para deixar que role ladeira abaixo" - Susano Corrreia
Carlos, sossegue, o amor é isso que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será.
Inútil você resistir ou mesmo suicidar-se. Não se mate, oh não se mate, Reserve-se todo para as bodas que ninguém sabe quando virão, se é que virão.
O amor, Carlos, você telúrico, a noite passou em você, e os recalques se sublimando, lá dentro um barulho inefável, rezas, vitrolas, santos que se persignam, anúncios do melhor sabão, barulho que ninguém sabe de quê, praquê.
Entretanto você caminha melancólico e vertical. Você é a palmeira, você é o grito que ninguém ouviu no teatro e as luzes todas se apagam. O amor no escuro, não, no claro, é sempre triste, meu filho, Carlos, mas não diga nada a ninguém, ninguém sabe nem saberá.
Tenho um remorso antigo - confidenciou-me à mesa do bar. - Quando eu era garoto, adorava futebol de botão. Um dia, acabei com os botões do quarto de costura de mamãe, e não havia outros em casa. Fui ao guarda-roupa de vovô e saqueei-o. Coitado, o velhinho vivia na cadeira de rodas, e praticamente só usava pijama. no dia em que ele morreu, a família ficou atrapalhada para vestir-lhe um terno escuro: estava tudo sem botão.
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"Saque" Carlos Drummond de Andrade de sua coluna no Correio da Manhã, de 1965
Futebol se joga no estádio? Futebol se joga na praia, futebol se joga na rua, futebol se joga na alma. A bola é a mesma: forma sacra para craques e pernas de pau. Mesma a volúpia de chutar na delirante copa-mundo ou no árido espaço do morro. São voos de estátuas súbitas, desenhos feéricos, bailados de pés e troncos entrançados. Instantes lúdicos: flutua o jogador, gravado no ar — afinal, o corpo triunfante da triste lei da gravidade.
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Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido (mal vivido talvez ou sem sentido) para você ganhar um ano não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; novo até no coração das coisas menos percebidas (a começar pelo seu interior) novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, mas com ele se come, se passeia, se ama, se compreende, se trabalha, você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, não precisa expedir nem receber mensagens (planta recebe mensagens? passa telegramas?)
Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumadas nem parvamente acreditar que por decreto de esperança a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.
"Quando é Dia de Futebol", reunião de crônicas, poemas e cartas de Carlos Drummond de Andrade que tem o futebol como pano de fundo é meramente interessante. Com textos que atravessam o período de nove Copas do Mundo, começando na de 1954 na Suiça e culminando na do México em 1986, o poeta mineiro muito sutil e poeticamente vai montando uma linha de tempo político-social-antropológica do Brasil enquanto versa, muito descompromissadamente, sobre o esporte que é paixão nacional. E é essa paixão e a maneira como ela se manifesta no íntimo do brasileiro que o escritor consegue captar com rara sensibilidade. Drummond não era um grande entendedor de futebol, muito pelo contrário, fato que mesmo humildemente admite comparando-se com outros cronistas como João Saldanha e Sérgio Cabral Sênior, ("Tenho que (...) fingir uma competência que nunca tive e ir na retaguarda do Sandro, do Novais, do Saldanha do Cabral e outros cobras, deitando sabença especializada..."), mas talvez exatamente por essa "ignorância" técnica das especificidades do esporte dentro das quatro linhas e das particularidades de seus bastidores é que sua visão de leigo aficionado torne-se tão pura e válida. É curioso observar o crescimento do valor do futebol dentro do conceito e admiração de Drummond, uma vez que num primeiro momento vê com muita estranheza a demasiada atenção e importância que as pessoas dão a uma partida de futebol ("Não posso atinar bem como uma bola, jogada à distância, alcance tanta repercussão no centro de Minas") passando ao longo do tempo a fazer parte da massa fanática de torcedores sequiosos por mais um título para a Seleção Canarinho como na "oração" pedindo ao Velho lá de cima a posse definitiva da Jules Rimet, "Meu coração agora tá no México batendo pelos músculos de Gérson, unha de Tostão, a ronha de Pelé (...)/ Dê um jeito, meu velho, e faça com que essa taça/ com milagre ou sem ele nos pertença/ para sempre, assim seja... Do contrário/ ficará a nação melancônica/tão roubada em seu sonho e ardor/ que nem sei como feche a minha crônica".
Os poemas, de um modo geral, salvo algum que outro, não são dos mais inspirados de sua careira literária, beirando em determinados momentos à puerilidade, e muitos dos escritos pela brevidade ou pela ingenuidade futebolística são mesmo de valor discutível, mas devo admitir que os textos sobre Pelé e Garrincha são lindos bem como o da eliminação para a Itália na Copa de 82.
