Curta no Facebook

Mostrando postagens classificadas por data para a consulta John Cale. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por data para a consulta John Cale. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Música da Cabeça - Programa #353

 

Começou o BBB! Mas quem aqui se importa com isso?! O que nos interessa mesmo é uma sigla de outras três letras: MDC. No programa 353, você vai ver que, por trás desse paredão, só tem coisa edificante, como John Cale, Tim Maia, Skank, Sean Lennon e mais. Ainda, o primeiro Sete-List do ano só com discos da MPB que completam cinco décadas em 2014. Sem confinamento, o programa hoje vai invade os lares às 21h na rádio mais vigiada do Brasil, a Rádio Elétrica. Produção, apresentação e wall of sound: Daniel Rodrigues.


www.radioeletrica.com

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2023

 



Rita e Sakamoto nos deixaram esse ano
mas seus ÁLBUNS permanecem e serão sempre
FUNDAMENTAIS
Chegou a hora da nossa recapitulação anual dos discos que integram nossa ilustríssima lista de ÁLBUNS FUNDAMENTAIS e dos que chegaram, este ano, para se juntar a eles.

Foi o ano em que nosso blog soprou 15 velinhas e por isso, tivemos uma série de participações especiais que abrilhantaram ainda mais nossa seção e trouxeram algumas novidades para nossa lista de honra, como o ingresso do primeiro argentino na nossa seleção, Charly Garcia, lembrado na resenha do convidado Roberto Sulzbach. Já o convidado João Marcelo Heinz, não quis nem saber e, por conta dos 15 anos, tascou logo 15 álbuns de uma vez só, no Super-ÁLBUNS FUNDAMENTAIS de aniversário. Mas como cereja do bolo dos nossos 15 anos, tivemos a participação especialíssima do incrível André Abujamra, músico, ator, produtor, multi-instrumentista, que nos deu a honra de uma resenha sua sobre um álbum não menos especial, "Simple Pleasures", de Bobby McFerrin.

Esse aniversário foi demais, hein!

Na nossa contagem, entre os países, os Estados Unidos continuam folgados à frente, enquanto na segunda posição, os brasileiros mantém boa distância dos ingleses; entre os artistas, a ordem das coisas se reestabelece e os dois nomes mais influentes da música mundial voltam a ocupar as primeiras posições: Beatles e Kraftwerk, lá na frente, respectivamente. Enquanto isso, no Brasil, os baianos Caetano e Gil, seguem firmes na primeira e segunda colocação, mesmo com Chico tendo marcado mais um numa tabelinha mística com o grande Edu Lobo. Entre os anos que mais nos proporcionaram grandes obras, o ano de 1986 continua à frente, embora os anos 70 permaneçam inabaláveis em sua liderança entre as décadas.

No ano em que perdemos o Ryuichi Sakamoto e Rita Lee, não podiam faltar mais discos deles na nossa lista e a rainha do rock brasuca, não deixou por menos e mandou logo dois. Se temos perdas, por outro lado, celebramos a vida e a genialidade de grandes nomes como Jards Macalé que completou 80 anos e, por sinal, colocou mais um disco entre os nossos grandes. E falando em datas, se "Let's Get It On", de Marvin Gaye entra na nossa listagem ostentando seus marcantes 50 anos de lançamento, o estreante Xande de Pilares, coloca um disco entre os fundamentais logo no seu ano de lançamento. Pode isso? Claro que pode! Discos não tem data, música não tem idade, artistas não morrem... É por isso que nos entregam álbuns que são verdadeiramente fundamentais.
Vamos ver, então, como foram as coisas, em números, em 2023, o ano dos 15 anos do clyblog:


*************


PLACAR POR ARTISTA (INTERNACIONAL)

  • The Beatles: 7 álbuns
  • Kraftwerk: 6 álbuns
  • David Bowie, Rolling Sones, Pink Floyd, Miles Davis, John Coltrane, John Cale*  **, e Wayne Shorter***: 5 álbuns cada
  • Talking Heads, The Who, Smiths, Led Zeppelin, Bob Dylan e Lee Morgan: 4 álbuns cada
  • Stevie Wonder, Cure, Van Morrison, R.E.M., Sonic Youth, Kinks, Iron Maiden , U2, Philip Glass, Lou Reed**, e Herbie Hancock***: 3 álbuns cada
  • Björk, Beach Boys, Cocteau Twins, Cream, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Elton John, Queen, Creedence Clarwater Revival, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Madonna, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, Pixies, Dead Kennedy's, Velvet Underground, Metallica, Dexter Gordon, Philip Glass, PJ Harvey, Rage Against Machine, Body Count, Suzanne Vega, Beastie Boys, Ride, Faith No More, McCoy Tyner, Vince Guaraldi, Grant Green, Santana, Ryuichi Sakamoto, Marvin Gaye e Brian Eno* : todos com 2 álbuns
*contando com o álbum  Brian Eno e John Cale , ¨Wrong Way Out"

**contando com o álbum Lou Reed e John Cale,  "Songs for Drella"

*** contando o álbum "Five Star', do V.S.O.P.



PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Caetano Veloso: 7 álbuns*
  • Gilberto Gil: * **: 6 álbuns
  • Jorge Ben e Chico Buarque ++: 5 álbuns **
  • Tim Maia, Rita Lee, Legião Urbana, Chico Buarque,  e João Gilberto*  ****, e Milton Nascimento*****: 4 álbuns
  • Gal Costa, Titãs, Paulinho da Viola, Engenheiros do Hawaii e Tom Jobim +: 3 álbuns cada
  • João Bosco, Lobão, João Donato, Emílio Santiago, Jards Macalé, Elis Regina, Edu Lobo+, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Ratos de Porão, Roberto Carlos, Sepultura e Baden Powell*** : todos com 2 álbuns 


*contando com o álbum "Brasil", com João Gilberto, Maria Bethânia e Gilberto Gil

**contando o álbum Gilberto Gil e Jorge Ben, "Gil e Jorge"

*** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas"

**** contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto"

***** contando com os álbuns Milton Nascimento e Criolo, "Existe Amor" e Milton Nascimento e Lô Borges, "Clube da Esquina"

+ contando com o álbum "Edu & Tom/ Tom & Edu"

++ contando com o álbum "O Grande Circo Místico"



PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 3
  • anos 40: -
  • anos 50: 121
  • anos 60: 100
  • anos 70: 160
  • anos 80: 139
  • anos 90: 102
  • anos 2000: 18
  • anos 2010: 16
  • anos 2020: 3


