgia”.

Mas ainda mais revolucionária é a que encerra: “Gente”, o grito humanista mais pungente de Caetano. Difícil escutá-la e não ir às lágrimas, como ocorreu com o próprio Caetano ao ouvi-la pela primeira vez. Xande, com sua história pessoal e representatividade, cantando em clima de samba-enredo essa ode às pessoas simples, apropriando-se dela, reverbera em muitas dimensões do tecido social brasileiro. “Gente pobre arrancando a vida com a mão”. Quanto potência e significado versos como estes ganham ao saírem de sua boca: “Não, meu nêgo, não traia nunca essa força, não/ Essa força que mora em seu coração”.

“Xande Canta Caetano” é, sem pestanejar, o melhor álbum lançado no Brasil em 2023, um presente aos brasileiros para um festivo ano em que o país se livrou do fascismo e vislumbrou novamente a esperança na democracia, no respeito ao outro e no amor. Brasileiros como Ricardo Aleixo, Jorge Furtado, Pena Schmidt, Martha Medeiros, Nizan Guanaes e Moysés Mendes pensam o mesmo. Na mesma lógica de enumerar nomes como na música "Gente", podem-se adicionar tranquilamente a Francisco, Zezé, Gildásio, Renata, Agripino, Dolores ou João, como a poética sugere, outros nomes, tal Pretinho, tal Diogo. Tal Xande. Foi deixarem o negro existir, deu nisso: amor e arte, as armas contra a iniquidade capazes de transformar o mundo. Afinal, gente é pra brilhar como brilha Alexandre Silva de Assis. Não pra morrer de fome, de bala ou pela invisibilidade.

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videoclipe de "Gente", da Araguaia Filmes


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FAIXAS:
1. “Muito Romântico” - 3:16
2. “Luz do Sol” - 3:44
3. “Qualquer Coisa” (participação: Hamilton de Holanda) - 3:00
4. “Tigresa” - 3:59
5. “Alegria, Alegria” - 2:56
6. “Diamante Verdadeiro” - 3:14
7. “Trilhos Urbanos” (Música incidental: “Retirantes”, Dorival Caymmi) - 3:22
8. “Lua de São Jorge” - 3:01
9. “O Amor” (Caetano Veloso / Ney Costa Santos / Vladimir Maiakovski) - 3:37
10. “Gente” - 3:55
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

"Monstro", de Jennifer Kent (2005) vs. "O Babadook", de Jennifer Kent (2014)

 



Sabe aquela treinadora que fez um bom trabalho com um time limitado, mostrou serviço, competência mas não dava pra ganhar, aí teve reconhecimento e recebeu uma oportunidade num time maior? É mais ou menos o caso da diretora Jennifer Kent com o curta-metragem "Monstro", de (2005) e sua refilmagem, mais completa, o longa "O Babadook", de 2014.

O curta tem muitíssimos méritos e indubitavelmente se vê um bom trabalho ali, mas, claramente, foi o que deu pra fazer, até pela própria duração do projeto. Mas então, alguns anos depois, bancada por uma produtora maior, com mais orçamento, melhores condições técnicas, uma boa distribuição, Kent pôde aperfeiçoar sua ideia e entregou, nada menos que um dos grandes clássicos do terror dos últimos tempos.

A história é basicamente igual: uma mãe, cuidando sozinha de seu filho, duvida das histórias do garoto que alega que um homem assustador se abriga nos cantos ocultos da casa, no armário, debaixo da cama, na escadaria, pronto para pegá-lo. Só que aos poucos, com algumas evidências, sentindo a presença e com aparições do monstro também para a própria mãe, ela passa a acreditar e a lutar contra a criatura para livrar-se dela.

O primeiro filme é extremamente competente em nos apresentar esse cenário em dez minutos, partindo de um ponto de "normalidade" que ao mesmo tempo nos indica que alguma coisa não corre bem naquele lar, levanta a dúvida da existência do bicho, põe em cheque a sanidade mental do menino, cria a atmosfera de medo, e amplifica essa tensão até culminar num clímax de pavor. Tudo isso em uma edição ágil, precisa, e sob uma fotografia preto e branco sinistra e aterrorizante.


"Monster" (2005) - filme completo

Se no futebol, nem sempre posse de bola significa resultado, pois muitas vezes o time que fica menos tempo com ela é mais mortal, aqui faz toda a diferença: "O Babadook" é superior, em grande parte, por ter mais tempo de desenvolvimento. A diretora dispõe  mais tempo em detalhes, reforça situações com repetições, coloca mais elementos, e o espectador mergulha de maneira mais profunda na realidade daquele lar, do ambiente externo (vizinhança, trabalho, amigos, escola ..), na situação emocional da mãe, nos problemas de comportamento do garoto.

No curta, embora percebamos o desconforto da mãe, não conseguimos ter a dimensão da barra que ela vive cuidando sozinha do menino e como é difícil para ela lidar, não somente com as questões práticas do dia a dia (temos indicativos disso, como a cama molhada de urina, a casa bagunçada, louça por lavar...), como com os problemas relacionados aos pavores do filho.

Já na refilmagem, com mais tempo, com boa iluminação, com a maquiagem adequada, com uma atriz mais mais experiente, a mãe, Amélia, fica verdadeiramente exposta ao espectador. Uma personagem em frangalhos física e psicologicamente, uma viúva que, de uma hora para outra se vê diante do grande desafio de levar a vida sozinha, administrar a casa, cuidar do filho problemático, e ainda ter que aguentar as cobranças de se recuperar da perda do marido, voltar a ser alegre, estar apresentável...

Como se não bastasse tudo isso, o filho, Samuel, começa a ver coisas: um homem enorme, de preto, com dedos longos, usando uma espécie de cartola. O mesmo homem que está ilustrado num livro pop-up que, do nada, apareceu na casa deles. Amélia inicialmente acha que é bobagem, coisa de criança, primeiro não liga, depois ralha com o filho, logo, por conta de seu estado emocional, perde a paciência com o menino. Associa as inquietações do filho ao livro e tenta livrar-se dele mas o livro sempre reaparece. Pode jogar no lixo, rasgá-lo, queimá-lo, ele volta. Depois de também perceber a presença do monstro, sentir-se ameaçada por ele, embora tente lutar contra a criatura e tente expulsá-lo, começa cada vez mais a ser dominada por ele, ficar agressiva e dirigir essa agressividade para o filho.


