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segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Th’ Faith Healers - "Lido" (1992)

 

"Eu estava dirigindo para o meu trabalho estúpido e me vi preso em um engarrafamento gigantesco na estrada. De repente, algo novo flutuou sobre as ondas do rádio... um vocal feminino rosnado e sensual serpenteando em uma batida thumpa-thumpa... furtivo, legal... De repente a coisa toda se tornou selvagem. A cantora sibilou entre os dentes, as guitarras (soavam como 50 delas) gaguejavam e cuspiam, e a maldita coisa toda entrou em hiperdrive. A tempestade se estabeleceu em um ritmo pesado, hipnótico e caótico ao mesmo tempo, a música se agitou e se agitou e só terminou quando caiu no chão com um estrondo. Meu trabalho (e o resto do dia), desnecessário dizer, empalideceu em comparação com esse ataque auditivo. Totalmente perfeito... Eu estava apaixonado."
Dave Ehrlich, músico e produtor


A música é das poucas coisas nesse mundo capazes de me provocar paixões arrebatadoras. E que podem acontecer a qualquer momento. Se ainda é assim comigo hoje com todos os recursos e facilidades que a internet traz, imagine-se antigamente, antes da era digital, quando muita coisa era de difícil acesso, se não, impossível. Tudo era mais complicado e mágico. Podia estar a qualquer lance no rádio, na tevê, nas revistas, nos sebos, na discoteca de amigos e familiares. Pois houve um tempo, nos anos 90, em que um desses locais de pesquisa e reconhecimento eram as locadoras de CD’s. A pouca grana que dispunha de mesada ou estágios mal remunerados era boa parte reservada a gravar em K7 as coisas que vasculhava nas prateleiras das locadoras reforçando antigas paixões e descobrindo novas. Numa dessas ocasiões, lá pelos idos de 1994, uma se revelou para mim. 

Logo que entrei na loja, num início de tarde de um sábado, notei que estava rodando, como sempre faziam, algo interessante, mas que não conhecia. Aliás, não conhecia, mas reconhecia ali elementos que me agradavam muito. Rock alternativo forjado nas guitarras distorcidas, base de baixo bem pronunciada, vozes masculina e feminina se intercalando, bateria forte marcando um ritmo pulsante. Algo entre o indie, o shoegaze, o dream pop, o college, o experimental e o noise rock. Era atmosférico, ruidoso, visceral, melodioso... Lembrava muito Sonic Youth, mas não era, isso eu tinha certeza. Havia algo de Lush, de My Bloody Valentine, de Pixies, mas também dava para ver que não era nenhum deles. De boas, o rapaz da loja me sanou a dúvida: “é este CD aqui”. A capa em si me chamou atenção: uma foto vintage de um camping e as letras em fonte de máquina de escrever, tipo Courier New, escrito apenas o nome do disco e da banda cujo artigo “Os” (“The”), vinha sem a letra “e”: apenas “Th". Era um detalhe, mas muito esquisito e interessante. Tudo aquilo, som, estilo, atmosfera, me cativaram imediatamente. Pronto: paixão. Deu tempo de escolher algum outro disco para levar, mas, claro, não poderia deixar de adicionar à minha sacola também “Lido”, aquele álbum do grupo de rock alternativo londrino ao qual acabava de conhecer Th’ Faith Healers, formado por Roxanne Stephen e Tom Cullinan, nos vocais e guitarras; Ben Hopkin, baixo, e Joe Dilworth, bateria.

Como grandes bandas do underground dos anos 90, a Th’ Faith Healers, tal a Whale, a The La’s e a brasileira 3 Hombres, tem uma carreira curtíssima, mas totalmente assertiva. Tanto que talvez goste até mais do segundo e último disco de estúdio deles, “Imaginary Friend”, de 1994, o qual me motivou, inclusive, a concepção de um conto literário, “Heart Fog”, baseada na música homônima, presente na antologia “Conte uma Canção – Vol. 2”, publicada em 2016 pela Multifoco. Mas “Lido”, além de estar completando 30 anos de seu obscuro lançamento, lá nos idos de 1992, guarda consigo a primazia de ser o trabalho inaugural da banda e o que me fez descobri-la. Além de, claro, merecer estar nesta lista de fundamentais, inclusive já tendo sido responsável pelo primeiro nome do Clyblog, que se chamou por um breve espaço de tempo, em 2008, pelo nome da sua última faixa, a apoteótica “Spin ½”, uma minissinfonia de guitarras altamente distorcidas de quase 10 minutos com samples que sobrevoam, batida cadenciada e loopada a e voz de Roxanne cantarolando um único verso: “Into the sea you must be in the water”. Hipnótica, sensual, inebriante, caótica, tempestuosa, onírica, algo hinduísta. Uma oração ruidosa e barulhenta de um dos melhores finais de discos do rock de todos os tempos, sem exagero.

Mas voltemos ao começo com a música que me fez vidrar na Faith Healers logo que os escutei: “This Time”. Exemplar no que se refere ao estilo da banda, tem letra curta, geralmente repetida várias vezes (“Let's do it, whereby/ this time, you die/ if not, quite soon/ maybe by this afternoon”), como um mantra nas vozes em uníssono de Roxanne e Cullinan, sobre uma massa de ruídos eletrificados. O minimalismo abre espaço para o experimentalismo e, principalmente, as melodias muito bem criadas pela banda. Pode ser um riff simples, repetido, dissonante, mas invariavelmente muito inspirado, de quem sabe o que está fazendo e explora suas bagagens musicais.