*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1


PLACAR POR ANO

  • 1986: 24 álbuns
  • 1977 e 1972: 20 álbuns
  • 1969 e 1976: 19 álbuns
  • 1970: 18 álbuns
  • 1968, 1971, 1973, 1979, 1985 e 1992: 17 álbuns
  • 1967, 1971 e 1975: 16 álbuns cada
  • 1980, 1983 e 1991: 15 álbuns cada
  • 1965 e 1988: 14 álbuns
  • 1987, 1989 e 1994: 13 álbuns
  • 1990: 12 álbuns
  • 1964, 1966, 1978: 11 álbuns cada



PLACAR POR NACIONALIDADE*

  • Estados Unidos: 211 obras de artistas*
  • Brasil: 159 obras
  • Inglaterra: 126 obras
  • Alemanha: 11 obras
  • Irlanda: 7 obras
  • Canadá: 5 obras
  • Escócia: 4 obras
  • Islândia, País de Gales, Jamaica, México: 3 obras
  • Austrália e Japão: 2 cada
  • Itália, Hungria, Suíça, França, Bélgica, Rússia, Angola, Nigéria, Argentina e São Cristóvão e Névis: 1 cada

*artista oriundo daquele país
(em caso de parcerias de artistas de países diferentes, conta um para cada)

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Código Penal - Preto no Metal Festival - Bar Opinião - Porto Alegre/RS (17/12/2023)

 

Fazia tempo que queria ver a Código Penal, uma das bandas do meu primo-irmão-parceiro Lucio Agace. Digo uma das bandas, porque Lucio enfileira, desde os anos 80, algumas das bandas mais legais da cena alternativa gaúcha. A começar pela HímenElástico, projeto que tínhamos em conjunto com meu outro irmão e coeditor deste blog, Cly Reis, e meu outro primo e irmão do Lúcio, , com o adicional de nosso baterista oficial César “Pereba”. Mas a Hímen, há de se dizer, por mais legal que fosse nosso som (considero-a a grande banda gaúcha dos anos 90 que não aconteceu), foi talvez o projeto mais incipiente de Lucio. Vômitos & Náuseas, Causa Mortis e Câmbio Negro, pelo contrário, são alguns desses seus projetos mais consistentes. Mas também há de se dizer: a Código Penal é especial. O som, misto de hardcore, hip hop, funk e uma veia social e urbana muito evidente (em vários aspectos, parecida com a da Hímen) fazem da Código uma banda muito foda de se ouvir. Faltava vê-los no palco.

Pois o Festival Preto no Metal, ocorrido no célebre bar Opinião, trouxe esta oportunidade. A Código se apresentou na sequência de outras bandas muito legais com essa mesma vertente e ativismo, mas confesso que fomos mesmo lá para vê-los. E a expectativa foi totalmente atendida, numa apresentação enérgica, potente, dançante e... foda. A “arquitetura” da banda é apreciável, desde a visual até a sonora, com Lucio e Black to Face dividindo-se nos vocais como verdadeiros vocalistas MCs, dois guitarristas, Marcio Zuza e Eduardo Jack, um fazendo base e outro complementando o arranjo com efeitos e solos, o baixo poderoso de Luciano Tatu, a bateria pegada de Pereba e uma mesa eletrônica comandada pelo próprio Lucio. 

O tempo de show de festival, como de costume, curto. Então, o negócio é subir no palco e mostrar serviço, como a Código fez. Aí, foi só paulada, uma atrás da outra. “Terra de Ninguém” pra começar. “Os Dois Lados do Imoral”, na sequência, fez o ambiente pra ótima parceria da banda com Tonho Crocco em “Apologia”, que levantou a galera. “Marginalizado”,  “Justiça Injusta” e “Chove Bala”, idem. Pra finalizar, “Sexo nas Ruas” e a ótima “Gangs”, que já rodei no meu programa, o Música da Cabeça, mas que ao vivo ganha uma potência maior, tanto pela reação da galera quanto pela sonoridade própria, com seus samples da trilha de “Sexta-Feira 13”. Aliás, por falar no filme, mais uma das coisas legais da performance da banda e de Lucio, em especial, que é quando ele se ausenta um tempo do palco para voltar travestido de Jason Voorhees, com a máscara característica do personagem, um casaco com capuz preto e um temível taco de beisebol. Fez lembrar outro punk performático chamado John Cale.

Enfim, showzasso da Código, que Leocádia e eu vencemos os 48 graus de sensação de Porto Alegre àquele dia para estar no Opinião, mas que valeu totalmente a pena. Confere aí um pouco de como foi:

**********

A Código sobe ao palco do Opinião 

Lucio, performático, com a máscara do Jason junto com Black to Face

Black to Face mandando ver nas rimas

Um pedacinho de como foi o show 
da Código Penal no Opinião

Visão da mesa de som

Código in da house, motherfucker!

Mais rimas

Lucio ao centro do palco com a baita banda na "cozinha"

Preto no Metal olhando o Preto no Metal

A galera comemorando o baita show ao final:
Jamal, Val, Lucio, Leo e eu
 


Site da Código Penal: www.bandacodigopenal.com.br  


texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Leocádia Costa e Daniel Rodrigues

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Brian Eno - “Another Green World” (1975)

 

“Ao discutir arte, as pessoas costumam falar sobre gênios, mas assim que você começa a observar de perto como as coisas surgem, descobre que sempre há contextos e sistemas informando esse indivíduo”.

“A ciência é uma forma de descobrir coisas sobre o mundo, mas a arte nos dá a chance de explorar, através da imaginação, lugares que não existem, bem como ferramentas para lidar com o mundo em que estamos”. 
Brian Eno

Obras-de-arte comumente vêm ao mundo fora do seu tempo cronológico. Com isso, precisam que o próprio tempo passe para serem valorizadas e, principalmente, entendidas. Quanto levou-se para se assimilar a “nova poesia” de Mallarmé, hoje naturalmente reconhecida como o começo das correntes modernistas? Ou as pinceladas "borradas" dos impressionistas, taxadas de “infantis” pelos críticos da época, mas que se configuraram num passo fundamental para a ruptura com o classicismo absorvido pela arte contemporânea? 

Na música moderna, isso seguidamente ocorre. “The Velvet Underground & Nico”, primeiro disco da banda de Lou Reed e John Cale, vendeu ridículas 10 mil cópias à época de seu lançamento, em 1967, mas influenciou o mundo quase tanto quanto os Beatles. O hoje cult “Araçá Azul”, de Caetano Veloso, chegou a ter devoluções nas lojas em 1972 de tão mal recebido pelo público e hoje um vinil original não custa menos do que uma pequena fortuna. Pode-se dizer que “Another Green World”, de Brian Eno, de 1975, se enquadra neste perfil de grandes discos além de seu tempo. Não por terem lhe fechado os olhos, mas por não ter sido observado como deveria. E, diferentemente de outras obras marcadamente incompreendidas, o disco do cantor, compositor e produtor inglês carrega algumas qualidades que lhe tornam quase profético. Eno intuiu elementos que só se conflagrariam tempo depois, redimensionando aquele trabalho do passado que anteviu o que pode se chamar de “era da pós-música”.