"O Babadook" (2014) - trailer

"O Babadook" é mais do que um mero filme de terror. É um drama sobre maternidade com elementos de terror psicológico tão perturbadores que vão além do sobrenatural.

Todos os méritos para "Monstro" mas... não dá. Até guarda o seu por conta da excelente fotografia P&B, mas não resiste ao melhor futebol do adversário e deixa entrar. O primeiro, pelo melhor desenvolvimento da ideia original e complexidade do enredo;  e o segundo, pelo aperfeiçoamento do monstro, ainda mais sinistro e assustador, especialmente nas cenas em que se arrasta pelo teto, na que desce pela lareira e, na sequência final, quando se agiganta emergindo das sombras avançando contra os dois. A dupla de ataque guarda os seus: Essie Davis, como Amélia, tem excelente atuação e sua caracterização, desgrenhada, acabada, esgotada, é perfeita (3x1); e Samuel, o filho, vivido por Noah Wiseman, que consegue provocar no espectador um misto de piedade e irritação, garante com essa atuação brilhante mais um no placar. Virou goleada.

A técnica Jennifer Kent ainda faz uma substituição que lhe garante mais um gol: SAI o boneco, objeto perturbador do menino no primeiro filme, e ENTRA o livro, elemento que oferece mais possibilidades, mais alternativas visuais e dramáticas por conta dos desenhos pavorosos do monstro e dos textos ameaçadores da misteriosa publicação. Mais um para o Babadook!

O Monstro ainda desconta no finalzinho por conta de seu final mais interessante, mais plástico e sugestivo que o do longa, mas não é suficiente para uma reação.

Final: Monstro 2 x Babadook 5.

À esquerda, "Monstro", de 2005 e à direita, "O Babadook", de 2014


"Dook... Dook..."
Babadook bateu tanto, bateu tanto que Monstro
acabou deixando entrar na sua defesa.
"Let me in".







por Cly Reis





quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Paulinho da Viola - “Prisma Luminoso” (1983)



 

“Paulinho na verdade é uma ponte, não uma ruptura. É um craque (vascaíno) de ligação entre a tradição e o novo, o lado de lá e o de cá, o samba de morro e o do asfalto, as raízes e as antenas. Paulinho criou suas influências e seus precursores. Sua obra modificou nossa concepção do que se fez antes em matéria de samba.” 
Zuenir Ventura


Paulinho da Viola tem uma relação com o tempo distinta de todo o resto da humanidade. Primeiro, porque é evidente que ele não pertence a uma mera sucessão de instantes que se passam um depois do outro. Seria muito reducionista em se tratando de Paulo César Batista de Faria que, dizem, está completando 80 anos de vida. Mas duvide-se um pouco disso. Ele mesmo admite que é um ser do século 19 nascido quase que por engano no século 20. Engano, no entanto, não é. Se sua existência não responde à cronologia dos mortais, sua vinda ao mundo significa algo muito representativo. Este “dândi do morro” é, sob nenhuma suspeita, o grande modernizador do ritmo mais brasileiro de todos os tempos (e um dos mais latinos também): o samba. Irokô, orixá do tempo, sabe das coisas: não teria seu filho emprestado vindo com sua classe, originalidade e elegância se não fosse para decretar que o novo samba lhe pertence. Nele, a estética e a sofisticação da classe média da zona sul do Rio de Janeiro dos anos 50 e 60 se encontraram com a vibração dos subúrbios cariocas, resultando numa nova forma que atravessa o tempo sem alterar sua essência e abraçando a modernidade.

A carreira de Paulinho, marcada pela observância acurada da música de Cartola, Zé Ketti, Dª Ivone Lara e Nelson Cavaquinho, iniciou ao lado dos bambas do passado e do presente no conjunto Rosa de Ouro, e 1965. Mas a música está desde sempre na sua vida. Vem de casa, das rodas de choro em Botafogo promovidas pelo pai, o violonista César Faria, onde recebia de Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Dilermando Reis sob os olhos do pequeno Paulo. Depois, nos pagodes e feijoadas na quadra da Portela, sua Escola, onde aprendeu com os gênios anônimos Manacéa, Ventura, Paulo da Portela, Santana, Monarco, Carlos Cachaça, Candeia. Fora isso, na juventude, o convívio de perto com os mestres no Zicartola, de Nelson Sargento a Clementina de Jesus, passando por Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Ciro Monteiro e outros, que deram combustível ao coração sensível e à mente altamente inteligente de Paulinho. Eis, então, um autor original e intimista, que consegue juntar a tradição do samba, a voz do morro e a modernidade aludida pela bossa nova.

Dono de uma obra de apenas 21 álbuns solo em quase 60 anos de carreira, sendo alguns ao vivo ou de regravações, Paulinho tem um cancioneiro diminuto. Sabiamente descompassado do restante do mercado fonográfico, desde 1996 não lança um trabalho de estúdio novo. Isso tudo obriga o ouvinte a, diante de sua obra, ser tão contemplativo quanto suas letras sugerem, fazendo com que cada disco seu seja um verdadeiro tesouro artesanal onde guardam-se preciosidades como choros, toadas, sambas-enredo, partidos-altos e mais e mais brasilidades. Tudo encapsulado por um estilo marcadamente sofisticado e por uma poética que remete ao parnasianismo, ao simbolismo, ao romantismo e às vezes à poesia moderna (a se ver pela ousada “Sinal Fechado”, de 1971). Por isso, escolher “Prisma Luminoso” para representar sua discografia é tarefa fácil. Nele se encontra toda esta conjunção de qualidades amalgamadas a um estilo tomado de originalidade e fineza.