Bem produzidos por eles próprios, os Faith Healers exploram ao máximo na faixa "A Word of Advice" os detalhes do som metalizado das guitarras, enquanto as vozes, despretensiosas, cantam sem muito alarde. Isso, até a música explodir no refrão em barulho. A mixagem orgânica da gravação, sensível a qualquer ruído, dá a sensação de uma banda tocando ao vivo, inclusive na captação dos "defeitos", como o do som de um nariz aspirando o ar, o que lembra o conceito de produção de Flood para PJ Harvey em “To Bring you my Love”, de três anos mais tarde. Parecido com este trabalho de PJ também é “Hippie Hole”. Pós-punk com umas quebradas funkeadas, traz essa fórmula sintética infalível da Faith encapsulada por uma timbrística cirurgicamente suja. Nela, aliás, Roxanne canta com fúria, com o microfone rascante, longe da sutileza desafetada do começo.

Com subidas e descidas (ao paraíso da melodia e ao inferno do barulho), “Don’t Jones Me” retraz a letra sucinta que mais serve de cama para o rock livre da Faith, espécie de Can dos anos 80. Aliás, o clima é bastante parecido com esta e outras bandas da kratrock alemã, como a Neu! e a Harmonia. Não à toa eles versam a clássica alternativa “Mother Sky” da Can, a qual ouvi com os ingleses primeiro. Embora a original seja incomparável, até pela ousadia visionária dos alemães, a leitura da Faith Healers é daquelas que não deixam a desejar. Coisa de banda realmente identificada com seus ídolos, como a Living Colour fez para com “Memories Can’t Wait”, da Talking Heads, ou a Nirvana com “The Man Who Sold the World”, de David Bowie.

“Repetile Smile” e “Moona-Ina-Joona”, na sequência uma da outra, têm riffs tão consistentes quanto improváveis. Ninguém, não fosse uma banda forjada na sonoridade atípica do shoegaze e com referências muito próprias, ousaria criar. Que sonzeira! Se em “Moona...” valem-se do uníssono infalível de “This Time” e "A Word...”, em “Repetile...” é a voz sensual e cativante de Roxanne que prevalece. Ela sabe que não é uma grande cantora. Mas quem disse que é esta a intenção? Aliás, é justamente esta postura insolente roqueira que faz com que ela passeie naturalmente por diferentes formas de cantar com um lirismo espontâneo e encantador. É isso que se vê na balada "It's Easy Being You", a mais “calma” do disco (embora também não se contenham em adicionar guitarras pesadas bem ao final): um timbre jovem e solar. Porém, já na rascante “Love Song”, que de balada romântica só tem o nome, ela vai do doce à sujidade. Principalmente no refrão, quando sua garganta faz soltar gritos carregados de tesão e lamento.

Quando conheci a Th’ Faith Healers, Sonic Youth, Pixies, My Bloody Valentine, Lush, The Breeders e muitas outras bandas já eram realidade para os meus ouvidos. Tanto que ouvi-los não foi uma novidade e, sim, um reconhecimento. Neles eu ouvia todas essas bandas e conseguia entender com mais acuidade aquilo que a Velvet Underground propunha 30 anos antes – inclusive, nas dobradinhas das vozes de Cale e Reed com a de Moe Tucker. Com a Th’ Faith Healers eu descortinaria a Can, tão fundamental para o rock moderno. E descobri depois, que não fui apenas eu que me surpreendi com a Th’ Faith Healers na primeira vez que os escutei, bem como que havia uma legião de fãs escondida nos subterrâneos da internet com relatos muito parecidos com o meu. Mas o mais importante foi a descoberta de que, para mim, a Th’ Faith Healers era a banda que eu sempre gostei, mas não sabia ainda. Era como se eles já estivessem na minha vida desde sempre: bastava apenas que eu me deparasse com aquele CD rodando na locadora para que este laço nunca mais se desfizesse.

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FAIXAS:
1. "This Time" (Tom Cullinan/ Th' Faith Healers) - 05:09
2. "A Word of Advice" - 06:22
3. "Hippy Hole" - 03:20
4. "Don't Jones Me" - 06:18
5. "Reptile Smile" (Th' Faith Healers) - 04:57
6. "Moona-Ina-Joona" (Cullinan/ Th' Faith Healers) - 03:14
7. "Love Song" (Cullinan/ Th' Faith Healers) - 05:38
8. "Mother Sky" (Holger Czukay/ Michael Karoli/ Jaki Liebezeit/ Irmin Schmidt/ Damo Suzuki) - 04:17
9. "It's Easy Being You" - 02:12
10. "Spin 1/2" - 09:34
Todas as composições de autoria de Tom Cullinan, exceto indicadas