Havia sinais de que Eno estivesse sintonizado com algo de tamanha visão do futuro, mas nem por isso assim tão fáceis de se ler. Saído da glitter Roxy Music, no início dos anos 70, banda que já antecipava uma série de movimentos da música pop, Eno, que além de músico é também artista visual e professor de arte, sempre equilibrou a carreira entre essas várias vertentes. Tal versatilidade lhe fez iniciar a carreira solo com dois discos de glam rock bastante inovadores: “Here Comes the Warm Jets” e “Taking Tiger Mountain (By Strategy”), de 1973 e 74, respectivamente. Em seguida, uma guinada: Eno inventa a ambient music com “Discreet Music”, abrindo caminhos para a new age e o neo classical. Anos antes, ele já havia feito duo com Robert Fripp no experimental “No Pussyfooting” e trabalhado ao lado de Cale, Nico e Kevin Ayers, um dos fundadores do jazz-rock. Ou seja: diversas frentes, que embaralhavam ainda mais o cenário em que “Another...” foi gestado.

Por todos estes antecedentes e exemplos subsequentes – visto que Eno seguiu variando entre art rock, punk, minimalismo, afrobeat, trilhas de cinema, new age, world music e outros gêneros – a audição de “Another...” é absolutamente enigmática. E mais do que isso: o enigma não se dá em razão de uma música complexa, intrincada, mas, sim, por uma sonoridade totalmente “palatável”. Eno certamente queria dizer algo importante com isso... Quem escuta os primeiros acordes da faixa inicial, “Sky Saw”, não raro surpreende-se com o som processado e dissonante do fretless bass de Percy Jones tocando um acorde de quatro notas que visivelmente não se completa. Não se completa, mas volta a se repetir em sua incompletude, deixando claro que é mesmo aquele o “riff” da canção, se é que dá para classificar assim. Nem o show de execução do restante da banda formada por Eno com os amigos Paul Rudolph, no baixo, Phil Collins, na bateria, Rod Melvin, no piano elétrico, e Cale, na viola, faz esvair a sensação de que algo diferente contém ali. Uma abertura fascinante, mas estranha.

Se o disco larga com cargas de peculiaridade, a partir de então os enigmas começam a ficar ainda mais evidentes. À exceção de “Sky Saw” e mais outras quatro, todas as músicas das 13 que compõem o disco são como vinhetas, de poucos minutos. Nenhuma passa de 4 minutos, tempo de duração padrão de uma canção pop vendável. “Over Fire Island”, noutra performance brilhante do ainda apenas baterista Collins, traz um baixo igualmente destacado de Jones numa base meio jazzística enquanto Eno comanda sintetizadores, guitarra e colagens de fita magnética. Pura vanguarda instrumental, assim como outras duas seguintes, “In Dark Trees” e “The Big Ship”, ambas protagonizadas apenas pelo próprio Eno, que ainda toca percussão elétrica e sintetizada e um gerador de ritmo tratado, tecnologia bem avançada para a época, algo como a uma bateria eletrônica rústica. Todas instrumentais, curtas, de poucos acordes, quase sem riff. Não fosse pelas breves frases cantadas da primeira faixa e da pequena letra de outra excelente, “St. Elmo's Fire” – em que Eno comanda os instrumentos acompanhado somente da guitarra do parceiro Fripp –, poderia se dizer que se trata de um disco de música instrumental. Mas claramente diferente de “Discreet...” ou de qualquer outra peça de trabalhos anteriores. Onde Eno queria chegar com essa proposta, no mínimo, diferente?

O álbum prossegue e as respostas vão sendo colhidas aos poucos. É possível perceber, por exemplo, o embrião da generative music, outra novidade a qual Eno lançaria as bases em 1978 em “Ambient 1: Music for Airports”, termo baseados nas ideias do linguista Noam Chomsky e que descreve uma música sempre diferente, mutável e gerada por sistemas eletrônicos. A sexta faixa, “I'll Come Running”, em que conta outra vez com Melvin ao piano, Rudolph ao baixo e Fripp nas guitarras, começa a deixar mais claro o que Eno pretendia. A alternância entre músicas com uma formação um pouco maior, mas enxuta, e outras quase que totalmente artesanais – caso da seguinte, a dissonante faixa-título – denota o quanto o autor entendia que caminhos a música pop iria tomar não dali a poucos anos, mas três, quatro, cinco décadas à frente! E mais: não apenas a música popular, mas o conceito de sonoridade, a ideia de música da sociedade contemporânea.

Fica até difícil perceber o quanto o homem moderno está soterrado em mensagens sonoras, visto que estas proveem de todas as fontes e plataformas. Pelos celulares, pela TV, pela publicidade, pelos aparelhos constantemente conectados do mundo atual. Na era digital de infinitas possibilidades e constante avanço, a música, assim como qualquer outro enlatado de supermercado, vem numa esteira de ultraprocessamento à medida em que a sociedade capitalista também avança. A propaganda, com suas pesquisas e indicadores, é a nova ciência. Com isso, passa-se a utilizar a lógica de produção, inclusive para a democrática e facilmente penetrável arte. As discussões postas na mesa pela geração da pop art e do kitsch a qual Eno pertence captava a subjetivação do fazer artístico diante das possibilidades (e permissividades) do capitalismo. O que Eno sacou em “Another...”, antes de qualquer outro músico pop, era que, com a música, esse efeito de desconexão seria não somente contínuo quanto, quiçá, irreversível. Os sons aos quais todos são bombardeados ao navegar pela internet ou num simples passeio na rua ou num shopping nada mais são, hoje, que fragmentos sonoros cientificamente provocados. Pequenas células de emissão físico-acústica de onde se extrai apenas o que é necessário para a absorção funcional, superficial e fragmentada do homem atual.

Canções pop sem centro tonal, inversão dos efeitos sinestésicos, ruptura radical com o cromatismo. Aqui, faz-se necessário um parêntese temporal, e chega-se ao século XXI e seus novos gêneros: left-field, trap, wonky, vaporwave, lowwecase... Não é nem o que Chico Buarque entende como “fim da canção”, mas, mais do que isso: é a era da “não-música”. Os tempos líquidos teorizados por Baumann foram perscrutados na música em diversos momentos na modernidade. Em conceito, a The Residents não só lançou “Commercial Album”, apenas composto de músicas de 1 minuto de duração para supostos jingles publicitários, como, anos antes, fez o “não-lançamento” de “Not Avaliable”, disco que, ironizando a lógica de mercado, “não devia ser ouvido”. Sonoramente, além da eletrônica, da vanguarda, do jazz ou da new age, dissolvedores do cromatismo clássico, um artista como William Basinski, literalmente diluiu a música em sua “Watermusic”. Mas todos até então buscavam dialogar com o tom, seja pela referência, pela alusão ou pela proposital abstenção. Impreterivelmente. O que Tricky ou MFDoom desmembraram, hoje, Billie Elish faz revelar um novo estado psíquico a que a civilização se levou: a total alienação da tonalidade – menos por conhecimento do que por intenção. Seria, ao invés da música "generativa", a "degenerativa"?