Quase como um lema, “O Tempo não Apagou” começa um dos discos preferidos do próprio Paulinho em ritmo de batucada, a qual encerra com uma batida única que não se encontra mais em lugar nenhum, nem mesmo nas escolas de samba há bastante desviadas do som dos blocos carnavalescos de antigamente. Logo depois, de arranjo impecável de Cristóvão Bastos, o samba romântico “Retiro” apontaria o caminho em timbrística e clima para a retomada da carreira de Emílio Santiago alguns anos dali nas “Aquarelas Brasileiras”. Já “Cadê a Razão”, João Bosco, Djavan e Gilberto Gil na veia (não à toa dedicada aos três, aliás) traz uma saborosa mistura de samba-de-breque com funk. Na medida certa, sem pesar a mão, bem ao estilo do seu autor. 

Outra joia do disco é “Mas Quem Disse que Eu te Esqueço”, de autoria de Dª Ivone em parceria com Hermínio. Certamente uma das mais belas melodias e letras do samba de todos os tempos: “Tristeza rolou dos meus olhos/ De um jeito que eu não queria/ E manchou meu coração/ Que tamanha covardia”. Ainda mais quando cantada pela voz principesca de Paulinho! O samba triste “Mais que a Lei da Gravidade” tem no piano de Cristóvão a cama perfeita para a parceria com Capinan, com quem Paulinho também divide a autoria da faixa-título, um clássico samba de breque com astral pra cima, amoroso e sensível. Nela, se vê claramente a poética de Paulinho, que faz alusão às metáforas com os elementos naturais e suas simbologias, como o mar, o vento, o olhar, o sal e o cristal. Elementos da passagem do tempo.

A ótima “Documento”, de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, abre a segunda parte do disco, que tem na sequência outra coautoria de Paulinho, esta com o antigo parceiro Elton: “Quem Sabe”. Com um distinto riff puxado no cavaquinho, faz jus ao legado de Cartola a que tanto os dois dignificam. “Quem sabe/ Retomando a velha estrada/ Eu encontro em outros braços/ Aquela ternura que um dia perdi/ Dentro dos olhos teus”. A modernidade de Cartola, aliás, a qual Paulinho tanto exalta, é novamente reverenciada na versão de “Não Posso Viver sem Ela”, música de 1942 gravada originalmente por Ataulfo Alves e pelo seu autor em 1976. Para encerrar, o impecável “Prisma...” traz ainda a bela “Cisma”, a onírica “Só Ilusão” e a sertaneja “Toada”, mostrando a maturidade de um artista que se experimenta em vários gêneros.

Acontecimentos únicos como Paulinho da Viola revestem-se, no entanto, de certa normalidade. Veja-se só agora, com os 80 anos deste artista, celebrados país e mundo afora. Mas é só parar um pouco e observar o que está tácito: 80 anos, que nada! Paulinho tem 80 e mais, 80 e todos. 80 e tudo. Muita sabedoria, poesia, elegância, beleza para caber em meros anos somados uns anos outros. Ele pensa que engana quando canta os versos de Wilson Batista: “meu tempo é hoje”. Pura humildade: o tempo de Paulinho não é só hoje: é sempre. Paulinho é o tempo do infinito, o tempo dos mares que tanto lhe cabem na poesia. O tempo do vento, que lhe faz articular essa voz límpida e cheia de coração. O tempo do amor, sentimento sem tempo. Não é ele quem se navega: quem lhe navega é o mar.

Irokô definitivamente sabe das coisas.

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FAIXAS:
1. "O Tempo Não Apagou" - 3:18
2. "Retiro" - 2:50
3. "Cadê A Razão" - 3:08
4. "Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço" (Dona Ivone Lara, Hermínio Bello De Carvalho) - 3:20
5. "Mais Que A Lei Da Gravidade" Capinan, Paulinho Da Viola) - 3:25
6. "Prisma Luminoso" (Capinan, Paulinho Da Viola) - 3:09
7. "Documento (Eduardo Gudin, Paulo César Pinheiro) - 3:05
8. "Quem Sabe" (Elton Medeiros, Paulinho Da Viola) - 3:05
9. "Cisma" - 3:05
10. "Não Posso Viver Sem Ela" (Bide, Cartola) - 2:48
11. "Só Ilusão" - 4:15
12. "Toada" - 1:50
Todas as composições de autoria de Paulinho da Viola, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

sábado, 5 de novembro de 2022

Copa do Mundo Gilberto Gil - Campeã

 



Chegou o grande momento.
Conheceremos a grande canção campeã.
Nossos especialistas se debruçaram sobre o confronto, ouviram e reouviram as duas concorrentes e chegaram às suas conclusões.
Querem saber qual a melhor música de Gilberto Gil?
Vamos lá, então!

(Esse suspense é que me mata.)


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PALCO 
X
REALCE



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Cly Reis

Final muito justa. Duas das canções mais significativas de Gilberto Gil chegam a esse momento máximo da nossa Copa. Dois times que jogam pra cima, duas músicas alto-astral, positivas. "Palco" com sua exaltação ao lugar sagrado do músico, onde ele se sente mais vivo, renovado, e "Realce" uma evocação do nosso poder interior e uma conclamação às belezas da vida.
Dentro do campo, se Palco começa com aquele seu "Papapapabaia, papapa pabaia, papapa papá...", Realce não deixa por menos e manda o seu "Hey-ah mama, hey-ah..."; letra por letra, ambas trazem toda a mestria da poesia de Gil, com seu jogo de palavras inigualável e recado repleto de sabedoria; se Realce tem aquela guitarra marcante, estridente, que já se apresenta logo na abertura, os metais precisos e o refrão muito disco; Palco traz um suingue rico e embalado, também cheio de metais e, por sua vez, uma pegada soul contagiante. O 0x0 persiste mas, o refrão decide o jogo: apesar do ótimo refrão de Realce, do título repetido entre as linhas de metais, o "fora daqui" de Palco é uma das coisas mais fantásticas da música brasileira. 1x0, apertado, no limite, no detalhe, mas o suficiente para despachar Realce. Vitória de Palco.
PALCO 1 x REALCE 0


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Joana Lessa

O jogo já começa quente, com duas músicas na disputa que são o suprassumo de Gilberto Gil. O clássico dos clássicos. 
E como acontece nas finais de campeonato, que vença o melhor:
PALCO 2 x REALCE 3