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Daniel Rodrigues

terça-feira, 7 de julho de 2015

cotidianas #380 - “Heart Fog” vazando




manipulação digital sobre foto de
Leocádia Costa
Horário de pico, entrou no metrô quase arrastado pela multidão na estação já pelo meio do trajeto do trem. Seu objetivo de vida ficava uma estação antes do fim da linha e chamava-se “casa” – pelo menos naquele fim de tarde frio e chuvoso, depois de um dia puxado no trabalho. Como faltava um bom tempo ainda para chegar, procurou naquele aperto um espaço para se acomodar, equilibrando-se minimamente entre tantos que faziam o mesmo. Parou de frente a uma moça e um rapaz que, sentados, conversavam animadamente. “Bem bonita”, pensou. Tipo executiva, cabelo aloirado preso no coco sem soltar nenhum fio sequer, maquiagem em dia mesmo no fim de tarde, tailleurzinho risca-de-giz cinza. Muito elegante, ou seja: “não é pro meu bico”, arrematou para si em cima imediatamente. “Seriam namorados os dois?”, ocorreu-lhe.
Não valia a pena interessar-se. Um chinelão indie e pobretão como ele jamais despertaria algo numa mulher como aquela. Tornou, então, a se concentrar no seu objetivo-fim de retornar para o sossego do lar. Porém, não demorou muito para a cena roubar-lhe a atenção de novo. Percebeu que, realmente, não eram namorados, embora a intenção disso provavelmente passasse pela cabeça do interlocutor. Afinou o ouvido e, como suspeitava, viu que conversavam sobre relações, namoros, ex-namorados, pegas, festas, paqueras, ficantes, coisas afins. Eram estudantes de Direito indo para a aula noturna na Universidade Católica, captou. Também percebeu que não trabalhavam juntos: ela, estagiária em um escritório de advocacia no Centro; o outro, um tipo engomadinho e metidinho, embora a empáfia fosse de advogado formado também estagiava num escritório – pelo que entendeu, num dos grandes da cidade.
Deu ainda para atinar que a moça bonita tinha um ex de quem falava mal e que, até onde pegou a conversa, dera nele um pé na bunda há mais de um ano. O rapaz, em contrapartida, enrolado no próprio ego, já tinha namorado várias colegas do escritório e da faculdade (a Fabi, a Márcia, a Katiuscia e a Lê foram os nomes que conseguiu reconhecer) e, ainda que reclamasse que sempre terminava por culpa delas, estava estampado na cara que se vangloriava da quantidade de casos. A moça, entretanto, mesmo que não fosse colega de trabalho ou de aula – o que não deu para ele pescar – era sem dúvida um alvo, afinal, se abordavam aquele tipo de assunto tão tranquilamente, sem ressalvas nem melindres, era porque talvez houvesse interesse de ambos e porque não havia ocorrido ainda nada entre os dois. Ficou feliz quando percebeu que ela não nutria as mesmas intenções para com o tal semiadvogado metido a besta, e isso não pelo o que ouvira, mas pelo o que sentiu no ar. Mas a conversa, essa sim, a absorvia: linda, soltava risinhos de vez em quando, mudava a expressão conforme o tema, formava uma covinha na bochecha direita quando ria, piscava os olhos para começar a falar, ouvia de boca aberta quando se impressionava... “Uma graça...”.
Entretanto, o cansaço do trabalho no restaurante do dia o fez voltar a seus botões novamente. Ordenou-se: “Deixa eles que eu tenho mais do que cuidar”. A mãe e os dois cachorrinhos lhe aguardavam em casa como todos os dias. Embora seu ouvido atento naturalmente captasse acontecimentos externos como aquele bate-papo, queria mesmo era esvaziar a cabeça. E para um roqueiro como ele, que escondia por debaixo do uniforme os braços inteiramente tatuados, a melhor maneira de desopilar é ouvindo rock ‘n’ roll. E alto! Assim, enquanto os dois seguiam ali trocando palavras aos montes, sacou de um dos bolsos da mochila o fone de ouvido, que acoplou ao celular para ouvir música no restante do trajeto. Buscou na playlist Th’ Faith Healers, disco “Imaginary Friend”, dos seus preferidos. “Alternative rock da melhor qualidade!”, animava-se mentalmente, orgulhoso de certamente ser o único em todo o metrô a conhecer uma banda dessas. Pôs para rolar no volume máximo, o que lhe levou imediatamente para um outro mundo de guitarras, pedais de distorção, vozes, batidas, baixos, melodia, poesia. Amava aquele grupo. Dos companheiros de viagem à sua frente, nem interessava mais o que diziam. Via apenas suas bocas se mexerem, as covinhas dela se formarem quando sorria, as piscadas mais demorados quando falava (provavelmente de algo que lhe afligia), as viradas de olhos (sabe-se lá por qual motivo). Tudo ao som de Th’ Faith Healers, como uma trilha sonora ruidosa e melodiosa. Parecia que, a partir do momento que enfiou os fones, a cena daquela conversa corriqueira e sem graça diante dele transformara-se num videoclipe bastante poético.
Próximo à estação de acesso à universidade, viu, imerso na massa sonora de "Sparklingly Chime", que abre o disco, ela falando algo para o advogadinho, que trocou com ela dois beijinhos para depois pegar a mochila e se despedir. Para sua surpresa, ela permaneceu sentada, olhando para baixo, como que resignada. Parecia ter ficado chateada sem o companheiro de viagem, o qual teve seu lugar ocupado imediatamente por um dos vários passageiros. Ele manteve-se de pé à frente dela, mais porque o vagão não esvaziou do que por querer necessariamente ficar ali. Ela não levantou em nenhum momento a cabeça e nem o viu. Obviamente, uma moça daquele alto nível não tinha como notá-lo, um estranho sem sentido para ela tal como todos os outros ali no vagão.
Ela levanta-se ao sinal sonoro da estação seguinte. Educadamente, ele deu espaço para que passasse. Foi quando, de repente, ela lhe olha, mira-o por alguns segundos e diz alguma coisa. Claro que ele não entendeu bulhufas, pois, além de ela ter falado baixo, o volume nas alturas não deixava que ouvisse nada além do que o fone lhe fornecia. Viu apenas uma boca carnuda e rosada de batom gesticular-lhe algo. Franziu o cenho como que perguntando: “O que é?” Ela, então, repetiu mais pausadamente o que dissera na primeira vez (ainda sem ser ouvida, por sinal) adicionando à sua comunicação, entretanto, o gesto de apontar com o indicador para o ouvido. “Ops!”, deu-lhe um estalo: não se trata da um aviso fortuito: “Ela quer me dizer algo mesmo!” De modo a entendê-la, então, tirou o fone direito, que emitia agora no ar um ruído quase indefinível da música que seguia rolando enquanto o outro fone continuava ensurdecendo seu ouvido esquerdo:
- Sim?
- “Heart Fog”, né? – perguntou ela.
Não compreendeu logo de cara a pergunta, talvez porque fosse absolutamente improvável que aquela executiva linda do mundo das leis e dos códigos corretos da sociedade conhecesse como ele, um chinelão indie e pobretão, o Th’ Faith Healers e tivesse, ainda, identificado justamente a segunda faixa do disco que ele escutava, coisa que provavelmente ninguém naquele trem, naquele bairro, naquela cidade fizesse ideia do que se tratava. Impossível. Seria surreal. Ela, contudo, querendo fazer-se entender antes de descer do metrô, prosseguiu:
- Entendeu o que eu disse? É “Heart Fog” mesmo que você tá escutando?
- É... é... sim. – forçou-se a responder num tom besta, pois ainda mais impressionado agora (embasbacado, na real), pois ela estava se referindo, sim, à mesma coisa que ele. “Incrível!”
- Cara, eu adoro eles também! Logo percebi que era essa que você tava escutando quando passei perto de ti. Tá tão alto teu fone que dá pra ouvir o som aqui de fora, reh reh reh.
Ele riu também, misto de encabulado e orgulhoso, baixando, então, o volume para continuar a conversa.
- Eu gosto muito do Th’ Faith Healers.
- Sim, Th’ Faith Healers com o “the” sem a letra “e” e aquela apóstrofe esquisita! – lançou ela, animada; e não a animação que ele observara quando a viu conversando anteriormente, mas uma animação verdadeira – O “Imaginary Friend” é demais! Sabe, prefiro ainda o disco “Lido”, mas esse é muito bom também. E minha preferida é justo essa, “Heart Fog”! Que coincidência, cara!  “Heart fog/ seems so cold to me/ feels so insecure”. – cantarolou um pedaço.
- Sim! –, disse, já contagiado pela animação, porém, visto que o ponto final dela se aproximava, antevendo a perda da presença daquela entidade surreal que lhe aparecera, da nova colega de fã-clube. Ainda surpreso, mas ciente de que presenciava um momento especial em sua vida tão monótona e repetitiva, ele, antes de conseguir articular uma fala que a contivesse ali, viu que o trem já começava a frear para parar na estação. Um bolo de pessoas se acumulou diante da porta para retornar ao frio da rua, enquanto ele lhe olhava com olhos desorientados e infantis, sabendo não ter mais tempo de continuar o papo healeriano naqueles poucos segundos em contagem regressiva que restavam.
Abriu-se a porta automática, subiram pessoas, desceram outras. Mas ela não se movia.
- Você não vai descer? – indagou ele sem entender, antes de a porta se fechar.
- Sabe o que é: já matei a aula hoje, mas também não tava a fim de ir direto pra casa. E agora me bateu uma vontade de ouvir Faith Healers...
Saiu daquele rosto mal barbeado que o cabelo desgrenhado cobria em parte um sorriso entendedor e contente. A porta se fechou e o trem seguiu em direção à próxima estação.