Voltando a "Another...", na arábica “Sombre Reptiles”, Eno traz a alusão ao abstratismo tão presentes nas artes visuais a qual ele mesmo se alinha. Mas, para além disso, reforça a ideia de uma deformação do real. "Little Fishes" ainda mais: frases soltas, quase que apenas para sentir e não ouvir. Gostar torna-se, assim, subjetivo, pois está associado à mimese e não à assimilação por um viés artístico. Absorve-se cognitivamente e não sensorialmente. Qualquer semelhança com os estímulos sonoros de um app de smartphone ou de um vídeo do Tik Tok não é mera coincidência. Nem curtas demais, que não transmitam o efeito pretendido, nem longas demais, que acabem dispersando a atenção da geração do imediatismo.

Diminuta em construção melódica, mas gigante em qualidade é "Golden Hours", outra cantada do álbum, música que, certamente, serviria de inspiração (para não falar de “espelhamento”) a U2 quase 20 anos depois na canção “The Wonderer", que encerra o disco “Zooropa” - nada coincidentemente produzido pelo próprio Eno. É ele que volta a agir sozinho em “Becalmed” (Piano Leslie e sintetizador), talvez a mais ambient de “Another...” e de cujos traços tornaria a valer-se tanto em trabalhos solo seguintes (“Before and After Science”, “Music for Airports”) quanto na de parceiros, como no "lado B” de “Low”, do amigo David Bowie, em 1977. “Zawinul/Lava”, igualmente, remete a este Eno experimental e com o olhar para o Oriente, que aproveita um pequeno motivo sonoro provocador de sensações de contemplação e meditação. 

A bela "Everything Merges with the Night" é uma quase-canção, com a voz bonita de Eno acompanhada do baixo e pianos de Brian Turrington e de sua própria guitarra, não fosse o riff que, mais uma vez, situa-se no limiar da melodia, haja visto que sua predominante dissonância não deixa completar o ciclo sonoro natural ao ouvido. Há sempre algum "problema", seja na duração, na altura, na intensidade ou no timbre, elementos constituidores do tom. Uma provocação à biologia humana. Há um fio melódico, mas Eno deixa-o escapar deliberadamente. Magnífica, "Spirits Drifting" é a conclusão perfeita para um disco que começa esfíngico e termina agravando as próprias interrogações: instrumental, mínima, atonal. Uma combinação de acordes bonita, mas que não desfecha naturalmente, como que deixando um proposital ponto de interrogação.

A música da era da pós-verdade – num planeta das multidões de refugiados, da avançada ciência que favorece as classes dominantes, das persistentes fome e guerras, do mundo capitalista que caminha para a autodestruição ambiental – não é (não pode ser) mais música. Decreta-se a “não-música”. Talvez por isso tudo o disco de 1975 de Eno seja tão precursor e contenha um título tão utópico quanto propositivo. O tom, na concepção dele, nada mais é do que o símbolo de uma ética. Musical, em primeira observância, mas ecológica amplamente falando. Ao fincar suas bases na tradição – porém, problematizando-a –, o artista remonta a séculos de uma construção formal e estética a qual acredita fortemente que jamais deve se perder, mesmo que em um “outro mundo verde” muito disso tenha ficado para trás. Esperançoso, no entanto, o próprio Eno sustenta a ideia lançada em “Another...”: “O esforço ambiental é o maior movimento da história da humanidade; nunca houve uma única causa que uniu tantos bilhões de pessoas com um objetivo. Pode haver contradições dentro da causa; haverá emoções e derramamentos, mas esperamos que haja alguns resultados positivos para esta ação mundial”. Tomara ele tenha razão.

***********

FAIXAS:
1. "Sky Saw" - 3:25
2. "Over Fire Island" - 1:49
3. "St. Elmo's Fire" - 3:02
4. "In Dark Trees" - 2:29
5. "The Big Ship" - 3:01
6. "I'll Come Running" - 3:48
7. "Another Green World" - 1:38
8. "Sombre Reptiles" - 2:26
9.  "Little Fishes" - 1:30
10.  "Golden Hours" - 4:01
11. "Becalmed" - 3:56
12. "Zawinul/Lava" - 3:00
13. "Everything Merges with the Night" - 3:59
14. "Spirits Drifting" – 2:37
Todas as composições de autoria de Brian Eno

***********

OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 29 de maio de 2023

CLYLIVE Especial de 15 anos do ClyBlog - Kraftwerk - C6 Fest - Vivo Rio - Rio de Janeiro/ RJ (18/05/2023)

 



Somos apenas humanos
por Cly Reis



Há 15 anos atrás tinha o privilégio de assistir a um show do Kraftwerk. Desde então, tive, para mim, a convicção de que havia presenciado o melhor show de minha vida. Até por conta disso, não  tinha a intenção de vê-los ao vivo novamente. Pra que? Já  havia me satisfeito e, provavelmente, não  seriam melhores do que foram naquela vez.

Só que o tempo passou e, dentro desses 15 anos que me separam daquele show, tive uma filha. Ela tem 11 anos hoje e, ao longo de sua formação musical, sem que eu forçasse, sem que eu influenciasse decisivamente, acabou por adorar Kraftwerk. E eis que, eu que já me dava por satisfeito por tê-los visto uma vez, descubro que os caras vêm pro Brasil de novo! Eu tinha que levar minha filha para ver. Não sei se, a essas alturas, eles vêm de novo, se vão continuar fazendo turnês, se Ralph Hütter não vai pendurar as chuteiras, ou mesmo se sua "bateria" ainda vai durar por muito mais tempo, uma vez que, brincando brincando, já são 76 anos nas costas ("toc, toc", batendo na madeira). Era agora ou, possivelmente, nunca mais.

Então fiz o "esforço" de ir ao show no C6 Fest. Sinceramente, fora o fato da oportunidade de minha filha ter essa experiência, não guardava maiores expectativas. Imaginei que, velhinhos, com a vida ganha, com um repertório incontestável, depois de várias passagens por aqui, os homens-máquina fossem entrar no palco só pra cumprir tabela: aquele showzinho burocrático, tipo entro lá, ligo a programação eletrônica, cumpro uma horinha de show, ganho minha grana vou embora...

Que nada!

Os caras tavam pilhados!

