Uma das belas casas em estilo eclético do inicio do século 20 do complexo arquitetônico Vila Belga
Passar alguns dias em alguma cidade sempre me sugere que eu possa aproveitar um pouco da atmosfera local. Nos dias em que fiquei em Santa Maria por conta do Santa Maria Cinema e Vídeo, para o qual fui convidado a participar, em alguns poucos momentos pude dar uma escapada e curtir algo fora da programação para a qual me destinava. Não deixa de ser um pouco questão de sorte. Uma que não dei foi a de poder acompanhar, em razão justamente dos compromissos para os quais fui convidado, um passeio guiado pelos prédios Art Deco, estilo característicos do período em que a cidade cresceu economicamente, que percorreu locais onde, no passado e no presente, abrigou-se/abriga cinema em Santa Maria.
Mas a sorte não me desamparou. O hotel onde fiquei hospedado, na região Central da cidade, era bem próximo de um verdadeiro patrimônio histórico, arquitetônico, urbanístico e cultural do Rio Grande do Sul, que é a Vila Belga, uma das primeiras experiências de conjunto residencial operário do Brasil. Série de edificações em estilo eclético construídas pela empresa belga Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil, entre 1905 e1907, destinavam-se à moradia dos funcionários de menor escalão da companhia, responsável pela Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFRGS) e que tinha em Santa Maria sua sede e ponto estratégico.
O conjunto conta com 84 unidades residenciais, as quais somam-se ainda a sede da Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea, seu clube e cinco armazéns, que foram projetados pelo engenheiro belga Gustave Vauthier, à época, o próprio diretor da Auxiliaire.
Com parte conservada, outra não (mesmo que tombada pelo Iphae); parte ocupada, outra não; parte reformada, outra não, o passeio pelas ruas que acessam a Vila Belga é daqueles lances em que se entra num túnel do tempo. Além de materializar um momento histórico (e pujante) de uma cidade que um dia foi polo do transporte ferroviário brasileiro naquele início de século XX. Com o forte investimento na indústria e no transporte automotivo a partir dos anos 50, junto com a paulatina desaceleração (com o perdão da palavra) e sucateamento da linha férrea, hoje a Vila Belga representa algo que, no fundo, não precisaria ser associada somente ao passado. Quanto o país economizaria se tivesse ampliado ou simplesmente mantido suas ferrovias... Enfim, a sorte age para os dois lados sempre.
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Entrando numa das ruas da Vila Belga
Panorâmica de um trecho da
belíssima Vila Belga
Efeitos da ação do tempo
Um dos postes de luz preservados da arquitetura original
Outra rua da Vila Belga, que se estende até o passado
Uma das casas bem preservadas...
... e, do outro lado, uma mal conservadas
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As casas dando vista para um dos vários morros que rodeiam Santa Maria
Sem teto e sem vida
Mais um conjunto de casas da Vila Belga
Metal on metal
Um gatinho preto atrás das folhagens
Escada verde
A rosa branca levando paz para a antiga vila operária
Os movimentos negros surgidos no século 20 no Brasil edificaram a mentalidade e o discurso antirracista como hoje conhecemos, bem como a valorização da cultura afro-brasileira e a luta pelos direitos sociais, civis e políticos do povo preto. Aquilo que passou a ser mais comum na tela do cinema ou da televisão a partir dos anos 90, intensificando-se anos 2000 afora, é certamente resultado da organização formal de grupos como Palmares e Movimento Negro Unificado, surgidos à base de muita resistência em plenos anos de chumbo da Ditadura Militar.
Porém, um fundamental movimento ocorrido no Brasil ainda em um período em que a mentalidade escravagista e colonial era ainda mais forte, visto que vigente em um país jovem e recém-saído do sistema escravocrata, foi o Teatro Experimental do Negro. Fundado pelo genial Abdias do Nascimento, ator, poeta, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras brasileiras, este centro de cultura e arte serviu não apenas para formar profissionais, como atores, diretores, técnicos, entre outros, mas cidadãos negros conscientes de sua posição na sociedade brasileira.
A força simbólica e prática do TEN foi tamanha, que chegou até o cinema. O principal resultado deste impulso é o filme “Também Somos Irmãos”, de José Carlos Burle, de 1948. Embora com características comuns a outros filmes produzidos pela Atlântida, como a abordagem popular, a narrativa linear, o maniqueísmo da trama, os números musicais e a dramatização de situações cotidianas, o filme absorve estes mesmos elementos de forma muito consciente para abordar corajosamente o tema do racismo no Brasil dos anos 40.
Como menciona o jornalista e crítico de cinema João Carlos Rodrigues em seu essencial livro “O Negro e o Cinema Brasileiro’, “Também...” é um caso raro dentro da cinematografia brasileira, dada a sua capacidade de abordar um tema mais do que apenas sensível, pois também negado e desvirtuado. Com roteiro de Burle e Alinor Azevedo, o longa trata do racismo e das relações de classe de forma muito consistente e realista dentro das possibilidades de um cinema melodramático como propunha a Atlântida.