***



terça-feira, 26 de agosto de 2008

Spin1/2


O blog já mudou de nome, já virou ClyBlog, mas mantenho esta postagem como marco do início de uma ideia. Uma deia meio sem ideia no início mas que aos poucos foi evoluindo para um projeto pessoal muito legal e que me dá muita satisfação em tocar pra em diante. Em relação ao que foi escito na época desta postagem, só muda o nome e o fato de que agora meu computador tem os acentos. De resto, a proposta é a mesma: muita arte, música, livros, opiniões, textos, poemas, crônicas, contos, um futebolzinho de vez em quando e tudo mais que der vontade de fazer. enfim, um espaço livre.
Eis a primeira postagem do ClyBlog.




Olá! Nunca tive um blog, entao e' meio estranho nao saber a quem estar se dirigindo, se e' que estarei me dirigindo a alguem. Na verdade, em primeiro lugar estou escrevendo para mim, e acho que todo mundo que tem um blog, o faz mais para si, mesmo.

Spin 1/2 na verdade e' o nome de uma m'usica dos Th' Faith Healers, da qual gosto demais. Demais, mesmo!!! E achei legal pra ser o nome do meu blog.

A proposito dos Healers, e' uma banda que lembra um pouco o Sonic Youth, tambem tem vocais feminino e masculino assim como elese faz aquela linha noise, experimental mas com linhas bem melodicas, por vezes.

A cancao em questao e' do album chamado "Lido" (capa ai' ao lado), que eu descobri meio que por acaso e acabei ficando vidrado nele.