Um show dinâmico, com espontaneidades, "improvisos", uma pedrada emendando na outra e, mesmo dentro daquele tradicional comedimento dos alemães, uma certa animação e uma movimentação incomum, especialmente do líder e fundador Ralph Hütter.

"Numbers" que abriu o show, combinada com "Computer World" já foi algo espetacular, musical e visualmente, com as impressionantes projeções sincronizadas no telão. "Spacelab" a seguiu trazendo a todos a surpresa da homenagem ao Rio de Janeiro, no telão,  com a nave do Kraftwerk sobrevoando a cidade e pousando em frente ao Vivo Rio, levando o público à loucura. E teve uma "The Model" empolgante, "Autobahn" reinventada, muito mais livre e quase espontânea, "The Man-Machine emocionante, "Trans-Europe Express" arrasadora, um medley das partes de "Tour De France" e um gran-finale com uma "Music Non Stop" descontraída e cheia de pequenas variações. Senti falta, é verdade, de "Radioactivity" que podia muito bem ter entrado no lugar de "Planet of Visions", mas nada que desvalorize tudo o que acontecera lá. 

Para quem achava que já havia visto o suficiente da banda, que era dispensável assistir a outro show, que eles estariam apenas cumprindo uma formalidade, acabei saindo com a sensação de ter presenciado outro dos grandes espetáculos da minha vida. Uma banda muito a fim, quase um "show de rock" por sua dinâmica, Ralph Hütter cheio de tesão, quase elétrico naquela sua movimentação contida. Balançou a cabeça, mexeu os ombros, bateu o pezinho e, no final, naquele momento em que os integrantes vão deixando o palco, um a um, desceu de seu posto, fez uma reverência, até sorriu e bateu no peito, agradecido, me parecendo, ali, até um pouco emocionado... Será? Será que o robô está se tornando humano? A convivência com nossa espécie teria feito com que, mesmo, uma máquina como ele adquirisse a capacidade de sentir emoções? Em época de discussões sobre Inteligência Artificial, a questão bem que procede, não. Mas como diria o policial Murphy, a propósito, um homem-robô, na frase final de "Robocop 2", "Somos apenas humanos". 

trecho de "Computer Love"

trecho de "The Robots"




★★★


A revolução das máquinas
por Daniel Rodrigues

Se me perguntassem quais shows que eu ainda gostaria de ver de artistas que estejam em atividade (ou minimamente estejam vivos), listaria alguns difíceis e outros quase impossíveis. Das possibilidades, Ministry, John Cale e Pixies são um caso. Já dos improváveis, Th’ Faith Healers, Can e My Bloody Valentine encabeçam a lista. Claro: tem aqueles grandes shows que nunca fui mas que ainda são passíveis de um dia, seja no Brasil ou numa ocasião fora do país, serem presenciados por mim, como Madonna, Björk, David Byrne, Neil Young, Stevie Wonder e os Rolling Stones, que pode ser que venham à minha terra novamente como Roger Waters, que retornará a Porto Alegre por conta das memoráveis apresentações que fez na cidade para sua despedida dos palcos em novembro.

Mas de todos estes posso dizer com tranquilidade que o que mais queria ver era a Kraftwerk, desejo que foi realizado no último dia 18, no Vivo Rio. Desejo, não: sonho. Após duas vindas dos alemães ao Brasil, uma no Free Jazz Festival de 1998, quando eu nem sequer trabalhava para custear um ingresso tão caro a São Paulo, e outra, em 2009, quando estiveram no Rio de Janeiro, em plena Praça da Apoteose. Esta sim eu lamentei por não ter ido. Mesmo com os reiterados convites do meu irmão, que foi ao show, para que eu tentasse dar um jeito de ir ao Rio, onde pelo menos pouso garantido teria, as condições financeiras da época fecharam totalmente a porta. Minha lamentação foi alimentada durante estes 15 anos que se transcorreram desde aquela última apresentação da Kraftwerk em terras tupiniquins, ainda mais quando da morte de um dos cabeças do grupo neste meio tempo, Florian Schneider, em 2020. Embora já fora da banda há algum tempo, sua morte despertou o alerta de que o outro principal integrante, Ralf Hütter, já com quase 80 anos, pudesse, pelo óbvio, também ter sua “máquina desligada”.

Com a menor atividade da Kraftwerk, pensava que, para eles retornarem ao Brasil, quiçá, somente lá em 2024 ou 25, já que, ao menos, os shows estão retornando com tudo neste pós-pandemia. Considerando que os velhinhos já puseram seus sistemas em modo slow, até seria um tempo considerável um ou dois anos para que se mexessem. Mas eis que, para minha surpresa, eles são anunciados para estrelarem o C6 Fest, no Rio e em São Paulo. E agora, primeiro semestre do ano, em maio! E mais: meu irmão iria ao show com minha mãe, que aprendeu a adorá-los conosco, e minha sobrinha, Luna, fã da banda e que presenciaria seu primeiro grande show ao vivo. Num esforço coletivo, peguei uma mesa ao lado da deles e embarquei para o Rio. Todo o empenho, expectativa e lamentação foram totalmente recompensados.

Os desenhos estilo new look
em movimento em "Autobahn"
Num formato pocket ("calculator", claro), adequado ao line-up de um festival, o quarteto liderado por Ralf entregou uma apresentação empolgante e empolgada em aproximadamente 1 hora e 20 de palco. A disposição foi a de sempre: os quatro enfileirados com roupas iluminadas em led e com suas mesas mágicas com programadores, sintetizadores, computadores e outras engenhocas saídas do estúdio Kling Klang direto de um laboratório de Düsseldorf, e, ao fundo, projeções magníficas que dialogam com os sons através de imagens, luzes, grafismos e vídeoartes. Porém, o grupo estava muito a fim e deu a plateia brasileira um espetáculo cheio de vontade e musicalidade, que se percebia no manejo altamente espontâneo dos “leitmotiv” de cada música. 

Já no repertório, somente clássicos, que se emendaram uns aos outros sem pausa para respirar e, sim, para se admirar e absorver. Foi uma sequência para tirar lágrimas de qualquer fã, a começar pelo duo “Numbers/Computer World”, na abertura e com o qual eles poderiam ficar ali no palco por 1 hora inteira só brincando com os elementos de cada música, os números e os algoritmos digitais provocando sons, que jamais cairia na monotonia. Pra acabar com o coração dos kraftwekianos, mandam na sequência uma surpreendente execução de “Spacelab”, que além de ser um barato ouvi-la ao vivo e tocada de forma tão espontânea dentro dos limites do que o aparato eletrônico permite, foi uma atração à parte sua projeção, que mostrou a viagem da nave espacial (comandada por eles, obviamente) do espaço até chegar na Rio de Janeiro e pousar em frente ao próprio Vivo Rio, para delírio da galera.