Na história, dois irmãos negros, Renato e Miro (Aguinaldo Camargo e Grande Otelo respectivamente), cresceram na casa do rico Sr. Requião (Sérgio de Oliveira), que também adotou duas crianças brancas, Marta (Vera Nunes) e Hélio (Agnaldo Rayol). Enquanto Renato, apaixonado por Marta e determinado a concluir seus estudos em Direito, se mantém submisso, Miro comete pequenos delitos. Renato, compositor nas horas vagas, tem grande carinho pelo irmão caçula Hélio, que interpreta suas canções. Após se formar, Renato assume a defesa de Miro, acusado de crimes. Quando Walter Mendes (Jorge Dória), um golpista, tenta enganar Marta e o Sr. Requião, o amor fraterno é colocado à prova.
Tecnicamente muito bem realizado, "Também..." traz, contudo, a sua grande força nas atuações. É absolutamente tocante a interpretação de Grande Otelo, o maior ator que este país já teve, em um papel que é certamente um dos seus melhores em cinema e, talvez, o que mais dignifique sua genialidade interpretativa. No papel de Miro, ele consegue encontrar um equilíbrio dificílimo entre os arquétipos do negro revoltado, do malandro e do favelado, pegando as definições estudadas por João Carlos Rodrigues quanto à figura do negro na história do cinema brasileiro.
Mas não apenas Grande Otelo brilha. Aguinaldo Camargo, um dos frutos do TEN, assim como Ruth de Souza, que faz Rosália no filme. Dada a importância de seu personagem, Aguinaldo, no entanto, desempenha um papel essencial na construção maniqueísta da história de luta entre bem e o mal, cumprindo uma posição ideológica diretamente oposta a do seu irmão. Ele, um “homem da lei”; o irmão, um “fora-da-lei”. Ele é o típico “negro de alma branca” ao representar a superfície na qual o brancocentrismo o coloca; o irmão, ao contrário, não está nessa superfície, e, sim à margem. Um “marginal”.
Burle, que ainda dirigiria clássicas comédias musicais da Atlântida como ”Carnaval Atlântida”, de 1952, e “Quem Roubou meu Samba”, de 1959, conduz a história dramática com habilidade. Primeiramente, pelo fato de que não há concessões sentimentalistas. Os negros seguem sendo negros, os brancos seguem sendo brancos, a polícia segue sendo polícia e os ricos seguem segregando e dando as cartas. Igualmente, porque Burle consegue dar a este drama social a dose certa de chanchada, como as cenas musicais com Grande Otelo e do pequeno Agnaldo Rayol, bem como as de ação.
Porém, o roteiro é o que acende o filme. Alguns diálogos são primorosos. Um dos mais brilhantes da história do cinema brasileiro, inclusive, é o que abre este destoante filme do cinema brasileiro. Em pouco mais de 4 minutos e com atuações memoráveis, a conversa entre os irmãos no barraco de Renato, após Miro fugir da polícia pelas ruelas do morro, é exemplar. Devidamente salvo, Miro, então, passa a travar um diálogo com o irmão mais velho na qual é possível compreender e identificar elementos narrativos importantes a toda a continuidade do filme. Fica clara a relação existente entre os dois, o papel simbólico de cada um dentro da sociedade racista, o histórico de vida que os levou até ali e as diferentes aspirações. Tudo isso sem, contudo, tomar partido de ninguém. O espectador é quem, com os elementos cênicos e narrativos que lhe são informados, formará a sua opinião a partir de então.
Aguinaldo e Grande Otelo: dupla de atores negros de extremo talento
Nesta mesma cena, um desses elementos cênicos é especialmente simbólico: o contraste entre branco e preto nos sentidos físico e psicológico do termo. Perceptível desde a fotografia até o figurino, este aspecto se dá principalmente por conta da contraposição “sujeira x limpeza”. Explicando: ao fugir dos policiais pelas ruas enlameadas e sem estrutura urbanística de uma favela, Miro acaba por emporcalhar a bainha de sua calça clara, o que é imediatamente percebido por ambos e motivo de reprimenda do irmão mais velho para com o caçula. Porém, não se trata apenas de uma roupa suja como um inconveniente doméstico. Esta “sujeira” representa as ideias de mácula de caráter e de limpeza étnica alimentada pela sociedade pós-escravidão. É o próprio racismo, que age indistintamente sobre os dois personagens: um que o identifica e se revolta e o outro, que busca não enxergar para ser aceito pelo sistema e salvo da sua condição desumanizada.
