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segunda-feira, 18 de novembro de 2024

João Gilberto - “Live at The 19th Montreux Jazz Festival” (1985)

 

No topo, capa do LP original
lançado no Brasil e, abaixo,
a da edição americana

“É a grande soma da obra de João Gilberto. É o disco que dá a visão mais ampla da ideia que ele tem de repertório, de estilo”.
Caetano Veloso

Os baianos, mais do que qualquer outra gente, são donos de uma genialidade que às vezes beira a ingenuidade. Caetano Veloso conta que, certa vez, ao visitar Dorival Caymmi em sua casa numa quente tarde de Salvador, o anfitrião mal o deixou entrar pelo portão e já se pôs a mostrar-lhe uma novidade que havia descoberto para aliviar aquele intenso calor. Levou, então, Caetano até a sala e solenemente lhe apresentou sua mais nova obra de engenharia doméstica: havia disposto a cadeira na qual estava sentado só de bermuda e chinelos feito um Buda nagô de frente para um... ventilador! 

Por mais óbvio que pareça o raciocínio de Caymmi, ele guarda, no fundo, uma percepção que, muitas vezes, foge aos mortais preocupados em complexar a vida: a simplicidade. Foi valendo-se do mesmo senso natural que outro baiano favorecido pelos Céus, João Gilberto, chegou a uma conclusão semelhante. Além daquilo que produzia nos invariavelmente indispensáveis discos de estúdio desde o final dos anos 50, João costumava reinventar seu repertório a cada nova apresentação ao vivo. Geralmente, só ele é o inseparável violão. Uma magia inimitável a qualquer outro momento da história da música moderna. Então, do fundo de sua cabeça privilegiada mas distraída, pensou: "porque não gravo um disco ao vivo que transmita essa atmosfera?" 

Sim, passados mais de 30 anos de carreira, João nunca havia feito um álbum neste formato. Tinha até então dois ao vivo, todos com parcerias e/ou bandas/orquestra acompanhando: "Getz/Gilberto #2", em companhia do saxofonista de jazz norte-americano Stan Getz, de 1965, e o especial da TV Globo "João Gilberto Prado Pereira de Oliveira", de 1980, no qual recebe vários convidados. Assim, só ele no palco, nunca.

O que parecia óbvio, por se tratar da essência do som do homem que inventou a moderna música brasileira com a concepção da bossa nova, ganhava, enfim, um registro fiel. Já havia se tornado comum a artistas brasileiros a partir dos anos 70 gravarem seus shows no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, desde que a curadoria do evento se abrira para a sonoridade da MPB como sendo cabível no gênero do "jazz moderno". De A Cor do Som a Elis Regina, passando por Gilberto Gil, Pepeu Gomes e Hermeto Pascoal. Faltava João.

E o Bruxo de Juazeiro não deixa por menos. Com seu repertório impecável selecionado cirurgicamente, une velhos sambas, como os de Ary Barroso, Haroldo Barbosa, Geraldo Pereira e Wilson Batista, a então novos clássicos. Melhor exemplo é "Menino do Rio", de Caetano, lançada em 1979 pelo autor e já versada pelo próprio João um anos depois. Mas ocorreu que a música fizera novamente muito sucesso em 1982 na voz de Baby Consuelo para a trilha do filme homônimo, e João, ao resgatá-la, transformava-a imediatamente de um hit para um clássico. 

João destila musicalidade. É tocante ouvir o trato de cada detalhe, de cada pronúncia, de cada acorde ou silêncio. A permanente confluência harmonia-melodia, as variações de ritmo, o casamento de cordas vocais e cordas de nylon num constante entendimento, entrelaçando-se, dançando. "Tim Tim Por Tim Tim", conhecida do repertório de João, abre com um verdadeiro show de gingado. Quem escuta ele tocando e cantando com tamanha naturalidade pode até pensar que se trata de um improvido. Mas o mais impressionante de João é que tudo aquilo faz parte de um exercício de controle absurdo, e ao vivo isso fica mais evidente. As soluções harmônicas, as escolhas de tempos, a voz afinadíssima mas sem vibrato, o controle da cadência, o que arpejar e o que silenciar: tudo se resolve ali, na hora, no palco, diante do microfone e da plateia. 

O público, neste show, aliás, merece uma atenção à parte. Até mais: merece também aplausos. Visivelmente formada por muitos brasileiros, mas certamente também por suíços e outros estrangeiros, na maioria da Europa, a plateia se emociona e transmite essa emoção para o artista, que retribui, numa corrente de energia poucas vezes vista ou perceptível em discos ao vivo. João brincando de "quém quém" ao cantar "O Pato" ou sambando com a voz em "Sem Compromisso" não deixam mentir. Mas, principalmente, "Adeus América". O samba de Haroldo Barbosa, escrito para outro símbolo mundial do Brasil (o maior deles), Carmem Miranda, como uma declaração de amor ao Brasil após ela ser tachada pelos compatriotas invejosos de "voltar americanizada" dos Estados Unidos, aqui soa (e ainda mais aos brasileiros da plateia) como um canto de exílio, um canto de saudade da terra mater. “Não posso mais, que saudade do Brasil/ Ai que vontade que eu tenho de voltar/ Adeus América, essa terra é muito boa/ Mas não posso ficar porque/ O samba mandou me chamar”. É certamente o momento mais emocionante do show, como talvez nenhuma outra gravação ao vivo de João neste ou noutros discos.

Há também a apropriação "mpbística" do jazz standart italiano "Estate", presente no memorável LP "Amoroso", de 1977, e, claro, a reverência à bossa nova. Mais precisamente, a Tom Jobim. Do maestro, João toca quatro das 15 do set-list: "Retrato em Branco e Preto", dois ícones da primeira fase bossanovista, "Garota de Ipanema" e "Desafinado"; e uma imbatível "A Felicidade", menos recorrente no repertório de João e até por isso ainda mais impactante.

Outro maestro, no entanto, é exaltado por João na histórica apresentação no 19º Festival de Montreux. Cabe ao legado de Ary Barroso fechar o show com três faixas: "Morena Boca de Ouro" e outras dois símbolos de brasilidade em música: as ufanistas "Isto Aqui o que É?" e aquele que é considerado o segundo hino da nação, "Aquarela do Brasil", numa execução de quase 10 minutos. João, que a havia protagonizado no disco "Brasil", de quatro anos antes e quando teve a companhia de Caetano e Gil para interpretá-la, encara aqui a empreitada sozinho. Coisa só de quem tem a mesma envergadura da própria música que entoa.

Prestes a completar 40 anos de seu lançamento, “Live at The 19th Montreux Jazz Festival” guarda a primazia de ser a primeira gravação fiel de um show de João Gilberto, abrindo caminho para vários outros que viriam nos anos seguinte e dos quais destacam-se pelo menos dois: “João Gilberto In Tokyo”, de 2004, e “Live At Umbria Jazz”, de 2002. No entanto, este registro evidentemente possui uma aura e uma importância especial. Mesmo que na maioria dos discos, inclusive os de estúdio, João fosse captado “just in time” pelas mesas de som, no palco não há o que editar ou refazer. É aquele pulsar orgânico e indelével. E no caso de João, isso vale mais do que o silêncio, como diz Caetano. 

E dizer que João levou mais de duas décadas para deixar essa óbvia joia da cultura brasileira para a posteridade... Às vezes, a obviedade é mesmo genial.

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Originalmente lançado no Brasil e no Japão em 1985 como LP duplo de 15 faixas, "Live At The 19th Montreux Jazz Festival", na versão norte-americana, de um ano após, chamou-se apenas de "Live In Montreux" e contendo 13 músicas: sem "Tim Tim Por Tim Tim", "Desafinado" e "O Pato" e tendo acrescida "Rosa Morena" (Dorival Caymmi).