Pra quem gosta dessa linhagem de bandas, vale conferir.

Esta e' uma postagem mais para apresentacao, mas vou falar aqui de tudo: de musica que eu adoro, de filmes, de livros, de futebol, as vezes vou postar so' pra fazer um comentariozinho bobo, as vezes pode ser uma opiniao seria sobre algum assunto relevante.

Nao quero regras!

O Spin 1/2 e' pra ser meu espaco livre.

Espero que meus visitantes apreciem, comentem e visitem sempre.


Eis minha primeira postagem.




terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Sarau de leitura “Conte uma Canção – vol. 2” – Multifoco Bistrô – Rio de Janeiro/RJ


Os autores pousando para as lentes na fachada do Bistrô Multifoco.
A ocasião era oportuna: meses após o lançamento da antologia "Conte Uma Canção - vol.2", da editora Multifoco, na qual participamos meu irmão Cly Reis e eu cada um com um conto, estaríamos juntos no Rio de Janeiro, sede da editora. Então, por que não fazermos um encontro que abordasse isso? Foi o que aconteceu no dia 16 de dezembro. A partir de uma ideia de Leocádia Costa, que nos deu o privilégio de fazer as honras, realizamos um sarau de leitura de ambos os contos no bistrô da própria Multifoco, na Lapa.

Lemos na íntegra, alternando as vozes de personagens e narrador, tanto "Heart Fog", de minha autoria e baseado numa canção da banda de rock alternativo Th’ Faith Healers, quanto "O Filho do Diabo", do Cly, este, criado sobre um antigo blues de Robert Johnson: “Me and my Devil Blues”.

Para isso, contamos com a ilustre participação da atriz e amiga Luciana Zule, que muito gentilmente aceitou nosso convite de dividir conosco a leitura dos textos. Num clima bastante intimista, reunimos familiares e amigos num momento muito agradável, que contou com um bate-papo descontraído ao final. Abaixo, um pouco do que aconteceu nos registros feitos por Leocádia.




Os irmãos ensaiando antes do sarau.

Repassando o texto agora com nossa convidada Luciana Zule.

Leocádia fez as honras da abertura do sarau.

A leitura começou.

"Heart Fog" sendo lido aos convidados.

Ouvintes atentos.

Carolina e Luna, ilustres convidadas.

Agora é Luciana quem assume o papel de narrador
para a leitura de "O Filho do Diabo".

Cly acompanha a leitura de seu conto.

Plateia segue atenta.

O ator Eduardo Almeida nos deu a felicidade da sua presença também.

Luninha abrilhantando a tarde do sarau.

Luciana usando seu dom cênico para a leitura.

Segue a leitura...

Chegou mais gente para ouvir.

A foto coletiva, repleta de literatura e amor.





por Daniel Rodrigues


sexta-feira, 2 de setembro de 2016

“Conte uma Canção – vol. 2”, organização Frodo Oliveira e Marla Figueiredo (Vários autores) – Ed. Multifoco (2016)




“A música é uma das formas de expressão
 mais fantásticas e antigas que a humanidade já criou.
Talvez tenha nascido da observação dos sons da natureza, não se sabe ao certo,
 mas desde a pré-história o homem foi despertado para a necessidade de
 organizar uma sequência de sons e silêncios que
pudesse ser apreciada, entendida e praticada.
Desde então ela vem sendo criada e executada
por todos os povos e culturas da Terra.
O segundo volume da antologia ‘Conte uma Canção’
(traz) histórias tristes, histórias com finais felizes,
histórias que assustam, histórias que excitam, histórias reais,
 histórias nascidas da imaginação dos nossos autores,
aqui não importa o gênero ou tipo de narrativa.
O que importa é que são histórias que,
as músicas que as inspiraram, emocionam.”
texto de apresentação do livro
na contracapa



Já está nos pontos de venda a antologia “Conte uma Canção – vol. 2”, pela editora Multifoco, da qual meu irmão e editor deste blog, Cly Reis, e eu, subedidor, fazemos parte com um conto cada um. O livro teve lançamento no último dia 30, durante a 24ª Bienal do Livro de São Paulo, no Anhembi.

O conto de Cly, intitulado "O Filho do Diabo", é certamente um dos melhores de sua profícua produção contística. Por conta do recorte temático, a ligação da narrativa com uma música, seu conto tenha se beneficiado com isso, haja vista ser ele um grande admirador e conhecedor da arte musical. No caso, o blues, que sei que é um dos estilos de sua predileção. Sobre uma canção do guitarrista norte-americano Robert Johnson, um dos precursores do blues, dos anos 20, Cly cria uma história bastante envolvente e até assustadora em que um homem misterioso bate à porta do protagonista cobrando-lhe uma “dívida” que este nem imaginava ter. A associação da história com a canção, “Me and the Devil Blues”, é não só muito pertinente e sacada como, no contexto, bastante literária, uma vez que se aproveita de toda a atmosfera mística e mítica que envolve o músico, o qual se diz ter pactuado com o Tinhoso e, por conta disso, tivera tamanho talento mas, em contrapartida, morrido cedo e de forma misteriosa. A vida imita a arte.