“Autobahn”, com a ideia genial de animação dos carros desenhados manualmente da capa original de 1974, e a sequência “Tour de France/ Tour de France – Etape 1 e 2", com as imagens "vintage" da tradicional volta da França para a qual eles compuseram a trilha-tema em 1983, também foi de tirar o fôlego. Igualmente, o perfect pop “The Model”; a autorreferenciativa “The Robots”, com sua arte geométrica ao estilo da escola soviética; a altamente dançante “Planet of Visions”, motivando uma arte orgânico-digital-futurista; e a apoteótica “Trans-Europe Express/Metal on Metal”, cuja viagem do trem em 3D pelos trilhos europeus acompanha um desfile de execução dos quatro, mostrando que estavam se divertindo com a energia que emanava do público.

trecho de "Tour de France"

De todas as grandes performances, talvez a mais marcante tenha sido justamente a que fechou o show: a minissinfonia “Electric Cafe”: “Boing Boom Tschak/ Techno Pop/ Musik Non Stop”. As projeções, com a estrutura dos robôs e desenhos feitos em computador, mesclado arquitetura, design, música e arte, foi um digno final. Na despedida, um a um executava improvisos (sim, improvisos!) e saí do palco, até a vez do líder Ralf, ovacionado. Não à toa: Ralf Hütter é um “computer hero”, um esteta, um gênio da modernidade.

O maior show que já vi. Um dos maiores espetáculos da Terra. Uma das mais importantes bandas da música de todos os tempos, e não apenas da música pop, isso digo com certeza. Tanto quanto obras de Bach, Mozart, Wagner, Cage, Beatles, Dylan, ColtraneJoão, a Kraftwerk é importante para a evolução da humanidade como espécie, pois que excede o patamar simplesmente artístico. Toda a parafernália tecnológica, como nossos smartphones ou aparelhos digitais que nos rodeiam, não teriam a comunicabilidade sonora que têm hoje não fosse os "homens-máquina" terem inventado esta linguagem. Somente robôs como eles teriam esta sensibilidade: a de saber como seus pares se comunicam conosco, humanos. E se a tecnologia é reflexo de nossa capacidade de criação, talvez ser robô seja o verdadeiro sentido de ser humano.

PS: De quebra, ainda levamos um showzaço da Underworld para fechar a noite, que não deixou nada a desejar para os mestres da eletrônica.

Hino autorreferente: "The Man-Machine"

Brincando com os teclados em "The Model"


Trecho da emplogante "Planet of Visions"


Um trem eletrônico passou pelo Rio: "TEE" + "Metal on Metal"


quarta-feira, 5 de abril de 2023

Música da Cabeça - Programa #313


Não precisa nem entender ideograma  pra sacar que a gente tá falando de Ryuichi Sakamoto, o genial artista japonês que perdemos esta semana. O MDC presta homenagem ao mestre destacando a sua música, mas também as de Carlos Dafé, Som Imaginário, Cássia Eller, John Cale, Sergei Rachmaninoff e outros. Lamentando as perdas, mas celebrando a arte, o programa hoje vai ao ar às 21h, na nipônica Rádio Elétrica. Produção, apresentação e konnichiwa: Daniel Rodrigues





www.radioeletrica.com

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

U2 - "Zooropa" (1993)

 

Atento, bebê?

“Quando começamos ‘Zooropa’, sugeri à banda que ficassem improvisando no estúdio regularmente. Eles haviam perdido esse hábito de improvisar e, por vários motivos, não o faziam. Então eu disse: ‘devemos imaginar que estamos fazendo trilhas sonoras de filmes hipotéticos, não fazendo músicas.’”
Brian Eno

Nunca acreditei em “Achtung Baby”, o tão celebrado disco da U2 de 1991. É este mesmo o termo: "acredito". Não se trata de "gostar", mas sim de crer. Aliás, gostar, até gosto. "One", "Until the End of the World" e “Acrobat” estão aí para provar. Porém, estas e todas as demais nove faixas de “Achtung...” são, a rigor, de longe menos inspiradas do que diversas outras da banda e, principalmente, graus abaixo do que Bono Vox, The Edge, Larry Mullen Jr. e Adam Clayton têm condições de entregar. Por que, então, falo de credibilidade e não necessariamente de qualidade? E por que abro o texto indo na contramão da maioria falando de uma obra consagrada e não daquela que motiva este artigo, “Zooropa”? Afora a ordem sucessória entre um disco e outro, é necessário que se volte alguns anos antes ao grande sucesso comercial e de crítica da U2 nos anos 90 para entender aquela que considero a maior farsa planejada da música pop moderna.

O ano é 1988. A U2 ostentava a posição de grande banda do rock internacional. Com o término da The Smiths e os às vezes errante caminhos da The Cure, a U2 somava todos os elementos para ocupar tal posição, rompendo a linha que divide o underground do início da carreira para o status de lotadores de estádio. Musicalmente, um fenômeno gerador de hits, vendas de discos e canções clássicas. Tinha um vocalista de admiráveis qualidades vocais e letrísticas, um guitar hero sofisticado e criativo e a "cozinha" mais competente do rock 80. Politicamente, foi o grupo mais engajado da sua geração. A coroação veio com “The Joshua Tree”, de 1987, que deu aos irlandeses discos de ouro, platina e diamante em vários países e um Grammy de Álbum do Ano, consolidando-os no mercado mundial com sucessos como "With ir Without You" e "I Still Haven't Found What I'm Looking For".

Arte do famigerado "Achtung...", de 1991
Ocorre que “Joshua...” é daquelas obras tão divisórias na carreira de qualquer artista, que lhes surtiu o efeito contrário. Ao invés de orientar Bono & Cia., desnorteou-os. Que rumo tomar depois de tamanho êxito comercial e artístico? O longo e irregular “Rattle and Hum”, no qual voltam os olhares para a cultura folk norte-americana, simboliza este hiato conceitual. A imagem da capa de Bono apontando o holofote para The Edge, mais do que uma mostra da saudável parceria entre ambos, simboliza uma necessidade (talvez inconsciente) de valorização da forma sobre a aparência. A U2 queria dizer que não se resumia ao Bono front man e, sim, que formavam um coletivo do qual seu guitarrista era o melhor representante. Nem todos entendiam isso, entretanto; E pior: continuavam exigindo-lhes a divindade cega atribuída às celebridades. Então, para que lado ir se já afastados da forte pegada política de “Sunday Blood Sunday” e alçados a astros planetários? Foi então que, naquele mesmo ano de 1988, a resposta se insinuou como uma solução: a fraude da dupla alemã Milli Vanilli.