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FAIXAS:
1. “Tim Tim Por Tim Tim” (Geraldo Jacques, Haroldo Barbosa) - 3:38
2. “Preconceito” (Marino Pinto, Wilson Batista) - 2:25
3. “Sem Compromisso” (Geraldo Pereira, Nelson Trigueira) - 4:05
4. “Menino Do Rio” (Caetano Veloso) - 3:45
5. “Retrato Em Branco e Preto (Antonio Carlos Jobim, Chico Buarque) - 6:36
6. “Pra Que Discutir Com Madame?” (Haroldo Barbosa, Janet de Almeida) - 6:25
7. “Garota De Ipanema” (Antonio Carlos Jobim, Vinicius De Moraes) - 3:42
8. “Desafinado” (Antonio Carlos Jobim, Newton Mendonça) - 4:53
9. “O Pato” (Jaime SIlva, Neuza Teixeira) - 6:08
10. “Adeus América” (Geraldo Jacques, Haroldo Barbosa) - 6:50
11. “Estate” (Bruno Brighetti, Bruno Martino) - 5:18
12. “Morena Boca de Ouro” ((Ary Barroso) - 5:37
13. “A Felicidade” (Antonio Carlos Jobim, Vinicius De Moraes) - 5:10
14. “Isto Aqui, O Que É? (Sandália de Prata”) (Ary Barroso) - 6:43
15. “Aquarela Do Brasil” (Ary Barroso) – 9:05



Daniel Rodrigues


segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Wayne Shorter - "Etcetera" (1980)

 


Acima, a capa criada em 1965 com 
arte de Patrick Roques e foto de Francis
 Wolff, e, abaixo, a arte para o
lançamento póstumo, em 1980 
“Minha ambição desde o início como engenheiro de gravação era capturar e reproduzir a música melhor do que outros na época. Fui levado a fazer a música soar mais próxima da maneira como soava no estúdio. Essa era uma luta constante - fazer com que os eletrônicos capturassem com precisão o espírito humano.”
Rudy Van Gelder

Destacar como exemplo um trabalho de Rudy Van Gelder, que completou um século de nascimento no último dia 2, é impossível. Ele é a mente e as mãos que moldaram a sonoridade da música mais avançada do mundo, o jazz, ao longo de quatro décadas. O talento de gênios como John Coltrane, Thelonious Monk, Tom Jobim, Don Cherry, Sonny Rollins e Miles Davis certamente não seriam transmitidos com a mesma fidelidade entre aquilo que foi pensado e o que foi gravado não fosse este judeu ex-optometrista nascido em Nova Jersey (EUA) e apaixonado por jazz desde a adolescência, nos anos 30 de Era do Jazz. Dono de uma técnica refinada e própria de engenharia e a masterização de som, Van Gelder, entre outras inovações, foi o pioneiro no uso de técnicas de captação próxima, limitação de pico e saturação de fita para imbuir a música com uma sensação adicional de imediatismo. Sua estética de gravação é dotada de uma inconfundível acústica. Límpida, elegante e orgânica.

Após montar um pequeno estúdio na casa dos pais, na metade dos anos 40, foi na década seguinte que ele passa a realizar as gravações para o selo Vox Records. Um de seus amigos do meio do jazz, o saxofonista Gil Mellé, apresentou-o, em 1953, a Alfred Lion, cabeça da Blue Note Records. Em 1959, muda, então, o Van Gelder Studio para o lendário endereço na Englewood Cliffs, onde assina, por diversas gravadoras como Prestige, Verve, A&M, CTI e, claro, a própria Blue Note, centenas de trabalhos, grande parte deles clássicos absolutos da história da música moderna, como “Maiden Voyage”, de Herbie Hancock, “A Love Supreme”, de Coltrane, ”Walkin'”, de Miles, e “Song for my Father”, de Horace Silver.

São tantas realizações de Van Gelder, que seria impossível resumir em apenas uma. No entanto, “Etcetera”, do saxofonista e compositor Wayne Shorter, é certamente uma dessas extraordinárias joias modeladas por Van Gelder. Gravado na fase áurea de Shorter pela Blue Note, em meados dos anos 60, embora tenha permanecido inédito até 1980, traz na banda Hancock, ao piano; Joe Chambers, bateria, e Cecil McBee, baixo. Há muito considerado um dos melhores álbuns de estúdio do artista, “Etcetera” tem cinco composições de autoria de Shorter, com exceção de “Barracudas” de Gil Evans, um extenso tema modal com atuação especialmente destacável para um possuído Hancock em estado de graça.

A faixa-título, no entanto, encarrega-se de abrir o álbum dando as cartas: jazz modal pós-bop capaz de hipnotizar o ouvinte. Misto de tensão e enigma, “Etcetera” tem incursões esparsas do piano e do sax, que mantém um diálogo o tempo todo. Sustentado pelo chipô e variações tam-tam/caixa de Chambers (que, aliás, encerra a faixa com um excelente solo, cuja espontaneidade Van Gelder soube ressaltar), é mais uma prova do quanto Shorter entende de como abrir bem um disco, assim como os imediatamente anterior “JuJu”, na faixa homônima e também de 1965, e posterior, “Speak no Evil”, de 1966, com a fenomenal “Witch Hunt”.

Balada como só os mestres do jazz sabem compor e executar, “Penelope” é mais do que cativante:  é estonteante. Quanta sensualidade no sax de Shorter! E que leveza do piano até bem pouco de notas carregadas por Hancock na faixa anterior. Aqui, ele equilibra o tempo cadenciado do compasso, enquanto McBee se encarrega de apenas conduzir a saudável lentidão, como um sono prazeroso. Chambers quase se cala, não fosse os leves chispados das escovinhas na caixa da bateria.

“Indian Song”, na sequência, ocupa o lugar especial no cancioneiro de Shorter como uma de suas composições mais intensamente hipnotizantes. Dividida em duas partes, carrega a atmosfera oriental que o músico expressava com frequência desde que se identificou com essa cultura, no início daquela década. "Mahjong", de “JuJu”, e "Charcoal Blues", de “Night Dreamer”, não deixam mentir. “Indian...” também evoca as tradicionais faixas de encerramento de discos de Shorter, invariavelmente a mais rebuscada dos álbuns, tal “Playground” (de “Schizophrenia”), "Armageddon" (de “Night...”) e “Mephistopheles” (“The All Seeing Eye”),

O encontro de Van Gelder com os músicos do jazz é, certamente, um dos maiores acontecimentos da história da música moderna. A técnica, como em raros outros momentos, unia-se de forma amalgamada a uma grande profusão de expressões do mais alto nível musical proporcionadas pelo jazz a partir dos anos 40 nos Estados Unidos. Shorter, foi um desses beneficiados: sua arte maior pode, por obra deste talentoso engenheiro de som com sensibilidade de artista chamado Rudy Van Gelder, ser transmitida com precisão diante daquilo que criou. 

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FAIXAS:
1. “Etcetera” - 5:17
2. “Penelope” - 6:44
3. “Toy Tune” -7:31
4. “Barracudas (General Assembly)” (Gil Evans) - 11:06
5. “Indian Song” - 11:37
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter, exceto indicada

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Sean Lennon - “Friendly Fire” (2006)

 

"Quando eu era jovem, me preocupava com a estética do inacabado, do feito em casa. Mas com ‘Friendly Fire’ resolvi ver se conseguia fazer algo refinado. Optei por uma estética mais elegante e elaborada".
Sean Lennon

Lá fora no oceano que veleja afora/
Eu quase não posso esperar/
Para te ver mais velho/
Mas eu acho que vamos apenas ter que ser pacientes/
Porque o caminho é longo
”. 
Trecho de "Beautiful Boy", escrita para Sean 
por John Lennon em 1980, ano de sua morte

A vida de Sean Lennon é, mesmo que ele não queira, sui generis. Dono do sobrenome mais pesado entre os mortais, Ono Lennon, ele carrega a herança genética e cultural de dois ícones mundiais. Ímpar, aliás, também é seu destino. Além da rara coincidência de nascer exatamente na mesma data de seu pai, hoje, 9 de outubro, a quem, por óbvio, guarda muita semelhança, teve a infância marcada pelo trauma do assassinato do mesmo, quando tinha apenas 5 anos. Hoje, faz 49, enquanto seu pai, morto há pouco menos de 34, completaria 84 se vivo. Em contrapartida, à base de muita dor, Sean contou também com a proteção da mãe. 