Para uma sociedade preconceituosa e mal resolvida, ser negro é errado, pois ser negro é ser sujo, enquanto que o branco deve ser o padrão a se seguir. Além de desencadear a discussão entre os irmãos de um ponto tão central para a trama, a cena serve também para contrapor, mais adiante, outro momento importante da fita. Quando Renato está se dirigindo à cerimônia de formatura, onde acredita que receberá o diploma das mãos da irmã adotiva por quem é apaixonado, os vizinhos, num ato muito bonito do senso de comunidade dos negros, vão para a rua festejar sua conquista e estendem tábuas sobre o chão barrento para que este não manche suas calças e chegue ao destino limpo. No entanto, Renato volta para casa frustrado pela ausência da irmã, proibida pelo impositivo pai de comparecer à formatura. Resultado: Renato volta para casa mais cedo e não encontra mais o simbólico tapete vermelho sobre o chão para o salvar. Isso faz com que, justo ele, que sempre buscou responder à sociedade branca da forma como esta gostaria, acaba por sofrer a mesma indignidade que o irmão marginal. O racismo estrutural é implacável.
Dado como perdido por muitos anos, o filme foi restaurado pela Cinemateca Brasileira a partir de materiais remanescentes em 16mm. A cópia existente, ainda que com prejuízos no som e na imagem, preserva o filme em sua íntegra. Um trabalho de importância cívica, visto que “Todos...” é uma obra ousada e corajosa essencial para entender os processos que o povo preto enfrenta e como esses reflexos foram levados à popular arte do cinema. Nem mesmo o desfecho denota sentimentalismo, ainda que num contexto melodramático. A moral, imperiosa, age, assim, com pesos desiguais. Tanto que uma mentira é muito mais cabível para resolver uma questão jurídica do que um amor verdadeiro mas proibido.
A despeito de Burle ser um homem branco da alta sociedade carioca (justamente, o alvo de crítica do filme na figura dos Requião), o próprio título “Também...” contém, se não ingenuidade, certo simplismo advindo do perigoso (mas bastante vigorante à época) conceito de "democracia racial". Há, contudo, de se desculpar possíveis equívocos de uma obra datada de um momento histórico brasileiro em que recém se construía algum tipo de consciência negra, quanto mais por não saber manejar o que hoje se entende como letramento racial. Até porque, ainda hoje, o filme se mantém atual em diversos aspectos da questão antirracista, mesmo que ainda nem se pensasse em usar esse termo para designar o óbvio: que a verdadeira sujeira da alma é o racismo.
Ainda no calor da exibição, enquanto os créditos finais passavam, uma senhora sentada ao meu lado na lotada sala de cinema para a pré-estreia de “O Agente Secreto”, disse-me impressionada: "O Kleber não erra uma!". Nada mais fiz do que concordar com ela: Kleber Mendonça Filho não erra, repetindo, obra após obra, somente acertos. Neste seu quinto longa-metragem, estrelado por Wagner Moura e vencedor de diversos prêmios, dentre estes três no Festival de Cannes (Melhor Ator, Melhor Diretor e prêmio da Crítica FIPRSCI de Melhor Filme), o cineasta pernambucano apresenta mais um grande filme. Com um estilo próprio de filmar, Kleber, no entanto, não fecha seu cinema somente a um modelo. E aí talvez esteja o seu principal acerto.
Numa trama envolvente e sinuosa, a história de “O Agente...”, que estreia hoje nos cinemas, se passa no ano de 1977, durante o período da Ditadura Militar no Brasil, e conta a saga de Marcelo, um professor especializado em tecnologia que decide fugir de seu passado violento e misterioso. Ele se muda de São Paulo para Recife com a intenção de recomeçar a vida perto do filho. Porém, mesmo em plena semana de Carnaval, em que os ânimos estão exaltados pela festa do Momo, seus passos estão sendo vigiados, e ele percebe que a cidade que acreditou ser o seu refúgio é ainda mais perigosa para sua sobrevivência.
Kleber vale-se de muita habilidade narrativa para contar essa saga. Primeiro, que ele constrói um thriller que remete aos tradicionais filmes de espionagem dos anos 60 e 70, porém usando criatividade para fugir do óbvio. Nesse sentido, uma das melhores características do roteiro é o aspecto da frustração de expectativas e do deslocamento de suposições. Artifício empregado com maestria por cineastas como os irmãos Cohen (“Onde os Fracos não têm Vez” é exemplar nesse jogo narrativo), ambos recursos fazem com que a história surpreenda o espectador no seu desenrolar, ao mesmo tempo em que lhe tira a atenção se determinado elemento ou lhe "promete" entregar outros, mas sabiamente lhe frustra por lançar outra lógica no lugar.
Exemplo perfeito desse deslocamento intencional de sentido é a perna encontrada dentro da barriga de um tubarão no começo do filme. Por um lado, é algo que insere uma linha narrativa à trama, mas também amarra outros níveis narrativos mais simbólicos, do folclórico ("perna cabeluda") ao existencial (a impossibilidade de cidadãos honestos, transformados em refugiados políticos, em andar com as próprias pernas). Até mesmo o assassino de aluguel Vilmar (Kaiony Venâncio), em parte exitoso em seu serviço, é algoz e vítima ao mesmo tempo do perverso e violento sistema paralelo sustentado pelo regime militar brasileiro, visto que ele também é baleado justamente na perna.