Já o de minha autoria"'Heart Fog' vazando", se vale de uma música de uma banda de indie rock inglesa dos anos 90, a Th' Faith Healers. Desconhecida fora do meio alternativo, cultuada por este público (dentro do qual me incluo), vali-me, assim como Cly o fez, deste elemento mítico em torno do grupo, porém de uma forma diferente. Misto de fábula urbana e história romântica, “Heart...”, assim como “O Filho...”, já havia sido publicado no blog, porém, advirto que, tanto um quanto o outro valem a pena ser lidos a versão do livro, mais aperfeiçoadas para a editoração.

Organizado por Frodo Oliveira e Marla Figueiredo, além de nós dois, claro, há outros autores, tão merecedores de menção quanto, somando 21 textos no total. São eles: Jojo Corrêa, L.P.S. Mesquita, Manoella Treis, Micael Pinto de Almeida, Misa Ferreira, Nair Palhano, Nonato Costa, Rogério Rodrigues, Tatiana Aline Santana, Valdileia Coelho, Alice Ferreira, Antonio Oliveira, Antonio Sodré, Claudio Lopes de Araujo, Cris Caetano, Di Onísia, Emilene Salles e Fernando Aires, além do próprio Frodo.

Ficamos devendo uma análise mais completa da obra toda, mas por ora vai esse quase teaser para despertar o interesse dos leitores. Abaixo um trecho de cada um dos nossos contos presentes na antologia “Conte uma Canção – vol. 2”:

“Quem seria àquela hora?
As batidas insistentes à porta interrompiam sua habitual sesta, da qual não abria mão, principalmente naquela época do ano em que fazia muito calor. Lidara a manhã inteira no campo em seu pequeno pedaço de terra defendido pela mãe com tanta luta naquelas terras hostis do Sul e que conseguia manter a tanto, e agora que conseguia descansar o corpo exausto um inconveniente vinha incomodá-lo. Quem seria?”
Trecho de “O Filho do Diabo”, de Cly Reis


“Horário de pico, entrou no metrô quase arrastado pela multidão na estação já pelo meio do trajeto do trem. Seu objetivo de vida ficava uma estação antes do final da linha e chamava-se ‘casa’ (...) Como faltava um bom tempo ainda para chegar ao destino, procurou naquele aperto um espaço para se acomodar, equilibrando-se minimamente entre tantos que faziam o mesmo. Parou de frente a uma moça e um rapaz que, sentados, conversavam animadamente. ‘Bem bonita’, pensou. Tipo executiva, cabelo aloirado preso no coco sem soltar nenhum fio sequer, maquiagem em dia mesmo no fim de tarde, tailleurzinho risca-de-giz cinza. Muito elegante, ou seja: ‘não é pro meu bico’, arrematou para si em cima imediatamente. ‘Seriam namorados?’, ocorreu-lhe.”
Trecho de “’Heart Fog’ vazando”, de Daniel Rodrigues







quarta-feira, 1 de maio de 2019

Música da Cabeça - Programa #108


Não tem controvérsia e nem voltar atrás com o que se pensa: aqui é Música da Cabeça mesmo! O programa completa 2 anos firme em suas ideias, como as de hoje: Kraftwerk, Caetano Veloso, Th Faith Healers, George Duke, Paul McCartney e mais. Ainda, homenagem à Madrinha do Samba Beth Carvalho, que nos deixou, e a o setentão Paulo César Pinheiro. Todos os palhaços armamentistas vão ter que aguentar, pois hoje tem MDC na Rádio Elétrica, às 21h, com produção e apresentação de Daniel Rodrigues - e sem cancelamento.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Música da Cabeça - Programa #322

 

Se o clima de Dia dos Namorados ainda está no ar, aqui ele permanece em forma de música. Sente só se não é de se apaixonar: Adoniran Barbosa, Th' Faith Healers, Sean Lennon, Novos Baianos e Roberto Carlos. Não tô dizendo que é puro amor? Somando a isso, ainda tem quadros, letra e... mais música. Então, entregue-se de corpo e alma ao MDC, às 21h, na arrebatada Rádio Elétrica. Produção, apresentação e coração preenchido: Daniel Rodrigues


www.radioeletrica.com

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Música da Cabeça - Programa #166


Retomada das atividades? Aqui no MDC a gente não para nunca! Hoje, mais um programa repleto daquilo que a gente mais gosta: música. E também não tem essa de restrição a nenhum segmento! Aqui, entra todo mundo. Pois tem o tropicalismo de Caetano e Gil, o rock indie da Th’ Faith Healers, o samba-canção de Gal Gosta, a soul de Ike White, o pós-punk da Public Image Ltd. e a batucada de Carmen Miranda. Ainda, para completar, a vanguarda eletrônica de Delia Derbyshire, no quadro “Cabeção” e muito mais. Vem por teu EPI – quer, dizer fone de ouvido – e retomar as atividades ouvindo o programa às 21h, na desinfectada Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. Estamos contigo, Marrom.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

segunda-feira, 29 de maio de 2023

CLYLIVE Especial de 15 anos do ClyBlog - Kraftwerk - C6 Fest - Vivo Rio - Rio de Janeiro/ RJ (18/05/2023)

 



Somos apenas humanos
por Cly Reis



Há 15 anos atrás tinha o privilégio de assistir a um show do Kraftwerk. Desde então, tive, para mim, a convicção de que havia presenciado o melhor show de minha vida. Até por conta disso, não  tinha a intenção de vê-los ao vivo novamente. Pra que? Já  havia me satisfeito e, provavelmente, não  seriam melhores do que foram naquela vez.