Nesta redoma, não demorou muito para que o rapaz com cara de John Lennon de olhos puxados percebesse que a hereditariedade lhe favorecia. Afeito às artes visuais mas, principalmente, à música, aos 7 já participava cantando na faixa-título do disco da mãe “It's Alright (I See Rainbows)”, de 1982, com quem, aliás, contribuiria ainda diversas vezes noutros trabalhos. Mas não só com Yoko Ono: hábil em vários instrumentos e na mesa de som, tocaria com e produziria diversos outros artistas, como Cibo Matto, Lenny Kravitz, Miley Cyrus, Carly Simon, Soufly e Tom Zé, até lançar, aos 21 anos, seu primeiro disco solo, o excelente “Into the Sun”. Cristalizava-se ali um talento nato.

Mas a vida de Sean é mesmo fadada ao incomum. Herdeiro e administrador da mais valiosa obra musical do século XX, o milionário Sean não tem a menor necessidade de viver de música, o que por si só o diferencia de qualquer outro cidadão do planeta. A forma de conciliar a comodidade financeira à pulsão natural em produzir foi a escolha de fazer só aquilo que gosta e quando quer. Tanto é que, hoje, com mais de 40 anos de vida artística, Sean soma, afora trilhas sonoras e contribuições a outros artistas, apenas três álbuns solo. Para que ele entre num estúdio e grave algo seu tem que valesse a pena de verdade. Caso de “Friendly Fire”, de 2006.

Para falar desse disco e o que o motivou, contudo, precisa-se voltar um ano antes de sua gravação. A vida de Sean, como dito, anda por linhas tortas. E o que é mais passível de desgovernar o caminho de alguém? Se não a morte, o amor. No caso, o que se abateu sobre Sean foram as duas coisas. O melhor amigo, Max LeRoy, e a então namorada de Sean, Bijou Phillips, estavam envolvidos em um triângulo amoroso. Quis o destino que, tragicamente, LeRoy morresse em 2005, num acidente de trânsito, antes que os amigos pudessem se reconciliar. Claro, que o namoro também acabou. Autobiográfico, “Friendly Fire”, assim, carrega-se do profundo efeito que a morte de LeRoy teve sobre Sean, que com esse combustível compõe um dos discos mais doloridos e bonitos da música pop recente. 

Ao estilo de “discos de separação” como “Blood on the Tracks”, de Bob Dylan, neste trabalho é outra referência a um corte físico e emocional que Sean suscita, visto que ainda mais profundo. O “fogo amigo” tanto pode ser entendido como uma traição quanto como a ação fatal de alguém, LeRoy, que se autopenalizou por um erro da pior maneira possível. “Dead Meat”, título de uma das melhores faixas do álbum e responsável por abri-lo de forma melancólica e carregada, fala dessa ferida exposta, como um coração dilacerado, como uma “carne morta”. Os acordes iniciais são o toque valseado de piano tão circense quanto choroso, como se um clown desgraçado e ridículo entrasse no picadeiro para gargalharem de sua figura miserável. Tamanha é a força da música que, ao soar a orquestra ao final, intensa e emocionada, tem-se a clara impressão de que o álbum está terminando.

Sean mostrava que, em 8 anos desde seu primeiro disco, muita coisa havia mudado. Mudara, literalmente, do quente para o frio. Ao invés de se aquecer “através do sol” (“Into the Sun”), esse mesmo calor havia se convertido num “fogo amigo” que conduz à gélida morte, como um tiro que se leva de um companheiro sem intenção de ferir. Mas que fere. Até as capas são vinho e água: numa, o desenho de Sean sorridente sob o tom quente da cor laranja; no outro, um autorretrato de poucos traços de um rapaz sério em um fundo massivamente branco, sem vida. Isso tudo, claro, se reflete nos sons. Ao contrário da luminosidade experimental do trabalho de estreia, a escolha para representar esse novo momento é o refinamento pop, como que tomado pela impassibilidade e pelo assombro. Este é o caso também de "Wait for Me", cujo título dispensa explicações. “Algum lugar por entre a lua e o mar/ Eu estarei esperando por você, meu amor/ Então, espere por mim”, diz a letra deste pop-folk classudo forjado no violão, lembrando coisas nesse estilo de John com os Beatles (“I’m Only Sleeping” e “Cry Baby Cry”) ou solo (“Look at Me”).

"Parachute", outra preciosidade de “Friendly...”, é, quiça, a mais deprê de todo o disco, o que não significa que, nem por isso, Sean recaia ao enfadonho. Balada bela e lamentosa, não à toa foi o hit do disco, tendo o ajudado a alcançar o posto 152 na parada Billboard 200. Refrão marcante e delicado, daqueles que Sean, atento ao aspecto emocional das canções, sabe fazer como ninguém. Mesmo caso da faixa-título: melodia dolorida, mas que pega. Num arranjo perfect pop, as sentidas palavras de Sean dizem: “Você lançou o ataque com a primeira bola de canhão/ Meus soldados estavam dormindo/ Eu sei que você pensou que nunca iria cair/ No último minuto/ É fogo amigo”. Mesmo que inconscientemente, o amigo, ao morrer, se culpabiliza mas se vingou ao mesmo tempo. É perceptível o abatimento na voz de Sean, como se não quisesse ter que cantar aquilo. Mas há-lhe um impulso interno mais forte, que se impõe.

E quando Sean olha para o amanhã? O mesmo vazio. O blues “Tomorrow” desenvolve-se suave sobre essa desesperança. Outra balada cortante, "On Again Off Again", é mais uma prova da habilidade musical de Sean em criar canções tocantes e saborosas ao mesmo tempo. Na sequência, certamente a mais “alto astral” do repertório: "Headlights". Batida de violão, palmas marcando o ritmo, escala em lá maior. Mas alegre até por aí, visto que, nas palavras, Sean está dizendo que “a vida é apenas morrer lentamente”.

Versão de Marc Bolan, "Would I Be the One", pode-se dizer daqueles covers tão legais quanto a música original, do início dos anos 70. Afinal, parece uma música composta pelo próprio Sean, o que acaba por dar ainda mais coesão a um repertório tão pessoal. Igualmente down e comovente, como todo o restante, inclusive do tema de encerramento: a balada "Falling Out of Love". Outra título autoexplicativo. “Por favor, eu te esquecerei/ Não vou deixar você entrar no meu coração/ Eu te deixei esperando/ Esperando na escuridão/ Está tudo desmoronando”. É de cortar o coração. Sean está processando o luto de dois amores: o da namorada e o do amigo. 

Uma matéria da época do lançamento de “Friendly...” disse com assertividade: “a apresentação imponente dessas 10 músicas desmente seu tema recorrente: ser filho de uma lenda do rock'n'roll e de uma matriarca de vanguarda não torna sua vida romântica mais fácil”. De fato, ninguém escapa dos desafios do coração. Mas ainda mais certo é que, Sean, sensível e talentoso músico como cedo já demonstrava, consegue entregar um material tão sofisticado e bem elaborado desse momento de sua vida, que, ao final, soa como algo positivo, engrandecedor. Da tragédia, a beleza. Qualidade de quem aprendeu, já criança, a ressignificar a dualidade vida e morte para trilhar seu caminho único e intransferível.

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FAIXAS:
1. "Dead Meat" - 3:37
2. "Wait for Me" - 2:39
3. "Parachute" - 3:19
4. "Friendly Fire" - 5:03
5. "Spectacle" (Lennon, Jordan Galland) - 5:24
6. "Tomorrow" - 2:03
7. "On Again Off Again" - 3:18
8. "Headlights" - 3:16
9. "Would I Be the One" (Marc Bolan) - 4:58
10. "Falling Out of Love" (Lennon, Galland) - 4:07
Todas as faixas compostas por Sean Ono Lennon, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:
Sean Lennon - “Friendly Fire”


Daniel Rodrigues

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Kula Shaker - "K" (1996)

 




"Govinda Jaya Jaya
 Gopala Jaya Jaya"
saudações à deusa Krishna
na canção "Govinda"



Cara, Kula Shaker é muito Beatles!