Tânia Maria como d. Sebastiana: essencial para a trama
Essa amarração simbólica é um dos predicados de Kleber, o que torna seus filmes ao mesmo tempo únicos e similares. A grande qualidade de sua obra está em nunca se repetir, mas mantendo uma linha ideológica, narrativa e estética comum, que traz a cultura local, recifense, pernambucana e nordestina para um patamar de crítica. A barbárie e a violência humanas, por exemplo, são espelhadas na iminência do perigo do tubarão, comum nas praias de Recife, elemento presente em seu primeiro filme, “O Som ao Redor” (2012), e também em “Aquarius” (2016) e no documentário “Retratos Fantasmas” (2023). “O Agente...” é totalmente diferente destes três, assim como de “Bacurau” (2019, codirigido por Juliano Dornelles), mas todos, em maior ou menor grau entre si, trazem parecenças de estilo de filmar (os zoons in e out eficientes, as passagens entre cenas, os diálogos densos, a divisão em capítulos) como temáticas (o contexto político, a denúncia social, a oposição entre barbárie e humanismo).
O que resulta disso é mais uma obra impactante de Kleber, um filme empolgante que o coloca definitivamente entre os melhores realizadores do mundo em atividade ao lado de Yorgos Lanthimos, Sofia Coppola, Gaspar Noé e Jordan Peele. As 2 horas e 40 minutos de fita são aproveitadas internamente, sem qualquer excesso ou "barriga". Wagner, escolha perfeita para o papel, está deslumbrante, assim como Tânia Maria no papel de Dona Sebastiana, atriz veterana com quem o cineasta já havia trabalhado em "Bacurau" e que enxergou nela a possibilidade de aproveitar melhor seu talento. Deu muito certo, visto que Tânia - a quem empolgadas vozes vêm apontando-a como merecedora de indicação a Oscar pela atuação - recebe, desta vez, textos bastante bem elaborados, essenciais ao filme.
Já que se entrou nessa seara, então: e o Oscar? Parece cedo ainda para falar a respeito, visto que os favoritos, em geral, começam a surgir principalmente durante novembro e dezembro. São esses títulos de dentro da indústria e/ou responsivos ao contexto socio-politico-produtivo que saltam na frente em preferência.
Contudo, dá para arriscar o palpite de que “O Agente...”, dados os prêmios em Cannes e todo o eficiente marketing que vem ganhando - além, claro, da qualidade do filme - tem boas chances de emplacar indicações. A começar, pela de Filme Internacional, para o qual vem sendo bem cotado. Porém, é bem plausível supor que, na esteira de "Ainda Estou Aqui", brasileiro vencedor do Oscar de Filme Internacional do ano passado e concorrente na categoria de atriz, quando Fernanda Torres beliscou a estatueta, desta vez saia uma indicação para Melhor Ator para Moura, figura já conhecida do mercado norte-americano e internacional. Aposto também em indicação a Melhor Filme, assim como ocorreu com “Ainda...”, mas também de Direção para Kleber, cujo trabalho é naturalmente mais autoral do que o de Walter Salles em “Ainda...”, o que lhe pode contar pontos diante do novo contexto da Academia do Oscar, mais atenta a talentos de fora do eixo de anos para cá.
Previsões boas para um país como o Brasil, que vem despontando no cenário cinematográfico mundial de anos para cá e que parece manter-se assim. Talvez “O Agente...” supere “Ainda...” em indicações e, quiçá, em premiações - assim se espera - mas não em visibilidade de público nos cinemas brasileiros, visto que se trata de uma obra menos "palatável" do que a do filme de Waltinho, bem mais convencional em narrativa, o que o aproxima do espectador comum. Ou, quem sabe, depois que o filme estrear, a campanha de marketing, vultosa para os padrões brasileiros, não consiga atrair tanto público quanto o fenômeno de bilheteria “Ainda...”? Se propaganda serve para vender porcarias todos os dias, que sirva também para levar a um grande público coisas boas como “O Agente...”. Terá, enfim, a publicidade acertado alguma vez assim como Kleber, que acerta em todas.
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Trailer oficial de "O Agente Secreto"
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"O Agente Secreto"
direção: Kleber Mendonça Filho
elenco: Wagner Moura, Gabriel Leone, Maria Fernanda Cândido, Alice Carvalho, Udo Kier, Carlos Francisco, Hermila Guedes, Roney Villela
“Nem estou acreditando que estou chegando nos 50. Esse projeto não é só sobre mim: é sobre todas as pessoas que me ajudaram a não desistir”.
