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| Flores de Aço foto: Cly Reis |
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| Uma das belas casas em estilo eclético do inicio do século 20 do complexo arquitetônico Vila Belga |
Mas a sorte não me desamparou. O hotel onde fiquei hospedado, na região Central da cidade, era bem próximo de um verdadeiro patrimônio histórico, arquitetônico, urbanístico e cultural do Rio Grande do Sul, que é a Vila Belga, uma das primeiras experiências de conjunto residencial operário do Brasil. Série de edificações em estilo eclético construídas pela empresa belga Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil, entre 1905 e1907, destinavam-se à moradia dos funcionários de menor escalão da companhia, responsável pela Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFRGS) e que tinha em Santa Maria sua sede e ponto estratégico.
O conjunto conta com 84 unidades residenciais, as quais somam-se ainda a sede da Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea, seu clube e cinco armazéns, que foram projetados pelo engenheiro belga Gustave Vauthier, à época, o próprio diretor da Auxiliaire.
Com parte conservada, outra não (mesmo que tombada pelo Iphae); parte ocupada, outra não; parte reformada, outra não, o passeio pelas ruas que acessam a Vila Belga é daqueles lances em que se entra num túnel do tempo. Além de materializar um momento histórico (e pujante) de uma cidade que um dia foi polo do transporte ferroviário brasileiro naquele início de século XX. Com o forte investimento na indústria e no transporte automotivo a partir dos anos 50, junto com a paulatina desaceleração (com o perdão da palavra) e sucateamento da linha férrea, hoje a Vila Belga representa algo que, no fundo, não precisaria ser associada somente ao passado. Quanto o país economizaria se tivesse ampliado ou simplesmente mantido suas ferrovias... Enfim, a sorte age para os dois lados sempre.
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| Entrando numa das ruas da Vila Belga |
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| Efeitos da ação do tempo |
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| Um dos postes de luz preservados da arquitetura original |
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| Outra rua da Vila Belga, que se estende até o passado |
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| Uma das casas bem preservadas... |
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| ... e, do outro lado, uma mal conservadas |
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| 31 |
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| As casas dando vista para um dos vários morros que rodeiam Santa Maria |
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| Sem teto e sem vida |
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| Mais um conjunto de casas da Vila Belga |
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| Metal on metal |
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| Um gatinho preto atrás das folhagens |
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| Escada verde |
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| A rosa branca levando paz para a antiga vila operária |
Que Criolo é o cara da nova música brasileira, isso já se sabe. Que este músico paulista, iniciado no rap, desenvolveu-se em tudo que é gênero musical, do samba ao afrobeat, também não é novidade. Que é um poeta raro, idem. Que é um dos artistas mais inovadores e influentes da música brasileira contemporânea, igualmente é outra certeza, assim como que ele já ocupa o panteão dos grandes da MPB. Porém, o palco ainda era uma dúvida, pois parecia carecer de uma afirmação. Afinal, é ali que se confirma um grande artista. É onde sua alma é impressa. Já havíamos Leocádia e eu assistido alguns shows de Criolo pela tevê, uns melhores e outros nem tanto. Mas o que não era possível captar à distância era justamente aquilo que se pode confirmar na inesquecível apresentação deste artista no Araújo Vianna, em Porto Alegre: a impressão de sua alma. E ela estava lá.
Comemorando seus 50 anos de idade - uma vitória para um rapaz preto e da periferia num país aporofóbico e racista, como ele mesmo observou -, Criolo e sua ótima banda mandaram ver num show empolgante, pois bem realizado em todos os aspectos: som, luz, projeções/arte, narrativa, repertório e, o mais importante, sintonia com a plateia. O carisma, a vibe zen e o bonito vocal de Criolo, dotado de pouca extensão mas que funciona mais em estúdio, é compensado, no palco, pela energia e o vozeirão do MC e DJ DanDan, parceiro antigo. Eles comandam o show, que percorre, num apanhado cirúrgico, o repertório dos cinco álbuns solo de carreira de Criolo dando especial destaque aos excelentes "Nó na Orelha" (2011) e "Convoque seu Buda" (2014), e o seu último, "Sobre Viver" (2022), além do disco de samba "Espiral da Ilusão" (2017).