Mas calma, não precisam se exaltar os beatlemaníacos mais apressados. Não estou dizendo que é igual, não estou dizendo que é melhor. Não são os novos Beatles. Mas a vibe de "K", o disco de estreia desses ingleses é muito a cara do quarteto de Liverpool. A psicodelia, a "pureza", aquela energia com ares de rock sessentista, os vocais em dueto, os coros de fundo nos refrões, o experimentalismo, a produção com aquela sujeira quase artesanal das guitarras... Tudo está lá.

"Into the Deep", "Magic Theatre", "Hollow Man", dividida em duas partes igualmente viajandonas, e até "Grateful When You're Dead", que faz referência direta a outra banda (Grateful Dead), são provas incontestes dessa influência.

Isso sem falar no toque oriental, indiano, característico daquelas coisas que George Harrison, especialmente, gostava de fazer, e que dão a tônica praticamente de todo o álbum. A própria capa não deixa dúvidas, não. "Sleeping Jiva", instrumental executada toda com instrumentos típicos hindus; a lisérgica "Tattva" um transe rock'n roll; a celebração reverencial de "Temple of Everlasting Light"; e, especialmente, "Govinda", uma peça apoteótica, e a que melhor conjuga o psicodelismo rock'n roll com a sonoridade exótica e suas representatividades espirituais, são os melhores exemplos dessa revisita aquela rica fusão que Harrison já levara seus companheiros de banda a experimentar lá nos idos dos 60's.

Destaque também para o rock estridente da vibrante "303", para a balada folk "Start All Over, com cara de "Rubber Soul", e para o funk-rap-krishna psicodélico "Hey Dude", cuja semelhança, "por mínima que seja", com algum título de música dos Beatles que você conheça, provavelmente, não terá sido mera coincidência.

Imitação? Não. Eu diria inspiração. E os rapazes do Kula Shaker tiraram bom proveito da fonte nesse seu magnífico "K".


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FAIXAS:

  1. Hey Dude
  2. Knight on the Town
  3. Temple of Everlasting Light
  4. Govinda
  5. Smart Dogs
  6. Magic Theatre
  7. Into the Deep
  8. Sleeping Jiva
  9. Tattva
  10. Grateful when You're Dead / Jerry Was There
  11. 303
  12. Start All over
  13. Hollow Man

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Ouça:
Kula Shaker - K


Cly Reis 

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Françoise Hardy - "Tant De Belles Choses” (2004)

 

"Henri Salvador, que tinha uma gravadora, viu minha apresentação na televisão e telefonou com a intenção de assinar um contrato comigo. A reunião nunca aconteceu, porque eu já estava sob contrato, mas eu sinto tontura toda vez que penso no meu desenvolvimento profissional e o curso que isso tomaria se um artista tão excepcional quanto Henri tivesse me colocado sob sua asa."
Françoise Hardy, em sua autobiografia "The Despair of Monkeys and Other Trifles: A Memoir by Françoise Hardy", de 2018

Ela havia completado 80 anos recentemente, o que foi motivo de celebração para os fãs desta artista cult que somente um país como a França podo gerar. Ela é Françoise Hardy, cantora, compositora, atriz e modelo, que além de linda e talentosa, reúne características daquilo que há de melhor na cultura de sua cidade-natal, Paris: o bom gosto, a delicadeza e a elegância. Mas um câncer a levou em junho deste ano, pouco mais de um mês antes da abertura das Olimpíadas iniciarem na própria Cidade-Luz. Quem sabe ela também não estaria na cerimônia de abertura às margens do Sena tocando?

Surgida como uma das principais figuras do movimento yé-yé nos anos 1960, ela conquistou a Europa com sua voz suave e estilo distinto. Instrumentista desde a adolescência, ela fez faculdade de Ciências Políticas e de Letras na Sorbonne, mas não conclui nenhum dos cursos, pois já havia descoberto sua vocação. Depois de passar em uma seleção de novos talentos da gravadora Vogue, em 1961, passa a cantar na TV francesa e logo foi catapultada ao sucesso com a canção "Tous les Garçons et les Filles", que vendeu milhões de cópias. Hardy não conquistou só o público francês, mas também ganhou notoriedade internacional, gravando versões de suas músicas em italiano, alemão e inglês.

Bela, foi também musa na moda e no cinema. Com o fotógrafo Jean-Marie Périer, com quem se relacionou até 1967, Françoise entrou no mundo da moda atuando como modelo e tornou-se um ícone fashion. Em colaboração com designers renomados como Yves Saint-Laurent e Paco Rabanne, ela influenciou a moda dos anos 1960 com seu estilo característico de minissaias e botas brancas. No cinema, foi dirigida por Jean-Luc Godard, Roger Vadim, Clive Donner e John Frankenheimer, quando contracenou com Peter Sellers e Peter O'Toole no clássico "Grand Prix", de 1966. Françoise era desejada por homens e mulheres, de David Bowie a Mick Jagger, de Brian Jones a John Lennon.

Na música, no entanto, foi onde mais se desenvolveu. Evoluiu do rock inocente e passou a gravar coisas como o folk “Suzanne”, de Leonard Cohen, e, em passagem pelo Brasil, voltou para a França na mala com uma versão francófona de “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, intitulada “La Mésange”. As fronteiras sonoras de Françoise começavam a se expandir. Entre 1962 e 1973, ela lançou um álbum por ano, consolidando seu status como uma das principais artistas da época. Alguns de seus maiores sucessos incluem "Le Temps de l'Amour" e "Mon Amie la Rose". Ela trabalhou com compositores renomados como Serge Gainsbourg, que escreveu para ela o hit "Comment te Dire Adieu", e Michel Berger, que compôs duas canções para o álbum "Message Personnel" (1973). Com tudo sua voz ligeiramente rouca e afinada e muito bom gosto sonoro, tornou-se uma excelente melodista e letrista admirada por ícones como Henri Salvador, que até quis contratá-la no início da carreira.

Embora a extensa discografia, que adentrou os anos 70, 80 e 90, foi na maturidade que Françoise chegou a seu auge em termos de musicalidade. Ela já havia surpreendido crítica e público com o triunfante retorno aos estúdios depois de 4 anos de pausa com “Clair-Obscur”, de 2000, quando, além de suas excelentes interpretações, composições e versões, canta com gente como Iggy Pop, Olivier Ngog e o ex-marido e eterno parceiro musical Jacques Dutronc. Porém, precisariam mais quatro anos para que viesse, aí sim, com o irretocável “Tant De Belles Choses”, 24º de sua longa trajetória e que completa 20 de lançamento em 2024.

Françoise: ícone também
da moda e do cinema nos
anos 60 e 70
À época com 60 anos, parece que a idade dava a Françoise aquilo que poeticamente Caetano Veloso sentenciou sobre a velhice: “Já tem coragem de saber que é imortal”. A faixa-título e de abertura e encerramento, evidencia esse amadurecimento diante do mundo, diante das coisas, que se tornam graciosamente belas a seu olhar. Na sequência, a sempre presente influência da música brasileira na sonoridade dos franceses está na francesíssima bossa-nova “À L'ombre De La Lune”. Clima parecido tem “Jardinier Bénévole”, mais cadenciada e enigmática, contudo, principalmente pelas programações de ritmo, pelos teclados reverberantes e pelo contracanto de Alain Lubrano.

Balada triste e romântica, “Moments” é uma das duas cantadas em um inglês do álbum juntamente com o pop quase tribal “So Many Things” – ambas não coincidentemente muito parecidas com o som da Everything But the Girl, uma vez que a inglesa Tracey Torn certamente tem em Françoise uma grande inspiração no modo de cantar e compor. Já “Souir de Gala” é um dos belos exemplos da canção pop hardyana, com versos muito melodiosos e visivelmente composta ao violão, embora o piano faça a marcação enquanto a guitarra solta frases pontuais. A voz dela, aliás, sempre suave, bem colocada, sensual. Sem percussão, apenas sob teclados e efeitos, “Sur Quel Volcan?” é outra que merece muita atenção. Interrogativa e não menos reflexiva, a letra diz: “Eu peço emprestado passagens, becos/ Eu pego mensagens, segredos/ Neste espaço de filigrana/ Eu veria um pedaço da sua alma?/ Em qual vulcão/ Vamos dançar/ Você e eu/ A que custo?/ Quem vai queimar lá/ Você ou eu?”.