Criolo
Que Criolo é o cara da nova música brasileira, isso já se sabe. Que este músico paulista, iniciado no rap, desenvolveu-se em tudo que é gênero musical, do samba ao afrobeat, também não é novidade. Que é um poeta raro, idem. Que é um dos artistas mais inovadores e influentes da música brasileira contemporânea, igualmente é outra certeza, assim como que ele já ocupa o panteão dos grandes da MPB. Porém, o palco ainda era uma dúvida, pois parecia carecer de uma afirmação. Afinal, é ali que se confirma um grande artista. É onde sua alma é impressa. Já havíamos Leocádia e eu assistido alguns shows de Criolo pela tevê, uns melhores e outros nem tanto. Mas o que não era possível captar à distância era justamente aquilo que se pode confirmar na inesquecível apresentação deste artista no Araújo Vianna, em Porto Alegre: a impressão de sua alma. E ela estava lá.
Comemorando seus 50 anos de idade - uma vitória para um rapaz preto e da periferia num país aporofóbico e racista, como ele mesmo observou -, Criolo e sua ótima banda mandaram ver num show empolgante, pois bem realizado em todos os aspectos: som, luz, projeções/arte, narrativa, repertório e, o mais importante, sintonia com a plateia. O carisma, a vibe zen e o bonito vocal de Criolo, dotado de pouca extensão mas que funciona mais em estúdio, é compensado, no palco, pela energia e o vozeirão do MC e DJ DanDan, parceiro antigo. Eles comandam o show, que percorre, num apanhado cirúrgico, o repertório dos cinco álbuns solo de carreira de Criolo dando especial destaque aos excelentes "Nó na Orelha" (2011) e "Convoque seu Buda" (2014), e o seu último, "Sobre Viver" (2022), além do disco de samba "Espiral da Ilusão" (2017).
Foram só pedradas, novos clássicos da música brasileira. Começando por "Mariô" e "Duas de Cinco", que abrem a apresentação puxando versos impactantes: "Tenho pra você uma caixa de lama/ Um lençol de féu pra forrar a sua cama/ Na força do verso a rima que espanca/ A hipocrisia doce que alicia nossas crianças" ou "Compro uma pistola do vapor/ Visto o jaco califórnia azul/ Faço uma mandinga pro terror/ E vou". Seguiram-se "Sistema Obtuso" e "Esquiva da Esgrima", esta, das preferidas do público. Em "Ogum Ogum" e "Iemanjá Chegou", duas de "Sobre...", Criolo abre espaço para a religiosidade afro, assim como faz para outros dois blocos distintos. Um deles, o momento reggae, em que canta "Samba Sambei" e "Pé de Breque", além de um novo arranjo para o rap "Sucrilhos", agora ao estilo de Bob Marley.
A clássica "Subirodoistiozin" pondo o
público gaúcho para cantar
Outro ponto especial é a parte reservada ao samba, gênero que Criolo domina como poucos. O divertido partido-alto "Lá Vem Você" e o samba-canção engajado "Menino Mimado", ambas de "Espiral...", se juntam a "Linha de Frente", célebre samba de encerramento de "Nó..." ("O nó da tua orelha ainda dói em mim/ E Cebolinha mandou avisar/ Que quando a 'fleguesa' chegar/ Muitos pãezinhos há de degustar") em que Criolo já anunciava essa sua verve composicional.
Mais clássicos contemporâneos: "Grajauex", "Não Existe Amor em SP", cantadas em coro pelo público, e "Subirodoistiozin", que ganha, ao final, um arrasador arranjo drum 'n' bass do DJ DanDan. Para fechar, uma versão do samba triste de Benito Di Paula "Retalhos de Cetim" ("Mas chegou o carnaval/ E ela não desfilou/ Eu chorei na avenida, eu chorei...") e o matador rap-ninja "Convoque seu Buda" para encerrar, quando todos fizeram o tradicional movimento de balançar a mão de cima para baixo como nos clipes de hip hop.
Se faltava a Criolo o atestado do palco, o show do Araújo Vianna foi uma mostra de que, chegado aos 50 anos e experiente como artista, não falta nada mais a ele, Sua alma estava lá, definitivamente. E se lhe foi uma vitória chegar ao primeiro meio século, esperamos que o Brasil lhe oportunize a partir de agora novos 50 anos de brilho, dignidade e sucesso. Ele merece.
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Aguardando Criolo!
Começando o show com alta energia
Criolo em sintonia com o público
Seja rap, soul, samba, afrobeat: Criolo manda bem no que vier
Sessão de samba do show
A linda projeção completando a arte do espetáculo
O rap se mistura à musicalidade brasileira no trabalho de Criolo
"Adoro estar perto de crianças, porque elas são livres e brilhantes e te fazem acordar. Então, pensar sobre esse conceito do brilho das crianças foi o que serviu de modelo para eu escrever essas canções infantis".