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Leocádia Costa

Final de campeonato é sempre muito disputado, por isso o placar costuma ser taco a taco. Aqui não poderia ser diferente. Duas grandes finalistas foram pra decisão. Ambas muito identificadas com Gil, o maestro genial de toda essa temporada. Mas depois de muita torcida, desclassificações e reviravoltas, chegamos no essencial. Isso foi bonito! A canção vitoriosa foi Palco que traduz Gil por inteiro: essa voz que resgata com dignidade e crítica a história do povo negro, essa voz que eleva os ouvintes quando canta e nos coloca a repetir palavras e refrões supermelodiosos, essa voz que revela um artista completo, atemporal e genial. Palco é o lugar de Gil, é lá onde ele sempre estará, pra fora dos nossos corações.
PALCO 4 x REALCE 3


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Kaká Reis

Final mais que apertada, com duas das mais emblemáticas músicas do gênio Gil, que ambas trazem a essência musical do artista, ainda que de épocas muito parecidas (final de 70/inicio de 80) individualmente cada uma carrega um Gil diferente. Em comum, a celebração e a energia… Dito isso, adversarias no campo, Palco começa o jogo marcando 1 e na sequência Realce empata.. à medida que se passa os minutos da música, Realce marca mais um, dininuindo a diferença… e nos segundos finais, é um “real teor de belezaaa” Realce emplaca o terceiro, sendo a grande vencedora dessa emocionante disputa!
PALCO 1 x REALCE 3


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Daniel Rodrigues

É chegada a hora da grande decisão! “Realce” e “Palco” entram em campo sob os efusivos aplausos das torcidas. De um lado, a galera de “Realce”, toda colorida e entusiasmada pela Coligay. Do outro, a torcida mais cheirosa do campeonato rufava o louco bum-bum do tambor da arquibancada. O jogo nem parece uma final, pois ambas as equipes são propositivas, afirmativas, sem medo de serem felizes. Tanta igualdade, que 1 x 1 é o placar da primeira etapa. Na volta do intervalo, “Realce”, empurrada pela torcida, que jogou quilos de serpentina no gramado, vai pra cima e marca o segundo. Será que temos uma campeã? Mas, calma, que tem muito jogo – e muita música – pela frente! Consciência é o que não falta para “Palco”, que põe a bola no chão e, no ritmo do “la la ia”, entra na área adversária de pé em pé e empata novamente. Faltam apenas 5 minutos mais os acréscimos para terminar! Será que vamos para os pênaltis? Que nada. Valendo-se do talento de um tal de Lincoln, tipo meio magrão mas muito bom armador, “Palco” tira da cartola aquele que seria o gol definitivo. O gol da vitória. O gol do título. Final: “Palco” 3, “Realce” 2. No palco montado sobre o campo, “Palco” levanta a taça! Sua torcida, em respeito, vibra mas não canta o “Fora daqui!” como fez pras outras adversárias durante o torneio, e a torcida de “Realce” responde com festa em embalo disco, porque a essas alturas tudo é tipo Parada Gay. “Palco” campeã da Copa Gil!
PALCO 3 x REALCE 2


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Rodrigo Dutra

Como não amar “Realce”? A campeã poderia ser qualquer uma de “Refazenda”, qualquer uma de “Tropicália”, poderia ser “Domingo no Parque”, qualquer releitura de João, de Bob, qualquer parceria com Caetano... mas o fato é que “Realce” é a beleza em si. “Palco” é a beleza no todo. A razão por Gil estar em nossas vidas. Onde tudo faz sentido pra criador e criaturas. “Palco” ganha com eficiência. Tem o melhor elenco de palavras e versos. Viva Gil! Viva “Palco”!
PALCO 2 x REALCE 0



E Palco conquista a Copa do Mundo Gilberto Gil!
E agora, o próprio homenageado sobe ao PALCO para receber
a taça.
Pode soltar o grito de É CAMPEÃ!!!



PALCO CAMPEÃ
DA 
COPA DO MUNDO
GILBERTO GIL




E ficamos com o som da campeã:


quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Milton Nascimento - "Geraes" (1976)

 

"Esses gerais são sem tamanho."
Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas"

"Sou o mundo, sou Minas Gerais."
Da letra de "Para Lennon e McCartney", de Lô Borges, Marcio Borges e Fernando Brant


Tom Jobim e o desenho sinuoso e sensual da Rio de Janeiro. 

Dorival Caymmi e a Bahia dos pescadores e santos do candomblé. 

Moondog e as pradarias inóspitas do Wyoming. 

Robert Johnson e as infinitas plantações de algodão do Mississipi. 

Violeta Parra e a imensidão das cordilheiras andinas. 

É sublime quando um músico consegue atingir tamanha simbiose entre ele e seu espaço, a ponto de passar a representar, através de sua arte, uma paisagem física. É como se ele fosse, por intermédio dos sons, não originário deste lugar, mas, sim, o próprio lugar.

Milton Nascimento é um destes seres que, como o próprio nome indica, nasce e gera a própria terra, Minas Gerais. O homem que integra a seu próprio nome um estado inteiro, o seu mundo. E não digam que Mi(lton) Nas(cimento) é mera coincidência linguística! Mais correto é afirmar que os Deuses - os do candomblé, da Igreja, muçulmanos, indígenas, todos aqueles que perfazem a cultura mineira - assim quiseram a este carioca desgarrado abraçado como um filho pelos morros de cor ferrosa das Gerais, os quais, junto à lúdica maria fumaça, ele mesmo representa na icônica capa em desenho a próprio punho. Como um ser pertencente àquela terra a qual se homogeiniza. 

Em meados dos anos 70, Milton já havia percorrido muita estrada de terra na boleia de um caminhão. Na faixa dos 35 anos, pai, casado, consagrado no Brasil e no exterior, idolatrado e gravado por Elis Regina, mentor do movimento musical mais cult da modernidade brasileira, autor de algumas das obras mais icônicas do cancioneiro MPB. O reconhecido talento como compositor, cantor, arranjador e agente catalisador misturava-se, agora, com a sabedoria da maturidade - como se ainda coubesse mais sabedoria a este ser nascido gênio. Quase que naturalmente a quem já havia ganhado o centro do País e desbravado o principal mercado fonográfico do mundo, o norte-americano, Milton, então, volta-se à sua própria essência: a terra que lhe é e a qual pertence. 