Só que o tempo passou e, dentro desses 15 anos que me separam daquele show, tive uma filha. Ela tem 11 anos hoje e, ao longo de sua formação musical, sem que eu forçasse, sem que eu influenciasse decisivamente, acabou por adorar Kraftwerk. E eis que, eu que já me dava por satisfeito por tê-los visto uma vez, descubro que os caras vêm pro Brasil de novo! Eu tinha que levar minha filha para ver. Não sei se, a essas alturas, eles vêm de novo, se vão continuar fazendo turnês, se Ralph Hütter não vai pendurar as chuteiras, ou mesmo se sua "bateria" ainda vai durar por muito mais tempo, uma vez que, brincando brincando, já são 76 anos nas costas ("toc, toc", batendo na madeira). Era agora ou, possivelmente, nunca mais.

Então fiz o "esforço" de ir ao show no C6 Fest. Sinceramente, fora o fato da oportunidade de minha filha ter essa experiência, não guardava maiores expectativas. Imaginei que, velhinhos, com a vida ganha, com um repertório incontestável, depois de várias passagens por aqui, os homens-máquina fossem entrar no palco só pra cumprir tabela: aquele showzinho burocrático, tipo entro lá, ligo a programação eletrônica, cumpro uma horinha de show, ganho minha grana vou embora...

Que nada!

Os caras tavam pilhados!

Um show dinâmico, com espontaneidades, "improvisos", uma pedrada emendando na outra e, mesmo dentro daquele tradicional comedimento dos alemães, uma certa animação e uma movimentação incomum, especialmente do líder e fundador Ralph Hütter.

"Numbers" que abriu o show, combinada com "Computer World" já foi algo espetacular, musical e visualmente, com as impressionantes projeções sincronizadas no telão. "Spacelab" a seguiu trazendo a todos a surpresa da homenagem ao Rio de Janeiro, no telão,  com a nave do Kraftwerk sobrevoando a cidade e pousando em frente ao Vivo Rio, levando o público à loucura. E teve uma "The Model" empolgante, "Autobahn" reinventada, muito mais livre e quase espontânea, "The Man-Machine emocionante, "Trans-Europe Express" arrasadora, um medley das partes de "Tour De France" e um gran-finale com uma "Music Non Stop" descontraída e cheia de pequenas variações. Senti falta, é verdade, de "Radioactivity" que podia muito bem ter entrado no lugar de "Planet of Visions", mas nada que desvalorize tudo o que acontecera lá. 

Para quem achava que já havia visto o suficiente da banda, que era dispensável assistir a outro show, que eles estariam apenas cumprindo uma formalidade, acabei saindo com a sensação de ter presenciado outro dos grandes espetáculos da minha vida. Uma banda muito a fim, quase um "show de rock" por sua dinâmica, Ralph Hütter cheio de tesão, quase elétrico naquela sua movimentação contida. Balançou a cabeça, mexeu os ombros, bateu o pezinho e, no final, naquele momento em que os integrantes vão deixando o palco, um a um, desceu de seu posto, fez uma reverência, até sorriu e bateu no peito, agradecido, me parecendo, ali, até um pouco emocionado... Será? Será que o robô está se tornando humano? A convivência com nossa espécie teria feito com que, mesmo, uma máquina como ele adquirisse a capacidade de sentir emoções? Em época de discussões sobre Inteligência Artificial, a questão bem que procede, não. Mas como diria o policial Murphy, a propósito, um homem-robô, na frase final de "Robocop 2", "Somos apenas humanos". 

trecho de "Computer Love"

trecho de "The Robots"




★★★


A revolução das máquinas
por Daniel Rodrigues

Se me perguntassem quais shows que eu ainda gostaria de ver de artistas que estejam em atividade (ou minimamente estejam vivos), listaria alguns difíceis e outros quase impossíveis. Das possibilidades, Ministry, John Cale e Pixies são um caso. Já dos improváveis, Th’ Faith Healers, Can e My Bloody Valentine encabeçam a lista. Claro: tem aqueles grandes shows que nunca fui mas que ainda são passíveis de um dia, seja no Brasil ou numa ocasião fora do país, serem presenciados por mim, como Madonna, Björk, David Byrne, Neil Young, Stevie Wonder e os Rolling Stones, que pode ser que venham à minha terra novamente como Roger Waters, que retornará a Porto Alegre por conta das memoráveis apresentações que fez na cidade para sua despedida dos palcos em novembro.

Mas de todos estes posso dizer com tranquilidade que o que mais queria ver era a Kraftwerk, desejo que foi realizado no último dia 18, no Vivo Rio. Desejo, não: sonho. Após duas vindas dos alemães ao Brasil, uma no Free Jazz Festival de 1998, quando eu nem sequer trabalhava para custear um ingresso tão caro a São Paulo, e outra, em 2009, quando estiveram no Rio de Janeiro, em plena Praça da Apoteose. Esta sim eu lamentei por não ter ido. Mesmo com os reiterados convites do meu irmão, que foi ao show, para que eu tentasse dar um jeito de ir ao Rio, onde pelo menos pouso garantido teria, as condições financeiras da época fecharam totalmente a porta. Minha lamentação foi alimentada durante estes 15 anos que se transcorreram desde aquela última apresentação da Kraftwerk em terras tupiniquins, ainda mais quando da morte de um dos cabeças do grupo neste meio tempo, Florian Schneider, em 2020. Embora já fora da banda há algum tempo, sua morte despertou o alerta de que o outro principal integrante, Ralf Hütter, já com quase 80 anos, pudesse, pelo óbvio, também ter sua “máquina desligada”.