Chick Corea
É interessante perceber como músicos acostumados a se experimentarem uma hora chegam à música infantil. Foi assim com Woody Guthrie, Carole King e Esquivel, assim como com os brasileiros Chico Buarque, Adriana Calcanhoto (sob o pseudônimo Partimpim), Paulo Leminski e Vinicius de Moraes. Até mesmo na música clássica, a se ver por Prokofiev, Debussy e Mozart. Há exemplos no jazz também, de Sammy Davis Jr., com seu “Sings the Complete ‘Dr. Dolittle’”, a Vince Guaraldi, que um dia foi escalado para compor as trilhas da série infantil televisiva Peanuts e ficou mundialmente conhecido justamente por esse trabalho.
Não é uma regra, mas quando esses músicos se tornam mães ou pais, há um motivo a mais para dedicarem canções aos pequenos. Chick Corea é um desses casos. No início dos anos 70, já uma lenda do jazz mundial, ele estava recém divorciado da mãe de seus filhos, Thaddeus e Liana, e casava-se pela segunda vez, agora com a também pianista Gayle Moran, esposa que o acompanhou até o final da vida, em 2021. Porém, os filhos ainda eram pequenos àquela altura. Como, então, afagá-los neste novo momento de suas vidas pessoais? Como mantê-los próximos a si? Não há confirmação sobre esta motivação, mas a resposta parece ter vindo, nada estranhamente, em formato de música. A coincidência dos períodos entre a nova configuração familiar, as primeiras composições com a temática da criança e o começo das improvisações solo ao piano dão a “Children’s Songs”, de 1984, este caráter.
Virtuose do piano, mas também um visionário da música contemporânea, Corea ajudou a moldar o curso do jazz moderno, influenciando gerações de músicos com sua habilidade técnica, ousadia harmônica e busca incessante pela inovação. Sua obra passa pelo hard bop, jazz fusion, latin jazz, eletrônico, vanguarda e música clássica. Escritas entre 1971 e 1983, as “Children’s Songs” captam, num grande poder de síntese e sensibilidade, vários aspectos de toda essa musicalidade em 20 peças e mais um “adendo” final.
A onipresença dos filhos na vida de Corea fez com que ele, inspirado na série “Mikrokosmos”, de 1940, do compositor húngaro Béla Bartók (uma de suas grandes influências), passasse a escrever, dentre outros diversos formatos, breves miniaturas de música infantil. Ele cria suas versões em composições ao mesmo tempo líricas e ricas em estrutura melódica e harmônica, que passeiam pelo romântico, pelo jazz, pelo folk e pelo pop. Na simplicidade lúdica das “Children’s Songs” há um trabalho complexo. Há paralelos estilísticos e estruturais com o ciclo de Bartók, como o uso das escalas pentatônicas, o emprego de compassos e de ritmos cruzados incomuns, a variedade de atmosferas sonoras em um tempo relativamente curto de cada peça e o aumento gradativo de dificuldade e complexidade ao longo da sequência.
A lúdica capa com os Smurfs de "Friends", de 1978, onde já tinham duas das "Children's Songs"
Traços desse repertório aparecem, a partir de então, em vários momentos de sua vasta produção musical, seja em carreira solo, em bandas ou parcerias. Uma versão mais lenta de "Nº 1" aparece pela primeira vez no álbum “Crystal Silence”, duo com Gary Burton, de 1972, e um ano depois junto da Return to Forever em “Light as a Feather”. A célebre banda de jazz fusion de Corea, entretanto, já havia prenunciado as “canções infantis” dentro da faixa "Space Circus Part I", constante no primeiro disco deles, “Hymn of the Seventh Galaxy”. Já os temas "Nº 5" e "Nº 15" surgem em “Friends”, de 1978, quando acompanhado dos músicos Steve Gadd, Eddie Gomez e Joe Farrell.
A ebulição elétrica da Return to Forever foi usada mais uma vez por Corea para trazer esses conceitos musicais dentro da extensa "Songs of the Pharoah Kings", que encerra epicamente o álbum “Where Have I Known You Before”, de 1974, a qual escondia, na verdade, a fuga “Nº 6”. Até mesmo o travesso tema "Nº 9" fez sua primeira aparição no álbum solo “The Leprechaun”, de 1976, como "Pixieland Rag".
Somente nos anos 80, agora desnudadas de qualquer arranjo ou grandes instrumentalizações, as “Children’s Songs” são reunidas e gravadas ao piano solo em julho de 1983, no Tonstudio Bauer, em Ludwigsburg, Alemanha, pelo selo ECM. A exceção é a última faixa, em que o Corea forma um trio de câmara com Ida Kavafian, ao violino, e Fred Sherry, no violoncelo. O alegremente elegante "Addendum", que fecha “Children's Songss”, demonstra a excelência contrapontística do pianista e a capacidade de compor para cordas, uma habilidade que surgiu em “The Leprechaun” e foi aprimorada ainda mais por ele no clássico “Mad Hatter”, de 1978.