Mas Milton, carinhosamente chamado de Bituca por quem o ama, não faz isso sozinho, visto que convoca seu talentoso Clube da Esquina, reforçando o time de amigos, inclusive. Se "Minas", a primeira parte deste duo de álbuns gêmeos, explora a grandiosidade das geraes Guimarães Rosa de Drummond, seja em sons e letras, "Geraes" solidifica essa ideia quase que como um milagre: um homem torna-se seu próprio som. Ou melhor: transforma-se em montanha para, do alto de topografia, emitir a sonoridade da natureza. Samba, rock, soul, folk, jazz, toada, sertanejo, candombe, trova, oratório... world music, não só por acepção, mas por intuição, é o termo mais adequado para classificar.

A ligação entre uma palavra e outra, entre um título e outro, entre um disco e outro, se dá pelo mesmo acorde que desfecha “Simples”, última faixa de "Minas", e abre, em ritmo de toada mineira, a linda "Fazenda" (“Água de beber/ Bica no quintal/ Sede de viver tudo/ E o esquecer/ Era tão normal que o tempo parava"). A religiosidade católica do povo, traço cabal da cultura mineira, transborda tanto em "Cálix Bento", com a marca do violão universal de Milton e o emocionante arranjo de Tavinho Moura sobre tema da Folia de Reis do norte de Minas, quanto em "Lua Girou", outro tema do folclore popular – este da região de Beira-Rio, na Bahia – vertida para o repertório pela habilidosa mão do próprio Bituca. 

O lado político, claro, está presente. Milton, consciente da situação do País e jamais acovardado, não havia esquecido das recentes retaliações da censura que quase prejudicaram seu "Milagre dos Peixes", de 3 anos antes, um verdadeiro milagre de ter sido gestado com tamanha qualidade. O parceiro e produtor Ronaldo Bastos, além da concepção da capa, é quem pega junto em "O Menino", escrita anos antes pelos dois em homenagem ao estudante Edson Luís, assassinado em 1968 em um confronto com a polícia no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, episódio que uniu a sociedade em protestos que culminaram com a famosa Passeata dos Cem Mil contra a Ditadura Militar. E que luxo a banda que o acompanha: João Donato (órgão), Nelson Angelo (guitarra), Toninho Horta (guitarra), Novelli (baixo), e Robertinho Silva (bateria). Com a mira militares a outros artistas naquele momento, como Chico Buarque, Milton pode, enfim, lançar a música e não se calar diante da barbárie. 

Quem também garante o grito de resistência é um recente e igualmente genial amigo, com quem tanto e tão bem Milton produziria a partir de então. Justamente o então visado Chico Buarque. É com ele que Milton canta a canção-tema do filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos", de Bruno Barreto, um sucesso de bilheteria no Brasil à época, "O que Será (À Flor da Pele)". Fortemente política, a letra, cantada com melancolia e até tristeza, reflete os tempos de iniquidade humana: "O que será que será/ Que dá dentro da gente que não devia/ Que desacata a gente, que é revelia/ Que é feito uma aguardente que não sacia/ Que é feito estar doente duma folia/ Que nem dez mandamentos vão conciliar/ Nem todos os unguentos vão aliviar/ Nem todos os quebrantos, toda alquimia/ Que nem todos os santos, será que será...". Gêmea de "O que Será (À Flor da Terra)", Milton retribui o convite e divide com Chico os microfones desta última no álbum dele naquele mesmo ano, o não coincidentemente intitulado “Meus Caros Amigos”


Milton e Chico: encontro mágico promovido à época
de "Geraes" e que deu maravilha à música brasileira

A maturidade filosófico-artística de Milton era tão grande, que as dimensões do que é grande ou pequeno, do que é parte ou geral, se reconfiguram numa consciência elevada de humanidade. A ligação universal de Milton com sua terra passa a significar o ligar-se a América Latina. Afinal, sua Minas é, como toda a latinoamérica, dos povos originários. “San Vicente” e "Dos Cruces", de "Clube da Esquina”, já traziam essa semente que “Geraes”, mais do que “Minas”, solidificaria, que é essa visão ampla do território, dos povos. Primeiro, na realização do sonho de cantar Violeta Parra com Mercedes Sosa. Apresentada a Milton por Vinícius de Moraes, La Negra divide com Milton os microfones da clássica “Volver a los 17”. Igualmente, vê-se o encontro dos rios do Prata e São Francisco, que não poderiam deixar de fazer brotar aquilo que os perfaz e lhes dá sentido: água. É com o conjunto de jovens chilenos deste nome, amigos recém conhecidos, que Milton instaura de vez, na acachapante “Caldera”, a alma castelhana dos hermanos na música popular brasileira – convenhamos, muito mais do que os músicos da MPG, cuja proximidade regional do Rio Grande do Sul propiciaria tal fusão mais naturalmente. É o canto dos Andes – mas também de Minas – sem filtro. 

As amizades, aliás, estão presentes em todos os momentos, e o território de Milton é como uma grande aldeia onde ele, consciente de seu papel de pajé, mantém a egrégora sob a força do amor. Fernando Brant, parceiro desde os primeiros tempos, coassina aquela que talvez seja a música mais sintética de todo o disco: “Promessas De Sol”. A sonoridade latina das flautas andinas, a percussão marcada pelo tambor leguero, o violão sincrético de Milton e os coros constantes e tensos dão à canção a atmosfera perfeita para um os mais fortes discursos políticos que a Ditadura presenciou em música. “Você me quer belo/ E eu não sou belo mais/ Me levaram tudo que um homem precisa ter”. Épica, como uma ópera guarani, a melodia vai escalando de um tom baixo para, ao final, se encerrar com intensos vocais de Milton bradando, denunciativo: “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?” 