Com a menor atividade da Kraftwerk, pensava que, para eles retornarem ao Brasil, quiçá, somente lá em 2024 ou 25, já que, ao menos, os shows estão retornando com tudo neste pós-pandemia. Considerando que os velhinhos já puseram seus sistemas em modo slow, até seria um tempo considerável um ou dois anos para que se mexessem. Mas eis que, para minha surpresa, eles são anunciados para estrelarem o C6 Fest, no Rio e em São Paulo. E agora, primeiro semestre do ano, em maio! E mais: meu irmão iria ao show com minha mãe, que aprendeu a adorá-los conosco, e minha sobrinha, Luna, fã da banda e que presenciaria seu primeiro grande show ao vivo. Num esforço coletivo, peguei uma mesa ao lado da deles e embarquei para o Rio. Todo o empenho, expectativa e lamentação foram totalmente recompensados.

Os desenhos estilo new look
em movimento em "Autobahn"
Num formato pocket ("calculator", claro), adequado ao line-up de um festival, o quarteto liderado por Ralf entregou uma apresentação empolgante e empolgada em aproximadamente 1 hora e 20 de palco. A disposição foi a de sempre: os quatro enfileirados com roupas iluminadas em led e com suas mesas mágicas com programadores, sintetizadores, computadores e outras engenhocas saídas do estúdio Kling Klang direto de um laboratório de Düsseldorf, e, ao fundo, projeções magníficas que dialogam com os sons através de imagens, luzes, grafismos e vídeoartes. Porém, o grupo estava muito a fim e deu a plateia brasileira um espetáculo cheio de vontade e musicalidade, que se percebia no manejo altamente espontâneo dos “leitmotiv” de cada música. 

Já no repertório, somente clássicos, que se emendaram uns aos outros sem pausa para respirar e, sim, para se admirar e absorver. Foi uma sequência para tirar lágrimas de qualquer fã, a começar pelo duo “Numbers/Computer World”, na abertura e com o qual eles poderiam ficar ali no palco por 1 hora inteira só brincando com os elementos de cada música, os números e os algoritmos digitais provocando sons, que jamais cairia na monotonia. Pra acabar com o coração dos kraftwekianos, mandam na sequência uma surpreendente execução de “Spacelab”, que além de ser um barato ouvi-la ao vivo e tocada de forma tão espontânea dentro dos limites do que o aparato eletrônico permite, foi uma atração à parte sua projeção, que mostrou a viagem da nave espacial (comandada por eles, obviamente) do espaço até chegar na Rio de Janeiro e pousar em frente ao próprio Vivo Rio, para delírio da galera.

“Autobahn”, com a ideia genial de animação dos carros desenhados manualmente da capa original de 1974, e a sequência “Tour de France/ Tour de France – Etape 1 e 2", com as imagens "vintage" da tradicional volta da França para a qual eles compuseram a trilha-tema em 1983, também foi de tirar o fôlego. Igualmente, o perfect pop “The Model”; a autorreferenciativa “The Robots”, com sua arte geométrica ao estilo da escola soviética; a altamente dançante “Planet of Visions”, motivando uma arte orgânico-digital-futurista; e a apoteótica “Trans-Europe Express/Metal on Metal”, cuja viagem do trem em 3D pelos trilhos europeus acompanha um desfile de execução dos quatro, mostrando que estavam se divertindo com a energia que emanava do público.

trecho de "Tour de France"

De todas as grandes performances, talvez a mais marcante tenha sido justamente a que fechou o show: a minissinfonia “Electric Cafe”: “Boing Boom Tschak/ Techno Pop/ Musik Non Stop”. As projeções, com a estrutura dos robôs e desenhos feitos em computador, mesclado arquitetura, design, música e arte, foi um digno final. Na despedida, um a um executava improvisos (sim, improvisos!) e saí do palco, até a vez do líder Ralf, ovacionado. Não à toa: Ralf Hütter é um “computer hero”, um esteta, um gênio da modernidade.

O maior show que já vi. Um dos maiores espetáculos da Terra. Uma das mais importantes bandas da música de todos os tempos, e não apenas da música pop, isso digo com certeza. Tanto quanto obras de Bach, Mozart, Wagner, Cage, Beatles, Dylan, ColtraneJoão, a Kraftwerk é importante para a evolução da humanidade como espécie, pois que excede o patamar simplesmente artístico. Toda a parafernália tecnológica, como nossos smartphones ou aparelhos digitais que nos rodeiam, não teriam a comunicabilidade sonora que têm hoje não fosse os "homens-máquina" terem inventado esta linguagem. Somente robôs como eles teriam esta sensibilidade: a de saber como seus pares se comunicam conosco, humanos. E se a tecnologia é reflexo de nossa capacidade de criação, talvez ser robô seja o verdadeiro sentido de ser humano.

PS: De quebra, ainda levamos um showzaço da Underworld para fechar a noite, que não deixou nada a desejar para os mestres da eletrônica.

Hino autorreferente: "The Man-Machine"

Brincando com os teclados em "The Model"


Trecho da emplogante "Planet of Visions"


Um trem eletrônico passou pelo Rio: "TEE" + "Metal on Metal"