Corea, que pretendia "transmitir simplicidade como beleza, representada no espírito de uma criança", como escreveu no encarte original do disco, não apenas conseguiu seu objetivo como entendeu ser importante não se eximir (e nem isentar a criança) de experimentar densidades musicais não tão comuns de serem dirigidas a esse público. Lances lúdicos, coloridos e graciosos se juntam à dramaticidade, melancolia e introspecção. E não necessariamente nessa ordem, como na impermanência da vida, algo essencial que um ser humano aprenda desde pequeno. E o objetivo principal foi atingido: os filhos Thaddeus e Liana sentiram-se devidamente afagados. E os fãs também.
Há um profundo amor quase impenetrável nos meandros de determinadas obras. Como na peça “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, de Plínio Marcos, no conto “Chacais e Árabes”, de Franz Kafka, ou num filme como “O Rito”, de Ingmar Bergman. Obras duras que ainda hoje digiro. Tão intrincados de perscrutar que a própria manifestação afetiva, vencida por motivos indignos, parece nem existir. Mas ela está lá, mais viva que se possa sugerir à primeira vista. É o caso do bom “Inverno da Alma” (EUA – Winter’s Bone, 2010), da diretora norte-americana Debra Granik, cujo enredo evoca sentimentos motivadores genuínos, mesmo que encobertos de rancores, medos e inseguranças próprios do ser humano.
Premiado em Sundance e Berlim, o filme, indicado ao Oscar de Melhor Filme, conta a história de Ree Dolly (Jennifer Lawrence), uma jovem de 17 anos cuja imensa responsabilidade de gerenciar com parcos recursos uma casa com dois irmãos pequenos e uma mãe mentalmente doente é ainda mais dificultada quando se vê necessitada a encontrar seu desaparecido pai, Jessup Dolly, depois que ele põe a mesma casa como garantia de sua liberdade condicional. Diante da possibilidade de perder o teto, Ree desafia os códigos e a lei do silêncio do inóspito e gélido vilarejo onde moram arriscando a vida para salvar sua família. O medo dos que, de alguma forma, estiveram envolvidos com seu criminoso pai, então, começa a se manifestar na forma de mentiras, defesas e agressividade.
Ree aborda várias pessoas na tentativa de encontrar Jessup. Mesmo assim, o fato de seu pai ter dívidas com muita gente parece tornar as barreiras para a verdade intransponíveis. Mas só parece. Um dos elementos utilizados pela diretora para narrar a história com sua lente segura e rigorosa são as diversas portas daquelas simples casas, ao mesmo tempo protetoras dos frios do inverno e da alma. A cada abordagem atrás de ajuda, a protagonista lança-se numa busca onde é preciso transpor as “portas” daquele “íntimo coletivo” magoado e culpado – e, por isso, instintivamente hostil.
Na primeira metade da fita, por mais que pudesse adentrar em algum lar, a tentativa é sempre nula, como se a esperança de chegar a seu único objetivo (encontrar o pai vivo ou morto) fosse imediatamente negada. Passagens que se fechavam. No entanto, o elemento simbólico dessa busca mantém-se na persistência da personagem, e é então que as atitudes passam a gerar consequências, e as soluções, de forma amarga e realista, aparecem. Seu próprio tio, Teardrop (o ótimo John Hawkes), irmão de Jessup (e tão “durão” quanto o consanguíneo), que de início lhe negara apoio, tentando com brutalidade demovê-la da empreitada, é quem, depois, convencido a ajudar a sobrinha, resgata-lhe dos inimigos com a verdadeira intenção de, a partir dali, protegê-la.
Sobre a questão da busca é impossível não referenciar o cinema iraniano, como o dos cineastas Abbas Kiarostami ou Mohsen Makhmalbaf, cujas obras são marcadas por esta representação simbólica. Eles direcionam o olhar do espectador de modo a se encontrar, junto com os protagonistas, aquele algo que existencialmente lhes faz falta. É o caso dos road movies “Vida e Nada Mais” (1992) e “Gosto de Cereja” (1999), de Kiarostami, e “Um Instante de Inocência” (1996), de Makhmalbaf, para ficar em três bons exemplos que vão exatamente nesta linha.
Provinda do cinema alternativo norte-americano, Debra tem, de certa forma, ligação com cinemas de fora do circuito comercial. Quando, no final dos anos 80, o cinema do Irã e de outras nacionalidades “exóticas”, como Japão (Kitano, Miike), Hong Kong (Kar-wai, Wang, Woo) e Dinamarca (von Trier, Vinterberg e a turma do Dogma 95), principalmente, ganharam mercado e trouxeram novas abordagens ao cinema mundial, a antenada produção alternativa dos Estados Unidos soube se aproveitar disso. O resultado foi que, com mais uma das tantas crises do cinemão americano, em meados dos anos 90, o consistente cinema alternativo, autoral por natureza, saiu somente das marginais projeções em Sundance para ganhar da situacionista Academia um espaço, agora, difícil de desocupar. Esse processo ainda em curso motiva, hoje, por exemplo, a conquista do Oscar de Melhor Filme de “Crash – No Limite” (Haggis, 2004) e a indicação ao mesmo prêmio de “Inverno da Alma”.