O jazz com traços franceses, que mestres como Henri Salvador e Francis Lai legaram à música ocidental, vem na gostosa “Grand Hôtel”. A linha jazzística permanece em “La Folie Ordinaire”, que antecipa a potente – e fantasticamente melódica – “Un Air de Guitare”, em que Françoise canta com urgência os versos, os quais fraciona em três instantes bem marcados. O violão, constante e premente, ganha a parceria da dona da música, a “guitare”, tocada pelo filho Thomas Dutronc. Que baita música! Já na tensa “Tard Dans La Nuit…” – que lembra os temas densos de Nico –, Françoise fala das dores e angústias que a noite esconde. “Ela não é quem deve ser culpada/ Tantos sonhos se dissipam/ É melhor se esconder nas sombras/ As ruas não são seguras/ Atrás das portas blindadas/ Cães latem impiedosamente/ Ninguém pôde dizer/ De onde vieram os golpes/ Tarde da noite”.

Finalizando, mais uma preciosidade: “Côté Jardin, Côté Cour”. Lindo refrão: melodioso, elegante, suave e intenso ao mesmo tempo. A faixa se liga diretamente com a segunda versão de “Tant De Belles Choses”, que ressurge para terminar o disco de maneira imponente. E embora Françoise tenha lançado ainda outros quatro bons trabalhos até o fim da vida, este parece melhor representar a si e ao país ao qual trazia o radical no nome. Com 20 anos de antecedência à própria despedida, ela versa, concordando com aquilo que Caetano disse, a seguinte frase: “O amor é mais forte que a morte”. Nada além da mais pura verdade quando se fala de uma artista imortal como Françoise Hardy.

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FAIXAS:
1. "Tant De Belles Choses" (Pascale Daniel/ Alain Lubrano) - 4:02
2. "À L'ombre De La Lune" (Benjamin Biolay) - 3:38
3. "Jardinier Bénévole" (Lubrano) - 4:02
4. "Moments" (Perry Blake/ Marco Sabiu) - 3:31
5. "Soir De Gala" (Thierry Stremler) - 2:46
6. "Sur Quel Volcan?" (Daniel) - 3:08
7. "So Many Things" (Blake/ Sabiu) - 3:29
8. "Grand Hôtel" (Stremler) - 3:13
9. "La Folie Ordinaire" (Ben Christophers) - 2:32
10. "Un Air De Guitare" (Françoise Hardy)  - 3:58
11. "Tard Dans La Nuit…" (Daniel/ Lubrano) - 3:27
12a. "Côté Jardin, Côté Cour" (Lubrano) - 4:10
12b "Tant De Belles Choses (Version)" (Daniel/ Lubrano) - 3:58

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Daniel Rodrigues

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Caetano Veloso & Chico Buarque - "Caetano e Chico Juntos e ao Vivo” (1972)



por Márcio Pinheiro

"Eu gosto muito de você, Caetano, porque você me desconcerta."
Chico Buarque

No final de 1972, Chico Buarque estava na Bahia, ao lado de Caetano Veloso - que completou 82 anos no último dia 6 - para a realização de um show que dava fim a qualquer boato que colocasse os dois artistas em campos opostos. Registrado pela gravadora Philips, o show se transformaria em disco que seria lançado ainda antes do Natal.

O momento histórico reunindo os dois músicos – numa triste coincidência, na mesma noite em que o poeta e jornalista Torquato Neto se suicidara no Rio de Janeiro – mostra em pouco mais de meia hora de gravação como a afinidade entre eles era imensa.

Com um repertório reunindo composições de Chico (“Bom Conselho”, “Quando o Carnaval Chegar” e “Partido Alto”) e de Caetano (“Tropicália” e “Esse Cara”), com os dois ora se alternando, ora dividindo os vocais, o disco já nascia como relato  histórico caráter antológico. A aparente separação em algumas canções era soterrada na abertura do lado B, com Caetano convidando Chico em “Eu quero dar o fora/E quero que você venha comigo”, em “Você não Entende Nada”, e Chico aceitando o convite e respondendo com “Todo dia eu só penso em poder parar/Meio-dia eu só penso em dizer não/Depois penso na vida pra levar/E me calo com a boca de feijão”, em “Cotidiano”.

Como foi bem observado pelo crítico Julio Hungria em texto no JB, a gravadora apenas se descuidou ao não dar ao evento a condição de caráter histórico, omitindo do registro diálogos, frases de bastidores, confidências que retratassem a importância do encontro. “É um disco predestinado”, definia Hungria, sem esquecer que a censura se fazia presente, como em "Bárbara", de Chico e Ruy Guerra, em que a letra fala de uma “paixão vadia, maravilhosa e transbordante como uma hemorragia” e onde os cortes da Censura podem ser adivinhados apesar da habilidade dos técnicos de gravação. Ou ainda em “Ana de Amsterdã”, dos mesmos autores, em que, num dos versos, a palavra “sacana” da versão original virou “bacana”

Trecho do livro "O Que Não Tem Censura Nem Nunca Terá", de Márcio Pinheiro

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FAIXAS:
1. "Bom Conselho" (Chico Buarque) - Intérpretes: Chico Buarque - 02:00
2. "Partido Alto" (Chico Buarque) - Intérpretes: Caetano Veloso - 05:32
3. "Tropicália" (Caetano Veloso) - Intérpretes: Caetano Veloso - 03:31
4. "Morena dos Olhos D'Água" (Chico Buarque) - Intérpretes: Caetano Veloso - 02:32
5. "A Rita" (Chico Buarque)/ "Esse Cara" (Caetano Veloso) - Intérprete: Caetano Veloso - 03:35
6. "Atrás da Porta" (Chico Buarque/Francis Hime) - Intérpretes: Chico Buarque - 02:44
7. "Você Não Entende Nada" (Caetano Veloso)/ "Cotidiano" (Chico Buarque) - Intérpretes: Chico Buarque/Caetano Veloso - 07:01
8. "Bárbara" (Chico Buarque/Ruy Guerra) - Intérpretes: Caetano Veloso/Chico Buarque - 03:50
9. "Ana de Amsterdam" (Chico Buarque/Ruy Guerra) - Intérpretes: Chico Buarque - 01:45
10. "Janelas Abertas Nº 2" (Caetano Veloso) - Intérpretes: Chico Buarque - 01:56
11. "Os Argonautas" (Caetano Veloso) - Intérpretes: Caetano Veloso - 03:23

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OUÇA O DISCO:

domingo, 4 de agosto de 2024

Megadeth - "Rust in Peace" (1990)

 





"O Taekwondo me ajudou a largar
o péssimo estilo de vida de drogas e alcoolismo.
Me ajudou a acreditar em mim mesmo
e encontrar forças
que eu nunca soube que possuía."
Dave Mustaine



Disco que já estava para entrar aqui nos nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS mas cuja justa introdução ao nosso hall de nobreza dos grandes discos se faz num momento bastante oportuno. Oportuno por que? Porque além de um grande músico, o vocalista, guitarrista e líder do Megadeth é também um atleta de taekwondo  (dos bons). Assim, nesse momento olímpico, nada melhor que, além de mencionar essa aptidão esportiva desse grande nome do metal, também destacar um dos grandes álbuns de sua banda, o excelente "Rust In Peace", de 1990.

Expulso do Metallica, lá nos primórdios da banda, entre outros motivos, por uso excessivo de drogas, Mustaine encontrou no esporte, na disciplina das artes marciais a estabilidade emocional  e o estímulo para deixar as substâncias químicas. Hoje, além do taekwondo, que foi o início de sua paixão pelas artes marciais, esporte no qual é faixa preta, Mustaine ainda pratica karatê e jiu-jitsu, tendo, respectivamente as faixas preta e marrom nessas outras modalidades. 

Embora estejamos em plena olimpíada e o esporte seja nosso destaque também, estamos aqui para falar de música e, antes de mandar bem no tatame, no dojo, no ringue, Mustaine já detonava com a banda que criara a partir de sua saída do Metallica, o Megadeth, uma das referências do mundo do metal.