Parece que não cabe mais emoção num álbum como este. Mas cabe. A brejeira “Carro De Boi”, de Cacaso e Maurício Tapajós (“Que vontade eu tenho de sair/ Num carro de boi ir por aí/ Estrada de terra que/ Só me leva, só me leva/ Nunca mais me traz”) casa-se com a inicial “Fazenda” seja na ludicidade ou na sonoridade ao estilo de cantiga sertaneja. Mas tem também a jazzística e comovente “Viver de Amor”, em que novamente Ronaldo, desta vez em parceria com o excepcional Toninho Horta, compõem para a voz cristalina de Milton uma das canções românticas mais marcantes de toda a discografia brasileira. Ronaldo, múltiplo, também tira da cartola mais uma vez com Milton outra joia do disco, que é o samba-jongo “Circo Marimbondo”. Assim como Milton, de ouvido tão absoluto quanto sensível, fizera ao contar com a voz de Alaíde Costa para cantar com ele "Me Deixa em Paz" em “Clube da Esquina”, aqui ele vai na fonte mais inequívoca para este tipo de proposta musical que une África e Brasil: Clementina de Jesus. Na percussão, além de Robertinho no tamborim e surdo, também outros craques da “cozinha”: Chico Batera, no agogô; Mestre Marçal, cuíca; Elizeu e Lima, repique; e Georgiana de Moraes, afochê. E que delícia ouvir o canto anasalado e potente da deusa Quelé acompanhada pelo coro de Tavinho, Miúcha, Chico, Georgiana, Cafi, Fernando, Bebel, Ronaldo, Bituca, Vitória, Toninho e toda a patota! 

Para encerrar? A música que conjuga o primeiro e o segundo disco, o corpo e o espírito: “Minas Geraes”. O violão carregado de traços étnico-culturais de Milton, sua voz que escapa do peito emoldurando-se ao vento, a docilidade das madeiras, a singeleza do toque do bandolim. Clementina, em melismas, embeleza ainda mais a canção, lindamente orquestrada por Francis Hime – outro novo amigo cooptado por Milton da turma de Chico. Tudo converge para um final emocionante, que, como os próprios versos dizem, saem do “coração aberto em vento”: “Por toda a eternidade/ Com o coração doendo/ De tanta felicidade/ Todas as canções inutilmente/ Todas as canções eternamente/ Jogos de criar sorte e azar”. 

Ouvindo-se “Minas” e “Gerais”, duas obras não somente maduras como altamente densas, simbólicas e encarnadas, é impossível não ser fisgado pelo mistério da música de Milton Nascimento. Encantamento que remete ao mistério da criação, o mistério da vida. Wayne Shorter, parceiro de Milton e mutuamente admirador, quando perguntado sobre esta esfinge que é a obra do amigo, diz: “Bem, ouça você mesmo, pois não há palavras para descrever. Apenas sinta”. Milton, que completa 80 anos de vida sobre o mundo, o seu mundo, é tudo isso: uma força da natureza. Ele é mais do que música: é som em estado puro. É mais que tempo: é a harmonia do espaço. 

Milton é mais do que homem: é pedra. Eterna.

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É impressionante perceber hoje, em retrospectiva, que o encontro de dois gênios da música brasileira se deu exatamente na época deste trabalho. Depois de aberta a porteira da fazenda de Milton para Chico, só vieram coisas lindas. Além de parcerias nos anos subsequentes - inclusive no célebre "Clube da Esquina 2", de 1978 - naquele mesmo ano de 1976 os dois se reuniriam para gravar o compacto "Milton & Chico", lançado oficialmente um ano depois. Incluído em "Geraes" na versão para CD, esta gravação clássica dos dois traz duas faixas: a melancólica "Primeiro de Maio", que denuncia a vida oprimida do trabalhador brasileiro no feriado dedicado a ele, e "O Cio da Terra", também combativa e ligada ao trabalhador, mas do campo, que se tornaria uma das canções emblemáticas do repertório tanto de Chico quanto de Milton.

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FAIXAS:
1. "Fazenda" (Nelson Angelo) - 2:40
2. "Calix Bento"(Folclore popular - Adap.: Tavinho Moura) - 3:30
3. "Volver a los 17" - com Mercedes Sosa (Violeta Parra) - 5:10
4. "Menino" (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:47
5. "O Que Será (À Flor da Pele)" - com Chico Buarque (Chico Buarque) - 4:10
6. "Carro de Boi" (Maurício Tapajós/ Cacaso) - 3:40
7. "Caldera (instrumental)" - com Grupo Agua (Nelson Araya) - 4:25
8. "Promessas do Sol" - com Grupo Agua (Milton Nascimento/ Fernando Brant) - 5:00
9. "Viver de Amor" (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos) - 2:34
10. "A Lua Girou" (Milton Nascimento) - 3:42
11. "Circo Marimbondo" - com Clementina de Jesus (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:55
12. "Minas Geraes" com Grupo Agua e Clementina de Jesus (Novelli/ Ronaldo Bastos) - 5:13

Faixas bônus da versão em CD:
13. "Primeiro De Maio" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 4:46
14. "O Cio Da Terra" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 3:48


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OUÇA O DISCO
Milton Nascimento - "Geraes" 


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Música da Cabeça - Programa #289

 

Mania essa de dizer que esse tipo de coisa é obra de alienígena! Isso é porque ainda não conhecem o poder revelador do MDC. Deixam seus sinais marcados no programa de hoje Seals & Crofts, Os Paralamas do Sucesso, Cartola, Big Star, Camisa de Vênus e outros, além de um Cabeção em comemoração aos 100 anos de nascimento do pioneiro da música de vanguarda no Brasil Gilberto Mendes. Desenhos musicais surgem nas plantações misteriosas da Rádio Elétrica hoje, às 21h. Produção, apresentação e agroglifos: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:

http://www.radioeletrica.com/

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Monarco - "Terreiro" - Participação da Velha Guarda da Portela (1980)

 

“Compadre Monarco, se não confeitarem tua voz com clarinadas, violinadas e gastas dissonâncias violonísticas, o pessoal vai sentir o que é samba.” 
Juarez Barroso, escritor, poeta e produtor musical

“Monarco foi mais do que um grande sambista: trata-se de um grande brasileiro.” 
Sérgio Cabral, crítico e escritor

Posso dizer que estive muito próximo de Monarco desde bastante tempo. Certamente não tanto quanto os amigos, parceiros, moradores da comunidade de Madureira ou Oswaldo Cruz, dos portelenses que tinham o privilégio de conviver com ele. Mas meu contato com o mestre, que nos deixou no último dezembro, certamente foi muito maior do que para com muitos artistas que admiro mas que, como acontece na maioria dos casos, uma admiração somente à distância. Por isso, arrisco em afirmar que estive, pelo menos três vezes, quando não a metros, por um fio de distância de Monarco. Tão próximo que seria possível ouvir-lhe, como um bumbo de samba, a batida do coração.