Ree com a família: desafio aos códigos e a lei do silêncio do inóspito e gélido vilarejo
Essa abordagem que o filme de Debra propõe dá-lhe, portanto, contornos diferenciados do modelo hollwoodiano. A fotografia entre o azulado e o acinzentado de “Inverno da Alma”, ressaltando a seca floresta de altos e opressores pinheiros, imprime uma sensação de solidão e mistério, contrastando com a tonalidade alaranjada dos enquadramentos de rostos, tudo pontuado por uma câmera quase que invariavelmente estática. Um pouco como “Fargo”, dos irmãos Coen (1996), inocência e subversão convivem num microuniverso à parte de tudo, escancarando um ser norte-americano interiorano longe dos belos tipos de Nova York ou Los Angeles comercialmente vendáveis ao mundo. Aqui, não: são gentes pobres e feias, enrugadas, de peles e cabelos maltratados, vestidas de jeans surrados e sem nenhum sinal de sensualidade (chega a ser estranho ver um filme americano onde nada é erotizado…).
A considerar os dois longas da diretora – seu outro, “Down to the Bone”, de 2004, retrata uma mulher presa em um casamento e que luta para criar seus filhos e controlar o hábito secreto de se drogar –, percebe-se um olhar bastante humanístico e sensível sobre questões muitas vezes obscuras da vida social norte-americana, como os vícios, as desarticulações familiares e as pressões psicológicas impostas por aquela sociedade. Longe da exuberância fotográfica e mais próxima das composições visuais precisas, o estilo de Debra vale-se de um enxergar amplo das coisas, direcionando suas lentes a questões sociais e operando do externo para o interno, o que gera reações íntimas e profundas nos personagens.
Hawkes, muito bem, concorreu ao Oscar de ator coadjuvante naquele ano
É neste pequeno mundo que, impulsionada por um desejo convicto, Ree enfrenta com coragem suas manifestas limitações: a solidão da liderança, a angústia da vida pobre, os medos, a fragilidade física de menina num recinto bruto. Isso, motivada pela autoproteção e pelo amor sincero – mesmo sem sorrisos – aos que lhe dependem. Ela transforma, assim, aquela realidade aparentemente congelada pelo frio dos corações. Jessup, segundo o irmão, não tivera essa força interna para conseguir desviar-se da contravenção e viver em paz com os filhos que tanto amava. A ternura descomplicada de Ree se estende não só aos irmãos e a mãe, mas a esta sombria figura do pai, cuja investigação acaba por lhe abrir espaço a um novo e inesperado motivo, identificando-o tanto na figura do tio, quanto no significado que a busca em si passa a representar: um encontro consigo mesma. Tal pai, tal filha.Há uma cena em que Ree folheia com os irmãos um álbum de fotografias onde reveem fotos da família. Numa delas, está o pai, jovem e feliz ao sol. Segundo Ree, quando tinha sua idade. Essa identificação parece, aos poucos, funcionar como libertadora da jovem quanto às preconcepções de sua origem nefasta, tão alardeadas e imputadas por todos como sendo inatas dos Dolly.
Curiosamente, a forma como a Ree prova a morte do pai para, enfim, poder ficar com a casa, é levando ao delegado as mãos do morto, cortadas por uma motosserra. E por serem justamente as mãos, o aspecto do inatismo reaparece como metáfora, lembrando a dicotomia levantada por um dos clássicos do cinema expressionista alemão, “As Mãos de Orlac – O Calvário de Um Artista”, de Robert Wiene (1924) – mesmo diretor do essencial “O Gabinete do dr. Caligari”. No filme, o pianista Paul Orlac sofre um acidente de trem onde perde as mãos. Na cirurgia de emergência, transplantam-lhe as mãos do assassino Vasseur, que acabara de ser executado. Ao saber disso, o sensível músico entra em um grande conflito interno que o leva à loucura: passa a, igualmente ao “dono” das mãos, matar com elas. As mãos de Orlac assumem o caráter de um símbolo: instrumentos da vontade que comanda o fazer, pelo qual o homem revela sua humanidade ou desumanidade, elas são um signo material do sujeito, tanto como objeto da expressão dos sentimentos quanto demonstração objetiva da personalidade.
Não à toa, é com um sutil toque no ombro do seu tio que Ree, mesmo temerosa, demonstra-lhe empatia, firmando ali o elo emocional entre os dois. Ao tomar consciência da própria personalidade, as coisas começam a tomar rumos que, de uma forma ou outra, acabam se encaixando. Pela iniciativa de alguém para mudar o cenário, os corações, agora timidamente sorridentes, parecem motivar-se a se aquecer. “Vida e nada mais”.