Lembro da primeira vez que ouvi o Megadeth, no Rock in Rio de 1991, pela TV e fiquei..."Uau!!!". Gravei a apresentação em DVD, depois separei só o áudio e gravei em cassete para poder ouvir no walkman. Aquela energia das guitarras, aquela potência, aquela intensidade! Cara..., muito foda!

Naquela oportunidade, exibiam exatamente o repertório do álbum "Rust in Peace", lançado uma no antes que, particularmente, é o que mais gosto da banda. 

Destaques para "Holy Wars...The Punishment Due", que abre o disco com seu riff matador e sua levada alucinante; a energia de "Hangar 18"; "Take No Prisioners" e seu refrão afudê, "Take no prisioners /take no shit"; a excelente "Lucretia", com sua introdução marcante de guitarra que encaminha para uma canção intensa e muito bem trabalhada; e ainda a faixa título, "Rust in Peace... Polaris": aquela entrada de batera combinada com aquele riff pesadão, a levada destruidora e um refrão emblemático que fazem desta faixa uma verdadeira bomba nuclear em forma de música.

Tanto no taekwondo, como em sua vida, na sua recuperação química de seu equilíbrio pessoal, quanto no âmbito musical, no qual proporcionou ao mundo um dos grandes discos da história do metal, Dave Mustaine sobe ao pódio com honras. Medalha pra ele.

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FAIXAS:
1. Holy Wars…The Punishment Due
2. Hangar 18
3. Take No Prisoners
4. Five Magics
5. Poison Was the Cure
6. Lucretia
7. Tornado of Souls
8. Dawn Patrol
9. Rust in Peace… Polaris

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Ouça:

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Paul & Linda McCartney – "Ram" (1971)



por Roberto Sulzbach Cortes

“Incrivelmente inconsequente e monumentalmente irrelevante.”
Revista Rolling Stone sobre Ram, em 1971

Se minha última aparição neste querido blog foi para falar do primeiro álbum solo de John Lennon pós-separação dos Beatles, minha primeira aparição do ano (apesar de já estarmos mais para o final do que para o começo) será para falar do segundo disco solo da outra parte da dupla que coloriu os anos 60 juntos. Com a volta do nosso Sir ao Brasil, pelo segundo ano consecutivo, resolvi revisitar o catálogo do artista, o que me levou a uma de suas obras menos apreciadas, mas que com o tempo foi reconhecida: "Ram", de 1971. 

Paul McCartney havia lançado o primeiro disco solo, "McCartney", em 1970, compondo sozinho e tocando todos os instrumentos. Não causou um grande impacto, principalmente quando comparado ao que os ex-colegas John e George Harrison lançaram no mesmo ano. O primeiro lançou "Plastic Ono Band", uma obra-prima envolta em sofrimento, angústia e desabafo, enquanto o segundo lançou "All Things Must Pass", um disco triplo cheio de canções de um guitarrista suprimido pelo ego da dupla de frente da banda, contando até com parcerias de Bob Dylan.

"Ram" surge de um momento de refúgio para Paul, em que ele e a família resolveram se mudar para uma fazenda, o que levou a sua esposa, Linda, a colaborar com as composições. Posteriormente, os dois passam a fazer audições e encontram as pessoas que, eventualmente, formariam o grupo Wings com o casal. Portanto, estava tudo pronto para lançar um disco indie, nesse caso, de “independente”. 

À época, existiam dois motivos para alguém estar em uma gravadora independente: ainda não conseguir um contrato com uma gravadora grande; ou, querer ter maior controle e liberdade artística das obras. Frank Sinatra, ícone da música crooner, tinha seu próprio selo, assim como os Beatles, a famosa Apple Records, e sendo assim, todos os ex-membros competiam entre si quando lançavam novas músicas, além de toda uma nova leva de gêneros musicais que surgiram na virada da década. 

Sendo assim, "Ram" consegue ser direto e abstrato, ao mesmo tempo, com melodias em escalas maiores, características essas, presentes em praticamente todos os álbuns de indie pop subsequentes. E essas escolhas fizeram com que o disco fosse mal interpretado. Apesar do relativo sucesso comercial que o disco atingiu, a crítica caiu em cima de Paul, fazendo com que até seus ex-colegas dissessem que não entenderam o que ele queria fazer. Claro que ninguém entendeu: ele estava inventando um novo gênero. 

“Too Many People” abre o disco, mas poderia muito bem estar no catálogo dos canadenses da Arcade Fire, com violões melódicos e backing vocals femininos (cortesia de Linda) estridentes e afinados ao mesmo tempo, enquanto dá umas cutucadas no amigo John. Na sequência, “3 Legs” parece ter causado em um jovem Jack White, pois parece ser uma antecessora de “Hotel Yorba” do álbum “White Blood Cells”.

Paul e Linda: produção doméstica,
que virou cult com o passar dos anos
“Ram On”, uma semifaixa título, contém apenas uma estrofe e serve como pano de fundo, resumindo a tônica do disco. “Dear Boy” parece ter sido feita uns 5 anos antes, influenciada diretamente pelos Beach Boys, orquestrada, harmônica e grandiosa. Estranhamente, “Uncle Albert/Admiral Halsey” foi um sucesso nos Estados Unidos, de certa forma, até inesperado. Albert é realmente o tio de Paul e Admiral Halsey é em referência ao oficial William Frederick Halsey Jr. da marinha estadunidense, que lutou na Segunda Guerra Mundial. Parecem não ter correlação? Sim! Mas a música é sobre tentar levar a vida de maneira mais leve, e definitivamente, é a mais grudenta da lista, com seu refrão em dueto agudo dos artistas em “Hands across the water, water; Heads across the sky” ("Mãos pela água; mãos pelos céus").

“Monkberry Moon Delight” é uma psicodélica. A música não faz sentido algum, mas tem (como toda boa composição de McCartney), uma excelente melodia, vocais estridentes e a participação de Heather (filha de Linda e adotada por Paul), de 9 anos na época, nos backing vocals. Parece uma versão lúdica de uma canção de Tom Waits. É possível até imaginar os três se divertindo no estúdio, quase brincando enquanto gravavam. 

“Smile Away”, “Heart Of The Country” e “Eat At Home” soam como clássicos e novidades ao mesmo tempo. Misturam elementos do blues, do hard rock e do folk (com um quê tradicionalíssimo de Paul).

“Long Haired Lady” é Lindíssima (com o perdão do trocadilho, homenagem à esposa e parceira artística). “Ram On (Reprise)” traz aquele hábito dos discos do período, conceitualizados, em que um tema que aparece no início, volta a surgir ao final, para passar a sensação de ciclo contínuo, só tocando o instrumental da primeira versão presente no LP.

O disco fecha com “The Back Seat Of My Car”. Uma saída triunfal para um compilado de canções que trouxeram para um público massivo diversos contextos não muito conhecidos à época. O refrão “we believe that we can’t be wrong” ("nós acreditamos que não estamos errado") parece antecipar que ninguém entenderia muito bem o que eles estavam fazendo por ali, mas que o tempo se mostrou senhor da razão, provando que estavam certos.

"Ram" passou por algo muito comum na era dos streamings: a redescoberta. O disco é um “primo alterna”, perto de "Band On The Run" (com a Wings, 1973), ou até mesmo dos hits presentes em "Wings at the Speed of Sound" (1976). Mas, lentamente, ganha espaço como um dos mais experimentais da carreira do baixista daquela banda famosa, e dos mais influentes da música atual.

Um projeto, praticamente, familiar ajudou a pavimentar o caminho do indie pop. O próprio Paul passou a admirar o próprio trabalho "Ram", que depois de mais de 50 anos, está recebendo a devida atenção que sempre mereceu. 