Primeira vez que o vi presencialmente foi em 2014 quando este, juntamente com a Velha Guarda da Portela, presenteou Porto Alegre em uma apresentação ao vivo – e de graça – em pleno parque da Redenção para a celebração dos 80 da UFRGS. Já havia ficado um tanto frustrado em 2010 quando, com minha mãe, fui á quadra do bloco Cordão da Bola Preta, no Rio de Janeiro, para uma feijoada em que tocaria a Velha Guarda da Portela, mas ele foi um dos ausentes. Na Redenção, no entanto, a alegria foi completa. Que momento histórico aquele! Lembro que foi uma sexta-feira, em que Leocádia e eu saímos de nossos compromissos e rumamos direto para o local do show, próximo ao espelho d’água. Com seu barítono em dia, mesmo com os mesmos 80 anos da universidade que o convidara, o baluarte, acompanhado das pastoras e de uma competente banda, fez sua escola do coração tomar conta do parque com sambas clássicos de sua autoria e de outros bambas como ele tanto da Portela quanto de outras agremiações.

Aliás, abrindo um parêntese aqui: igual a ele, talvez não tenha existido. Hildemar Diniz cruzou praticamente todos os momentos importantes nos últimos 70 anos do samba carioca e da Portela, agremiação da qual tinha apenas 10 anos menos. Monarco conviveu e cambiou com os principais nomes da sua comunidade e do samba carioca: Paulo da Portela, Silas de Oliveira, Candeia, Natal, Cartola, Manacéia, Nelson Sargento, Martinho da Vila, Beth Carvalho, Paulinho da Viola, Tia Vicentina, Dona Ivone Lara, Casquinha, Áurea Maria, Surica entre tantos outros. Uma simbiose que muitos não tiveram talento, nem perseverança e nem tempo de vida para tanto. Presidente de Hora da escola, Monarco tinha mais do que somente um título honorário mas sem propósito prático. Era quase como um cacique, um pai de santo, um líder religioso, uma majestade cujo respeito foi conquistado durante a vida e a quem todos recorriam para pedir-lhe a benção. A autoridade de um monarca do samba. 

Mas voltando às minhas vezes com Monarco, a segunda em que o vi bem de perto foi dois anos depois do show em Porto Alegre numa apresentação no CCBB do Rio de Janeiro celebrando os 100 anos do samba, quando, além de Leocádia, ainda tive o prazer da companhia de minha mãe, que, sempre antenada na programação cultural carioca, nos levou àquele deleitoso momento que contava também com a participação de Nei Lopes. O velho mas lúcido Monarco, então com apenas 18 anos menos que o próprio samba, não só cantou como contou histórias, o que fazia com maestria tanto quanto seus sambas, verdadeiras crônicas cotidianas.

Da discografia de Monarco, no entanto, “Terreiro”, seu segundo dos sete solo, de 1980, é talvez o mais especial. Com os companheiros de Velha Guarda, mas também outros craques como Mestre Marçal, Valdir 7 Cordas e o filho e parceiro Mauro Diniz, o disco desfila em azul e branco sambas de todas as épocas invariavelmente com a maestria de sua interpretação. Nas composições, as elegantes melodias de nuanças eruditas se juntam às letras que namoram com a melhor poesia parnasiana de um “sambista-historiador”, como definiu Sérgio Cabral. Dos temas do próprio Monarco tem “Homenagem À Velha Guarda” (“Vi os sambistas de fato/ Manacéia e Lonato e outros mais/ Juro que fiquei boquiaberto/ Nunca me senti tão perto/ Da Portela dos tempos atrás”), “Você Pensa Que Eu Me Apaixonei” (com Alcides), “Proposta Amorosa” e a clássica “Passado de Glória” (“A Mangueira de Cartola, velhos tempos do apogeu/ O Estácio de Ismael, dizendo que o samba era seu/ Em Oswaldo Cruz, bem perto de Madureira/ Todos só falavam Paulo Benjamin de Oliveira”), daquelas que não podem faltar em qualquer apresentação da Velha Guarda.

No disco tem também espaço para outras escolas que não só a Portela: “Silenciar a Mangueira”, numa interpretação inédita do amigo Cartola que morreria naquele mesmo ano, e “Estácio de Sá Glória do Samba”, em que Monarco, como era de sua natureza, deixa o clubismo de lado e homenageia uma das comunidades fundadoras do carnaval carioca. Prevalecem, no entanto, as composições de portelenses como ele. A linda “Chuva” (Hortêncio Rocha), a lírica “Conselho de Vadio” (Alvarenga) e a ufanista “Feliz Eu Vivo no Morro” (Josias/Pernambuco/Chatim). Tão bom quanto, o pot-pourri “Temporal” (Tia Doca), “Mulher Vai Procurar Teu Dono” (Rufino), “Caco Velho” (Caetano), e “Serei Teu Ioiô” (Paulo da Portela/Monarco) é uma mostra mais do que perfeita da grandiosidade poética e melódica da turma de Madureira.

Fora isso, as audições, tantas e tantas. “Tudo Azul”, da Velha Guarda da Portela, de 1999, furei de tanto ouvir. E quantos sambas, quantas joias da nossa cultura! “Lenço”, “O Quitandeiro”, “Coração em Desalinho”, "Obrigado pelas Flores", “Portela Desde Que Eu Nasci”, “Ingratidão”, “Agora é Tarde”, “De Paulo a Paulinho”, “Pobre Passarinho”... Ah, tanta beleza, que se for falar mais de Monarco, hoje eu não vou terminar.