Surgidos como revelação da música pop, Fab Morvan e Rob Pilatus foram acusados de não interpretarem as próprias músicas. Desmascarados, foram demitidos da gravadora que os fez vender milhões e tiveram que devolver o Grammy que venceram. Morvan e Pilatus precisaram convocar uma vexatória coletiva para confessarem que, de fato, apenas faziam playback em cima do palco e que ghostsingers cantavam por eles em estúdio. Justificaram que haviam sido recrutados pelo visual, como uma estratégia de publicidade. Bono, então, ouviu e ligou os pontos: “Fraude, Grammy, publicidade, paradas de sucesso, personagens...”. Deu-lhe um estalo: ali estava a chave para os problemas da U2.

Não é possível medir o quanto Bono ficou impactado com tal ocorrido, embora a polêmica da Milli Vanilli tenha ganhado tamanha proporção que, provavelmente, deu um sinal de alerta para qualquer um que pertencesse à indústria cultural. Bono, ao que tudo indica, perspicaz como é, captou a essência da discussão, mas injetou-lhe doses de ironia. Numa fase de “crise de identidade”, o negócio era assumir uma “não identidade”. Genial! Já distante da figura politizada que os consagrou e diante da incerteza que o estrelato provocou, a escolha da U2 foi criar uma nova imagem pública: dar vida a personagens fictícios e produzir músicas de fácil assimilação. 

Os riffs de “Achtung...”, basta notar, são bastante simples, até simplórios em alguns casos em se tratado da alta técnica de The Edge. "Who's Gonna Ride Your Wild Horses", "The Fly", "Mysterious Ways", "Tryin' To Throw Your Arms Around The World" são assim: quase sem graça. O minimalismo característico de The Edge transformou-se em preguiça. Praticamente todas as faixas têm o mesmo embalo. Mas, claro, com a caprichada produção de Brian Eno, que mascarava tudo. Além disso, fotos e clipes de Anton Corbijn, mixagem de Daniel Lanois e Robbie Adams e engenharia de som de Flood. Invólucro perfeito, como todo produto premium de supermercado. Para arrematar a traquinagem, o disco é gravado na mesma Alemanha em que David Bowie e o mesmo Eno conceberam a nova música pop no final dos anos 70. Mas também a mesma Alemanha da Milli Vanilli... 


Agora, valendo!

Jamais a U2 tinha feito algo tão raso como “Achtung Baby”, e isso queria dizer alguma coisa. O circo foi tão bem montado que, com absoluta unanimidade, todos caíram na deles. Público e crítica elevaram o disco a obra-prima mesmo sem ter um riff à altura de “Bad”, “Red Hill Minning Town”, “God Part 2”, “Like a Song...” e por aí vai. Quando um artista chega a determinado estágio, o que se espera é que, no mínimo, supere o que já fez. Mas diante da incapacidade crítica da pós-modernidade, a U2 percebeu que isso não se aplicaria a ídolos acima de qualquer suspeita como eles. Na verdade, fizeram o contrário: ao invés de evoluir, deram passos para trás, mas com muita inteligência e marketing. E ego. Bono encarnava personagens como The Fly e The Macphisto com visível falta de habilidade cênica, mas suficiente para encantar os fãs. A piada foi tão bem contada que, somado ao respeito e a credibilidade de que jamais uma banda “séria” como a U2 faria algo assim, ninguém desconfiou de nada.

Por sorte, a enganação deliberada de “Achtung...” foi, em trocadilho com o próprio título, apenas para ver se a galera estava “atenta”. Como ninguém estava, no fundo o tiro saiu pela culatra. O negócio era desistir da palhaçada e fazer algo bom novamente. Fruto de canções surgidas durante a turnê e de suspeitas “sobras” do afamado disco anterior, “Zooropa” mostra porque a U2 chegava, enfim, à maturidade. Improvisos, experimentações, ousadias, ludicidade. É possível sentir um clima de liberdade criativa em suas faixas. Se a ida para Berlim anos antes foi, como fez Bowie, para se afastar do burburinho da mídia, enfim a intenção funcionava para a U2. 

Um rápido paralelo entre as faixas de um disco e outro provam que a turma estava mesmo interessada em fazer o que sempre soube: pop-rock forjado no pós-punk, somado aos elementos do tecno, como downtemto, synth pop e experimental. Na abertura, para uma pirotécnica ”Zoo Station”, mandam ver “Zooropa”, extensa, pouco vendável, sem pressa para começar e nem para terminar. Riff bem elaborado que, lá pelas tantas, ainda sofre uma virada que acelera seu compasso, gerando quase que uma outra música. Excelente cartão de visitas para deixar claro que a U2, definitivamente, havia deixado as máscaras de mosca em segundo plano.

A melódica “Babyface”, algo semelhante em atmosfera a “So Cruel”, de “Achtung...”, faz homenagem ao músico de R&B que influenciaria bastante o som da banda naquele momento. Esta antecipa a primeira obra-prima do álbum: “Numb”. Desviando os holofotes quase monopolizados por Bono, a banda realiza de vez o que prenunciavam na capa de “Rattle...” com The Edge fazendo as vezes de protagonista. E aqui Eno, novamente recrutado como um quinto integrante, faz valer sua arte de produção. E não para “salvar” a música, mas para potencializá-la. Construtiva, a partir de uma programação eletrônica e um riff estetizado, “Numb” vai agregando elementos como bateria, efeitos de teclados, frases de guitarras, sintetizadores e contracantos, como o belo falsete de Bono dizendo versos como: “I feel numb” e “Too much is not enough”. Tão original que é sem comparação com qualquer uma de “Achtung...”.

Outra pérola: “Lemon”. Mais uma cantada em falsete, agora com Bono retomando o centro do palco, lembra “Misterious Ways” por certa latinidade da percussão de Mullen Jr. Mas apenas de longe, pois é muito melhor e bem mais elaborada. A começar pelo riff, este sim minimalista como The Edge é craque, mas saborosamente criativo, forjado apenas no efeito de pedal, que se forma através de ressonâncias. O baixo de Clayton, idem: seguro como sempre, fazendo a base perfeita para esta world music moderna. Mas principalmente: o arranjo de Eno. Nesta faixa fica evidente o quanto o papel do eterno Roxy Music foi fundamental para a retomada da U2 à sua raiz de beleza estética com liberdade e ousadia. Os coros em tom menor, com contracantos acentuados, dão um exótico ar étnico à música. Impossível não lembrar das contribuições de arranjo e melodia de Eno para a Talking Heads em “Remai in Light” (“Born Under Punches”/“Crosseyed and Painless”/”The Great Curve”), de 1980, ou músicas de seus trabalhos solo como “No One Receiving” (de “Before and After Science”, 1977).

clipe de "Lemon", com direção de Mark Neale

Já “Stay (Faraway, So Close!)”, se não supera “One”, sua mais evidente correspondente em “Achtung...”, emparelha, ainda mais porque, balada sentimental tanto quanto, faz paralelo também com outra do álbum anterior, “Until...”, pois ambas são temas de trilhas sonoras de filmes do cineasta alemão Win Wenders – neste caso, a tocante continuação de “Asas do Desejo” homônima à canção. Virando a chave, “Daddy's Gonna Pay For Your Crashed Car” devolve energia a “Zooropa” – aliás, como até então não havia ocorrido. Tecno industrial com um riff bem sacado, bateria eletrizante e uma produção, meus amigos! Que habilidade numa mesa de som tem o sr. Brian Peter George St. John le Baptiste de la Salle Eno! Ele colore a música do início ao fim, ressaltando todas as texturas e detalhes que ela tem de melhor, mas sem tirar o brilho original, deixando os louros para a performance da U2. Distantes da espetacularização da turnê Zoo TV, a banda irlandesa realmente está espetacular.