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FAIXAS:
1. "Too Many People" - 4:09
2. "3 Legs" - 2:48
3. "Ram On" - 2:30
4. "Dear Boy" - 2:14
5. "Uncle Albert / Admiral Halsey" - 4:50
6. "Smile Away" - 4:01
7. "Heart Of The Country" - 2:22
8. "Monkberry Moon Delight" - 5:25
9. "Eat At Home" - 3:22
10. "Long Haired Lady" - 6:05
11. "Ram On (Reprise)" - 0:55
12. "The Back Seat Of My Car" - 4:29
Todas as composições de autoria de Paul e Linda McCartney

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OUÇA O DISCO:


segunda-feira, 15 de julho de 2024

Gilberto Gil - "Gilberto Gil ao Vivo" ou "Ao Vivo no Tuca" (1974)

 

“A experiência do exílio universaliza o caráter da música de Gil, mas também serve para reabrasileirá-la”
Marcelo Fróes, pesquisador musical

O forçado período de exílio, no final dos anos 60/início dos 70, em razão da perseguição do Governo Militar brasileiro, fez bem a Gilberto Gil. A afirmação soa cruel humanisticamente falando, mas, em contrapartida, é impossível dissociar a música do compositor e cantor baiano daquilo que ele produziu em sua fase pós-tropicalista, justamente a que coincide com aquele momento. Sondar, hoje, a música de Gil sem esta intervenção temporal, num continuum que ligue “Batmakumba” diretamente a “Realce”, é impensável. Londres, com seu frio e neblina, mas também com seus “lindos verdes campos” que o oportunizaram a Swinging London e a lisergia, marcou-se de vez na alma de Gil. E isso por um simples motivo: a cosmopolita Londres em muito combinava com a visão holística deste artista.

Os sinais do Velho Mundo ficam evidentes já em “Expresso 2222”, de 1972, seja na influência beatle, seja, por outro lado, no re-enraizamento, espécie de contramovimento em direção às origens de quem tanto tempo ficou distante de sua terra. Mas outras sensibilidades também puderam ser extraídas daquela inevitável influência europeia, que é o próprio cosmopolitismo. E Gil, hábil, traduziu isso em sonoridade. Jards Macalé já havia dado os primeiros passos desde seu compacto "Só Morto", de 1970, e, posteriormente, ao instaurá-la em “Transa”, que Caetano Veloso, companheiro de Tropicália e de exílio de Gil, gravaria na mesma Londres antes de voltar ao Brasil. Era uma sonoridade elétrica (ainda sem teclados), mas sem peso e distorções, que mesclava o rock aos sons brasileiros numa medida que, hegemonizada, soava como um novo jazz fusion. Um fusion essencialmente brasileiro. Não o que Airto Moreira, Hermeto Pascoal ou Eumir Deodato vinham praticando nos Estados Unidos. Era um jazz brasileiro, mas tão brasileiro, que é fácil se esquivar de chamar de jazz, ao passo que é difícil classificar somente de MPB.

O sumo desta sonoridade universalista está no disco ao vivo que Gil gravava há 50 anos com uma afiada banda num único e histórico final de semana de outubro de 1974 no Teatro da Universidade Católica de São Paulo, o conhecido Tuca – palco de diversas combativas apresentações no período da Ditadura. Gil estava num momento transitório entre o disco “Expresso 2222”, que marcou sua volta ao Brasil, e um grande projeto, a trilogia “Re” (“Refazenda”/"Refavela”/”Realce”) a qual tomaria seus próximos três anos a partir de 1975. Além disso, Gil engavetara um disco de estúdio previsto para aquela época e para o qual havia composto várias canções, renomeado “Cidade do Salvador” quando lançado posteriormente na caixa “Ensaio Geral”, de 1998, produzida pelo pesquisador musical Marcelo Froés. Nem por isso, o artista se desconectara de suas próprias buscas sonoras. Pelo contrário. Absorvido pelos estímulos da música pop e com o que captara no período internacional, Gil realiza este show onde exercita o que havia de mais arrojado em termos de arranjo, melodia, harmonia e performance de sua época. Era o Gil tropicalista, novamente, dando as cartas da “novidade que veio dar na praia” na música brasileira. 

“João Sabino”, faixa inicial, é exemplar. Inédita, assim como todas as outras cinco que compõem o disco. Ou seja: embora se trate da gravação de uma apresentação, sua estrutura é de um álbum totalmente novo, com faixas inéditas ou nunca tocadas por Gil, e não de versões ao vivo de temas conhecidos e/ou consagrados - tal como o próprio realizaria em diversos outros momentos da carreira, como os ao vivo "Refestança" (com Rita Lee, de 1980), e "Quanta Gente Veio Ver" (1998). Soma-se a isso a exímia execução, que dá a impressão de uma gravação tecnicamente perfeita como que engendrada num estúdio, da fantástica banda formada por: Gil, na voz, violão e arranjos; Aloísio Milanês, nos teclados; o "Som Imaginário” Frederiko, guitarra; Rubão Sabino, baixo elétrico; e Tutty Moreno, bateria. 

Afora isso, “João Sabino” – homenagem ao pai do baixista da banda, que está excelente na faixa – é um samba de mais de 11 min, repleto da variações e uma melodia com lances experimentais, que exige domínio dos músicos. Na letra, metalinguística, Gil equipara as “localidades” da cidade natal dos Sabino, a capixaba Cachoeiro do Itapemirim (“Pai do filho do Espirito Santo”) com religiosidade e das notas musicais (“Nessa localidade de lá/ Uma abertura de si/ Uma embocadura pra dó/ Sustenindo uma passagem pra ré/ Mi bemol/ (...) De mi pra fá/ Sustenindo, suspendendo/ Sustentando, ajudando o sol/ Nascer"”). E Gil o faz com muita improvisação no canto, incidentando passagens e brincando com as palavras e os vocalises, o que antecipa, até pela extensão do número, a grande jam que gravaria com Jorge Ben no ano seguinte no clássico “Gil & Jorge/Xangô Ogum”. Som eletrificado com alto poder de improvisação dos músicos, que sintetiza a sina bossa-novista, a tradição do samba e a influência nordestina às novas sonoridades pós-“Bitches Brew” e “A Bad Donato”. Um show.

É a vez da psicodélica “Abre o Olho”, espécie de diálogo consigo mesmo no espelho, em que Gil reflete algumas maluquices saborosas enquanto põe colírio nos olhos sob efeito da maconha. “Ele disse: ‘Abra o olho’/ Eu disse ‘aberto’, aí vi tudo longe/ Ele disse: ‘Perto’/ Eu disse: ‘Está certo’/ Ele disse: ‘Está tudinho errado’/ Eu falei: ‘Tá direito’”. Essa divagação toda para chegar na catártica (e sábia) frase do refrão: “Viva Pelé do pé preto/ Viva Zagalo da cabeça branca”. Seu violão e canto são tão intensos, sua performance é tão completa, que nem dá pra perceber que o resto da banda não está tocando.

Gravada originalmente pelo seu coautor, o amigo João Donato, no disco homônimo, “Lugar Comum” ganha aqui a única versão cantada pelo próprio Gil. Delicada e num arranjo redondo, tem a segurança dos músicos na retaguarda, entre eles Tutty, baterista dos revolucionários “Transa”, “Expresso 2222” e dos discos iniciais de Jards, entre outros. Destaque do repertório, talvez a mais sintética de todas da atmosfera empregada nesta apresentação, é “Menina Goiaba”, que bem poderia receber o subtítulo de “Pequena Sinfonia de São João”. São mais de 6 min em que Gil e banda conduzem o ouvinte em uma viagem ao Nordeste festivo e brejeiro, iniciando numa moda de viola, avançando para uma marchinha e finalizando com uma quadrilha num misto de rock e sertanejo com a formosa guitarra de Fredera. Linha melódica intrincada, mas deliciosa como uma guloseima junina, cheia de idas e vindas, transições, variações rítmicas e adornos. E que execução da banda! Jazz fusion brasileiríssimo. E para quem desistiu de lançar um álbum novo àquela época, Gil resolveu muito bem consigo mesmo a dicotomia quando diz na letra da música: “Andei também muito goiaba/ E o disco que eu prometi/ Não foi gravado, não”.