Ah, mas faltou falar da terceira ocasião em que me vi junto a Monarco. Pois bem: embora mais longe fisicamente, foi a vez em que, curiosamente, tive-lhe mais perto. No início de 2019, minha irmã Kaká Reis, produtora cultural, trabalhava com o velho bamba e, por ideia de meu outro irmão e coeditor do blog, Cly Reis, arranjou-me para meu programa Música da Cabeça, na Rádio Elétrica, uma entrevista com Monarco, com quem ela estaria em São Paulo para um show. Kaká não apenas viabilizou a conversa e a gravação como mediou a entrevista a partir das questões que cuidadosamente elaborei. No camarim, horas antes de subir ao palco, Monarco, com toda sua simpatia e sabedoria, prestou-lhe(me) uma entrevista deliciosa, que marcou a centésima edição do meu programa. A se considerar que irmãos são nós mesmos em outro corpo, posso dizer que estive, sim, com Monarco. Bem próximo, a seu lado, falando com ele. A centímetros do coração. E ele – como sempre fez através de sua obra grandiosa – falando comigo.

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Monarco
(1933-2021)



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FAIXAS:
1. "Homenagem À Velha Guarda" (Monarco)
2.a. "Temporal" (Tia Doca)
2.b. "Mulher, Vai Procurar Teu Dono" (Rufino)
2.c. "Caco Velho" (Antonio Caitano)
2.d. "Serei Teu Ioiô" (Paulo da Portela/Monarco)
3. "Sofres Por Querer Liberdade" (Mijinha/Monarco)
4. "Estácio De Sá, Glória Do Samba (Monarco)
5. "Conselho De Vadio" (Alvarenga)
6. "Feliz Eu Vivo No Morro" (Chatim/Josias/Pernambuco)
7. "Silenciar A Mangueira" (Cartola) - Participação: Argemiro
8. "Você Pensa Que Eu Me Apaixonei" (Alcides Lopes/Monarco)
9. "Chuva" (Hortênsio Rocha)
10. "Proposta Amorosa" (Monarco)
11; "Falsa Recompensa" (Mijinha/Monarco)
12. "Passado De Glória" (Monarco)

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OUÇA O DISCO:
Monarco - "Terreiro"

Daniel Rodrigues

domingo, 31 de outubro de 2021

"Salomão Ventura, O Caçador de Lendas nº1 - A Maldição do Saci", de Giorgio Galli - Gico Mix (2011)


"A premissa da HQ é mostrar as lendas do nosso folclore
do jeito que a tradição oral as apresenta,
capturadas pelo mestre Luís da Câmara Cascudo em sua bibliografia.
Em resumo: são histórias de terror feitas para assustar."

"E minha escolha para essa primeira edição 
não poderia ser outra:
quem foi mais descaracterizado e infantilizado
do que o diabrete Saci Pererê?
Que em sua origem, conforme relatado pelo mestre Cascudo,
foi vítima de assassinato, tornou-se alma penada
e tem como objetivo causar morte e dor?
Não é para crianças..."

Giorgio Galli,
prefácio de "A Maldição do Saci"



Na data mais conhecida pela comemoração norte-americana do Halloween, mas que por aqui, simbolizando toda a riqueza de nosso folclore, é simbolizada no Saci, nosso destaque vai para um dos projetos mais legais da cena independente de quadrinhos nacional. É o projeto do artista Giorgio Galli, que, com sua série Salomão Ventura, explora as tradições folclóricas brasileiras, lançando sobre elas um olhar mais sombrio e aterrorizante, transformando lendas e personagens de tradição popular em temíveis criaturas sinistras. Assim, o Curupira e o Saci, por exemplo, têm recuperadas características estudadas por historiadores e folcloristas, e passam a ser, na visão artística de Galli, criaturas sobrenaturais e ameaçadoras que, por mais que tenham justificativas para existirem e demandas legítimas, devem voltar para seus lugares, no mundo do além, longe dos humanos. Para isso, o caçador de assombrações, Salomão Ventura, um misto de Constantine e Van Helsing, sai em busca das aberrações sobrenaturais e, com seus métodos, nada gentis (e nem podia ser diferente) mas muito "convincentes", as captura e manda de volta para o lugar de onde nunca deviam ter saído.
O primeiro número da série do Caçador de Lendas, criado por Galli, é exatamente "A Maldição do Saci", personagem de origem sinistra cujas características foram humanizadas e suavizadas para ficar mais palatável e poder fazer parte dos sítios-dos-pica-paus-amarelos da vida, mas que a bem da verdade, não é nada menos que uma alma-penada vingativa e odiosa, fruto de um brutal assassinato. O moleque tem seus motivos para voltar das trevas para alimentar sua sede de vingança, punir pais e fazer justiça em lares onde crianças são maltratadas como ele foi, só que Salomão Ventura, por mais que compreenda isso, não pode deixá-lo à solta por aí e vai atrás do pretinho endiabrado se valendo da única maneira possível de pegá-lo... (você sabe qual é, não sabe?).
Um projeto que, ao contrário do que muitos pensam, que demoniza personagens da cultura popular, na verdade a resgata e valoriza, levando ao encontro de muitos mergulhados na cultura norte- americana, um pouquinho mais das raízes brasileiras.
Trabalho de muito talento desenvolvido, como o autor mesmo revela no prefácio, ao som de The Cure, The Smiths, Jesus & Mary Chain, Titãs, Cartola, PixiesStone Roses, Kraftwerk e outras coisas mais. Com inspirações dessas, só poderia sai coisa boa, mesmo.

Página da HQ. O início da sina vingativa do Saci.


por Cly Reis



O projeto Salomão Ventura infelizmente, num primeiro momento, não foi muito adiante e ficou só em quatro números, Saci, Curupira, Lobisomem e De Volta Pra Casa, mas ao que parece, o artista resolveu pôr a mão na massa e parece estar produzindo novos episódios do caçador das trevas. Não é tão fácil de se encontrar exemplares mas volta e meia se acha em feiras de quadrinhos e eventos do tipo, além do próprio site do artista (salomaoventura.com.br).