“A voz de Deus”
como a imprensa britânica,
entusiasticamente apelidou
Liz Fraser quando do aparecimento da banda
Em “Head Over Heels”, segundo álbum o caminho começava a ser
encontrado, as programações ainda estavam lá e ainda soavam frias, os climas
ainda eram sombrios, mas já se notava uma evolução compositiva significativa e
sobremaneira uma maior leveza na condução da vocalista, de evidente capacidade até então subexplorada. Mas era então em “Treasure”, de 1984, que o milagre acontecia e
aquela abertura de álbum, com a voz semi-soprano de Liz Fraser surgindo doce e
frágil, como que levantando do horizonte, anunciava que os Cocteau Twins
encontravam o caminho que seguiriam dali para frente com cada vez maior apuro e
perfeição técnica, desenvolvendo como nenhuma outra banda uma música de climas
etéreos, incorpóreos, imateriais.
Com uma bela levada de violão à espanhola , “Ivo” tem uma
interpretação envolvente e apaixonada de Fraser, fazendo nos refrões algo
parecido com pequenos e graciosos soluços. “Lorelei” que a segue é alegre, fresca, cheia de sinos e
pirilampos, enfeitando suas variações e brincadeiras vocais. Num clima todo
clerical, “Beatrix”, com seus teclados sacros sobre uma notável linha de baixo
de Simon Raymonde, traz a voz de Liz Fraser no máximo de seu potencial
operístico, nesta que é uma das canções mais arrepiantes do disco.
Num álbum cujas canções levam títulos que remetem a seres
fantásticos, lendas celtas ou personagens mitológicos, “Persephone” (a deusa
dos mundos inferiores na mitologia grega) é uma pequena viagem ao inferno, lembrando
muito a sonoridade do primeiro disco, “Garlands”, com programação de bateria
dura, forte, pesada, marcada, indesmentivelmente eletrônica, mas aqui
claramente com uma intenção formal mais consolidada. Montando uma atmosfera
toda sombria e claustrofóbica, somados à batida fria, a guitarra de Robin Guthrie
aparece mais ruidosa que nunca, o baixo de Raymonde cria uma espécie de camada
sonora e Liz Fraser canta desesperada e angustiadamente, no limite entre o belo
e o trágico.
“Pandora”, a outra deusa grega do disco, ao contrário da anterior, é como uma brisa amena, como uma fonte de água cristalina, como uma
chuva de verão, tal a leveza da guitarra de Guthrie e a beleza dos vocais
sobrepostos, ecoados e misturados de Fraser, cantando versos ininteligíveis,
palavras inexistentes ou meras vocalizações de sonoridade interessante.
Num fado valseado que caracterizaria bem o som da banda dali
para a frente, “Amelia”, apaixonante, traz mais uma interpretação de tirar o
fôlego de Miss Fraser, cantarolando sem letra e explorando toda sua capacidade praticamente de cantora clássica.
“Cicely” é mais crua, com a bateria eletrônica soando dura;
“Aloysius” tem uma bela melodia de escala decrescente de guitarra; e a nebulosa “Otterley”
é praticamente sussurrada sobre leves dedilhados de violão, antecipando a
sonoridade que seria tônica no trabalho seguinte, “Victorialand”.
“Donimo” anuncia o final do com a voz de Liz emergindo com
uma doçura incrível, depois florescendo em sons até atingir um êxtase de
emoção num final mais que digno para um disco como este.
Embora a banda não morra de amores pelo álbum, penso que a
partir dele é que o trio escocês escreveu seu nome na história do rock com uma
linguagem absolutamente singular. Muitos trabalham essa linha etérea, muitos a
linha pop-lírico, alguns se parecem, alguns tantos como Lush, Bat for Lashes,
St. Vincent, The Moon Seven Times, surgiram por causa deles; mas nenhum deles conseguiu colocar todos os ingredientes de melancolia, beleza, dramaticidade,
paixão, dor, magia, juntos com tamanha perfeição como os Cocteau Twins. E isso,
aliado à unidade sonora que conseguem, a essa assinatura inconfundível que criaram
no universo pop, somando-se à voz de qualidades únicas e incomparáveis de Liz
Fraser, garante a eles seu lugar de respeito no mundo da música e o de
“Treasure” entre os FUNDAMENTAIS.
FAIXAS:
- "Ivo" – 3:53
- "Lorelei" – 3:43
- "Beatrix" – 3:11
- "Persephone" – 4:20
- "Pandora (for Cindy)" – 5:35
- "Amelia" – 3:31
- "Aloysius" – 3:26
- "Cicely" – 3:29
- "Otterley" – 4:04
- "Donimo" – 6:19
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Ouça:
Merecida menção ao "Treasure". Talvez até tenham outros tão bons quanto, "Blue Bell Knoll" ou "Milk and Kisses", mas o "Treasure" é realmente um marco. Baita disco.
ResponderExcluirO "Blue Bell Noll" certamente no futuro deverá figurar por aqui também.
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