Compilação válida pela apresentação organizada e criteriosa desta outra faceta menos conhecida do grande escritor brasileiro, por essa sensível percepção do efeito que este jogo exerce sobre as pessoas, mas no fim das contas nada que acrescente qualitativamente a tudo que já era conhecido e apreciado do grande mestre de Itabira. Craque ele era mas neste em "Quando É Dia De Futebol" não dá pra dizer que tenha sido um Pelé.
O documentário “O
Último Poema” (2015), dirigido por Mirela Kruel, encontra na contenção sua
beleza e sua força poética. O filme aborda a longa relação epistolar entre a
professora gaúcha Helena Maria Balbinot Vicari e o grande poeta mineiro Carlos
Drummond de Andrade. Ambos se corresponderam por mais de vinte anos, sem nunca
terem se conhecido pessoalmente. As cartas trocadas registram esta amizade
cordial, este feliz encontro. As próprias histórias de vida vão ali se
entrelaçando, em meio aos comentários sobre poesia, votos de felicidade e
outras generalidades afetivas.
Hoje, é impressionante pensar na natureza desta relação,
destacando-se aí, principalmente, sua extensão e sua gratuidade. Como poucos, o
filme joga luz sobre a qualidade e o cultivo dos vínculos, sobre solidão e real
intimidade. O que se mostra, na tela, é o avesso completo daquilo que
encontramos à exaustão em nossas redes sociais, em nosso cotidiano
hipermediado, aceleradíssimo e hiperexposto. Uma pergunta, neste cenário, fica
no ar: entre as décadas de 1950 e 1960, eram comuns e frequentes tais práticas
(tais práticas de interação entre escritor e leitor, entre público e artista)?
Drummond, particularmente, era um missivista destacado? Ou surgiu, de fato,
ali, um exercício singularíssimo, uma prática espantosa, na sua regularidade,
na sua motivação espontânea?
Helena Maria Balbinot Vicari não era a fã chata ou a groupie inconveniente, forçando
intimidade, não era o jornalista cultural, catando pauta e confidências
publicáveis, não era o aprendiz de poeta, atrás de dicas e lições informais de
poesia, também não era o pseudo-poeta pretensamente concorrente, não era a
professora primária deslumbrada ou o crítico acadêmico, o resenhista
profissional. Não cabia, exatamente, em nenhum destes papéis. Excedia cada um
destes perfis. Talvez tivesse mesmo se tornado, para Drummond, o leitor ideal,
motivado unicamente pelo produto e pela vivência da poesia, as emoções que
guarda e encobre.
O filme de Mirela Kruel dialoga com outras produções
recentes: “Sobre Sete Ondas Verdes Espumantes” (2013), de Bruno Polidoro e Cacá
Nazário, dedicado à vida e à obra de Caio Fernando Abreu; “Só Dez por Cento é
Mentira” (2009), “desbiografia” do poeta Manoel de Barros, dirigida por Pedro
Cezar; e “Pan-Cinema Permanente” (2008), retrato visceral do poeta baiano Waly
Salomão, assinado por Carlos Nader. Todos são ótimos documentários poéticos
sobre poesia brasileira, moderna e contemporânea.
Mas observá-los em conjunto, reconhecer as afinidades que
têm, as características que compartilham, nos permite formular uma suspeita:
se, na década de 1960, a música popular se tornou um canal para a poesia
brasileira, uma espécie de câmara de amplificação de nossa sensibilidade
poética, dando-lhe maior trânsito e visibilidade, como tem argumentado o
professor Luiz Augusto Fischer, citando o exemplo muito emblemático de Chico
Buarque de Holanda, talvez hoje, por hipótese, o cinema documentário esteja
assumindo este legado, esteja cumprindo não só a função de divulgar o trabalho
literário de nossos poetas e de produzir os registros históricos que eles
merecem, mas, acima de tudo, a função de dar vazão à inquietação poética,
tornar-se poesia, num momento em que a canção popular e a vida cultural, de modo
geral, no Brasil, definham.
O poeta chega na estação. O poeta desembarca. O poeta toma um auto. O poeta vai para o hotel.
E enquanto ele faz isso como qualquer homem da terra, uma ovação o persegue feito vaia. Bandeirolas abrem alas. Bandas de música. Foguetes. Discursos. Povo de chapéu de palha. Máquinas fotográficas assestadas. Automóveis imóveis. Bravos... O poeta está melancólico. Numa árvore do passeio público (melhoramento da atual administração) árvore gorda, prisioneira de anúncios coloridos, árvore banal, árvore que ninguém vê canta uma cigarra. Canta uma cigarra que ninguém ouve um hino que ninguém aplaude. Canta, no sol danado. O poeta entra no elevador o poeta sobe o poeta fecha-se no quarto. O poeta está melancólico.
Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente
João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.