Se “Daddy’s...” lembra em certa medida “The Fly” e “Zoo Station”, de “Achtung...”, “Some Days Are Better Than Others” equivale a "Tryin' To Throw Your Arms Around The World". Novamente, contudo, vencendo a disputa. E quão simbólica a letra para aquele momento de autorreconhecimento, quase um mea culpa: “Alguns dias você usa mais força do que o necessário/ Alguns dias simplesmente nos visitam/ Alguns dias são melhores do que outros”. Já a escondida “The First Time” é uma surpresa altamente positiva, que começa com uma leve base de baixo sob a linda voz de Bono para ir ganhando, aos poucos, outros instrumentos/elementos, que lhe aumentam a emotividade. Além disso, faz analogia com “Love Is Blindness”, última do trabalho antecessor. Mas como assim, se ela não encerra “Zooropa”? Aham! A estratégia narrativa usada para gerar estardalhaço anteriormente, agora era empregada a favor da feitura da obra. “The First...” prepara o terreno para a penúltima faixa, “Dirty Day”, outra que, assim como “Zooropa”, não se apressa em começar e a se desenrolar. Pop eficiente, tem o detalhe da voz de Bono sobre todos os outros sons, como que viva diante do microfone, expediente imortalizado por Eno e pelo produtor Tony Visconti em “Heroes”, de Bowie, em 1978, daquela mesma inspiradora fase alemã do Camaleão do Rock. 

Eno com Edge e Bono em estúdio
dando as coordenadas pra banda
Toda essa construção narrativa, quase como a de um filme ou de uma ópera-rock (seria a tragédia do famigerado personagem The Fly?), converge para um gran finale: “The Wanderer”. Pode ser que tenha sido coisa de Bono ou dos outros integrantes da U2, mas ninguém me tira da mente que a ideia de chamar o mitológico Johnny Cash para cantar triunfalmente a última faixa do disco foi de Eno. A base totalmente em teclados, contrastando com o estilo country-folk orgânico de Cash, dão uma clara pista de que a música surgiu desta ideia central pensada por ele. O estilo melódico, a reelaboração modernista do rock 50, os coros estilo Phil Spector, o refrão com melodia emotiva terminado em uma nota baixa e melancólica... Tal “The River”, de Eno e John Cale, tal “Golden Hours”, do seu solo “Another Green World”. Muita coincidência. Ou a U2 emulou Eno, ou essa música, meus amigos, é de Eno com participação da U2! O que, na verdade, é uma prova de grandiosidade da banda, que soube abrandar os egos e delegar a alguém um fator importante da obra, mas sem perder sua marca própria. Isso se chama maturidade.

E quanta beleza em “The Wanderer”! Escritos para o barítono embriagado Cash, os versos (de Bono, credite-se) largam dizendo: “I went out walking/ Through streets paved with gold/ Lifted some stones, saw the skin and bonés/ Of a city without a soul” (“Eu saí caminhando/ Pelas ruas pavimentadas com ouro/ Levantei algumas pedras, vi pele e ossos/ De uma cidade sem alma”). Uma clara referência ao clássico “Walked in Line”, imortalizada na voz do errante Homem de Preto, mas também à própria consciência da U2 pelas perigosas trilhas da fama. “The Wanderer” ainda serviu como uma homenagem em vida a Cash. Eterno outsider e já no ostracismo naqueles idos, ele viria a se revitalizar como artista e gravar seus últimos álbuns na série “American”, morrendo 10 anos depois daquela gravação (a versão definitiva de “One”, aliás, é de seu “American III”, de 2000). Um digno final de disco da U2, o mais tocante e melhor de sua discografia, mais bonito até do que “MLK” encerrando “The Unforgatable Fire” ou do que “All I Want Is You” fechando “Ratlle...”. Um final para desfazer mal-entendidos e enterrar qualquer piada de mal gosto que um dia tenham feito.

clipe de "The Wanderer", com participação de Johnny Cash

“Zooropa”, o melhor disco da banda em toda a década de 90 e seu último grande álbum, completa 30 anos de lançamento. Isso nos leva a deduzir que, há três décadas, a U2 desfazia um erro grotesco chamado “Achtung Baby” para, responsavelmente para com sua própria obra, dignidade e reputação, conceber “Zooropa”. O processo de concepção conduzido por Eno, livre das amarras do enterteinment e voltado às origens deles como músicos, foi tão rico, que rendeu, dois anos depois, o ótimo “Passengers: Original Soundtracks 1”, em que encarnam com humildade a inédita nomenclatura para compor trilhas sonoras para diversos filmes. Um pouco do que já era “Zooropa”: uma narrativa, uma história.

O certo seria Bono, Edge, Mullen Jr., Clayton e Eno, assim como fez a Milli Vanilli no passado, chamar a imprensa para uma coletiva e confessarem o engodo de "Achtung Baby" – de preferência, em Berlim, cidade acostumada a reconstruções e onde a farra foi cometida. Mas isso jamais acontecerá. Para mim, contento-me em ouvir “Zooropa” e saber que ele veio reestabelecer minha relação com a U2, o que vinha gradativamente perdendo força e sofrera considerável abalo quando do meu desmascaramento solitário. “Zooropa”, com sua força e identidade, zerou tudo. A U2 está para sempre desculpada.

***********

FAIXAS:
1. Zooropa - 6:30
2. Babyface - 4:00
3. Numb - 4:18
4. Lemon - 6:56
5. Stay (Faraway, So Close!) - 4:58
6. Daddy's Gonna Pay For Your Crashed Car - 5:19
7. Some Days Are Better Than Others - 4:15
8. The First Time - 3:45
9. Dirty Day - 5:24
10. The Wanderer - 5:42
Todas as composições de autoria de Bono Voz, The Edge, Larry Mullen Jr. e Adam Clayton

***********
OUÇA O DISCO


Daniel Rodrigues