Como já havia feito (e voltaria a fazer inúmeras vezes na carreira), Gil versa Caetano com a magia que somente um irmão espiritual conseguiria. Assim como “Beira-Mar”, do seu trabalho de estreia, em 1967, agora é outra balada caetaneana trazida por Gil: “Sim, Foi Você”. Igualmente, cantada e tocada somente a voz e violão e numa sensibilidade elevada. Para fechar, outro número extenso e uma explosão de talento da banda em “Herói Das Estrelas”. Originalmente gravado pelo seu autor, Jorge Mautner – que o assina junto com o parceiro Nelson Jacobina – naquele mesmo ano num disco produzido por Gil, agora o tema recebe uma roupagem jazzística de dar inveja a qualquer compositor (ainda bem que Gil e Mautner são tão amigos). Rubão está simplesmente sensacional no baixo, assim como Tutty, com sua bateria permanentemente inventiva. Aloísio Milanês, igualmente, improvisa brilhantemente de cabo a rabo (de cometa). E o que falar do violão de Gil? Uma batuta tomada de suingue, de brasilidade, de africanidade. Perfeita para finalizar um show/disco impecável.

Quem escuta algumas das obras posteriores de Gil, talvez nem perceba o quanto este disco ao vivo teve influência. Nas duas versões de “Essa é pra Tocar no Rádio” (“Gil e Jorge” e “Refazenda”), é evidente o trato jazz que recebem, assim como “Ela”, “Lamento Sertanejo” (“Refazenda”, 1875), “Babá Alapalá”, “Samba do Avião” (“Refavela”, 1977) e “Minha Nega Na Janela” (“Antologia do Samba-Choro”, 1978), além da clara semelhança do conceito sonoro de todo “Gil e Jorge”. Gil só viraria a chave desta habilidosa condensação sonora quando fecha a trilogia "Re" no pop “Realce”, de 1978. Porém, não sem, meses antes, encerrar aquele ciclo com outro disco ao vivo, gravado no 12º Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. A mídia internacional entendia, enfim, que aquilo era, sim, jazz. Gil, assim, voltava à Europa de onde, no início daquela década, mesmo que forçadamente, precisou se refugiar e aprendeu a ser mais universal do que já era. Igual diz a sua “Back in Bahia”: “Como se ter ido fosse necessário para voltar”.

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A caixa “Ensaio Geral”, lançada em 1998, trouxe em “Ao Vivo no Tuca”, além das faixas do vinil oficial, outras cinco inéditas garimpadas em gravações das másters originais do mesmo show e outras de estúdio da época, somente voz e violão. “Dos Pés à Cabeça”, escrita para a voz de Maria Bethânia, foi registrada por ela no espetáculo “A Cena Muda”, de 1974. Já “O Compositor me Disse” foi para a voz de Elis Regina e gravada pela Pimentinha em “Elis”, também de 1974. Proibido pela Censura de apresentar músicas novas de sua própria autoria, Chico Buarque gravaria músicas de outros compositores, entre elas, “Copo Vazio”, de Gil, em “Sinal Fechado”, do mesmo ano. No espírito do álbum original, todas as extras são cantadas pela primeira vez na voz de Gil.

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FAIXAS:
1. “João Sabino” - 11:33
2. “Abra o Olho” - 4:50
3. “Lugar Comum” (Gilberto Gil, João Donato) - 4:50
4. “Menina Goiaba” - 6:50
5. “Sim, Foi Você” (Caetano Veloso) - 5:47
6. “Herói das Estrelas” (Jorge Mautner, Nelson Jacobina) - 6:01
Faixas bônus da versão em CD:
7. “Cibernética” - 7:45
8. “Dos Pés à Cabeça” - 4:27
9. “O Compositor me Disse” - 4:01
10. “Copo Vazio” - 6:39
11. “Dia de Festa” (Rubão Sabino) - 5:05
Todas as composições de autoria de Gilberto Gil, exceto indicadas

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Daniel Rodrigues

sábado, 6 de julho de 2024

The Chemical Brothers - "Further" (2010)

 



Álbuns Fundamentais - ClyBlog
"Os Chems fazem seu melhor álbum
em mais de uma década."
Pitchfork Music,
na época do lançamento


"Further" foi um álbum que tive uma certa dificuldade inicial pata assimilar. Tom Rowlands e Ed Simmons nunca ficaram estagnados numa zona de conforto mesmo já  consagrados e amplamente aclamados como sendo dos grandes expoentes da música eletrônica. Sempre ousaram, tentaram coisas diferentes e incorporaram elementos a seu som, mas em "Further" parecia que davam um passo adiante nesse experimentalismo, causando uma certa estranheza que, pelo que pude notar, na época do lançamento,  não fora exclusividade minha.

A estrutura das músicas, o formato do álbum, a disposição das faixas, as referências, parecia tudo pouco convencional. Mas audições mais frequentes, mais atentas, sem tantos juízos pré-estabelecidos, foram aos poucos me mostrando que ali estava um grande disco, mais um dos grandes trabalhos desses dois notáveis artesãos dos sons da nossa época.

Se o Kraftwerk, pai de todos da música eletrônica, foi paulatinamente construindo uma linguagem, forjando um formato, os Chemical Brothers que já encontraram a estrada pavimentada montado, parecem tentar desconstruir o processo, e em "Snow, a faixa de abertura, fragmentam a música, reduzem-na a ruídos eletrônicos, praticamente abdicam da melodia, numa peça singular sem batida, sem levada, sem um 'ritmo' lógico. É a volta ao começo da estrada. E perguntará alguém, "E funciona?". Não só funciona como "Snow" é improvavelmente linda. Um vocal doce, delicado sobre uma música sem música. Algo impressionante para começar um álbum que se mostrará não menos incrível. Até  porque na sequência, a segunda, "Escape Velocity", talvez seja uma das melhores músicas da dupla e uma das maiores coisas feitas em música eletrônica. Uma sinfonia eletrônica de mais de dez minutos construída paciente e minuciosamente, com uma estrutura que, em sua complexidade, lembra um grandioso concerto clássico. Mais uma grande ousadia do Brothers.

"Another World", que se segue, é uma canção suave e quase lenta; "Dissolve" é  um "rock psicodélico" que lembra particularmente The Who... E o ouvinte pode ficar perguntando, "Cadê a música eletrônica, propriamente dita, repetições, loops, BPM's aceleradas...?". Tudo isso chega finalmente na quinta faixa. Só que não de uma maneira simples e superficial. Por trás de um bate-estaca tipicamente de pistas de dança, elétrico, percussivo, repetitivo e alucinante, esconde-se uma faixa conceitual que remete aos primórdios das máquinas, à revolução industrial, à potência de um animal, à potência de uma máquina, o torque, o Jaule, o Cavalo Vapor. A máquina a serviço do homem, a tecnologia que evolui e hoje nos dá. Coisas como as que os Chemical Brothers fazem.

"Swoon", o primeiro single do álbum é um pop radiante, ensolarado, colorido, com cara de dia de primavera. Apaixonante! Tambores e ritmos tribais dão o tom em "K.D.B" que, ao contrário do que se possa imaginar não torna-se pesada ou agressiva pela ênfase percussiva. Os Chems encontram mais uma vez o ponto de equilíbrio entre o conceito, o primitivismo, as raízes negras da música eletrônica, e a palatabilidade comercial, produzindo aqui uma peça musical suave de atmosfera crescente e grandiosa.

Depois de toda essa viagem, "Wonder of Deep" retorna ao Kraftwerk, que no fim das contas, é como voltar ao início de tudo, a origem do universo do eletrônico.

"Further" é provavelmente o disco mais 'filosofal' dos Chemical Brothers. Nele Ed e Tom parecem se perguntar, "Por que estamos aqui?", "Do que somos feitos?", "De onde viemos, para onde vamos?", "E se...?". Talvez por isso eu tenha demorado um pouco para valorizar a obra. Não é todo dia que um álbum, da tão subestimada e desvalorizada música eletrônica, nos traz tanta informação.

Eles podiam ter ficado no conforto de sua reputação já consolidada, produzindo mais um hit certeiro aqui outro ali, mais uma febre das pistas, mas aqui se arriscaram. Mergulharam fundo e foram além. Além.

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FAIXAS:
  1. Snow (5:07)
  2. Escape Velocity (11:57)
  3. Another World (5:40)
  4. Dissolve (6:22)
  5. Horse Power (5:51)
  6. Swoon (6:05)
  7. K+D+B (5:40)
  8. Wonders Of The Deep (5:13)

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Ouça:



por Cly Reis