Foram só pedradas, novos clássicos da música brasileira. Começando por "Mariô" e "Duas de Cinco", que abrem a apresentação puxando versos impactantes: "Tenho pra você uma caixa de lama/ Um lençol de féu pra forrar a sua cama/ Na força do verso a rima que espanca/ A hipocrisia doce que alicia nossas crianças" ou "Compro uma pistola do vapor/ Visto o jaco califórnia azul/ Faço uma mandinga pro terror/ E vou". Seguiram-se "Sistema Obtuso" e "Esquiva da Esgrima", esta, das preferidas do público. Em "Ogum Ogum" e "Iemanjá Chegou", duas de "Sobre...", Criolo abre espaço para a religiosidade afro, assim como faz para outros dois blocos distintos. Um deles, o momento reggae, em que canta "Samba Sambei" e "Pé de Breque", além de um novo arranjo para o rap "Sucrilhos", agora ao estilo de Bob Marley.
Outro ponto especial é a parte reservada ao samba, gênero que Criolo domina como poucos. O divertido partido-alto "Lá Vem Você" e o samba-canção engajado "Menino Mimado", ambas de "Espiral...", se juntam a "Linha de Frente", célebre samba de encerramento de "Nó..." ("O nó da tua orelha ainda dói em mim/ E Cebolinha mandou avisar/ Que quando a 'fleguesa' chegar/ Muitos pãezinhos há de degustar") em que Criolo já anunciava essa sua verve composicional.
Mais clássicos contemporâneos: "Grajauex", "Não Existe Amor em SP", cantadas em coro pelo público, e "Subirodoistiozin", que ganha, ao final, um arrasador arranjo drum 'n' bass do DJ DanDan. Para fechar, uma versão do samba triste de Benito Di Paula "Retalhos de Cetim" ("Mas chegou o carnaval/ E ela não desfilou/ Eu chorei na avenida, eu chorei...") e o matador rap-ninja "Convoque seu Buda" para encerrar, quando todos fizeram o tradicional movimento de balançar a mão de cima para baixo como nos clipes de hip hop.
Se faltava a Criolo o atestado do palco, o show do Araújo Vianna foi uma mostra de que, chegado aos 50 anos e experiente como artista, não falta nada mais a ele, Sua alma estava lá, definitivamente. E se lhe foi uma vitória chegar ao primeiro meio século, esperamos que o Brasil lhe oportunize a partir de agora novos 50 anos de brilho, dignidade e sucesso. Ele merece.
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| Aguardando Criolo! |
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| Começando o show com alta energia |
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| Criolo em sintonia com o público |
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| Seja rap, soul, samba, afrobeat: Criolo manda bem no que vier |
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| Sessão de samba do show |
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| A linda projeção completando a arte do espetáculo |
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| O rap se mistura à musicalidade brasileira no trabalho de Criolo |
O que vimos no Masp foi, no entanto, uma mostra de sua maestria em 12 pinturas, que ficaram expostas no novo prédio do museu, o edifício Pietro Maria Bardi, ao lado do famoso edifício do mesmo museu, na Av. Paulista, até final de agosto dentro do ciclo Cinco Ensaios sobre o Masp. A seleção, embora diminuta, oferece um panorama abrangente da trajetória do artista. Dentre elas, estão as pinturas de alguns dos seus filhos, Claude e Jean, usando técnica de tinta a óleo opaca.
Conhecido por seus retratos femininos, os da condessa de Pourtalès, óleo sobre tela de 1877, bem como o de Marthe Bérard, de dois anos adiante, são exemplares em técnica. Lindo também o retrato "Menina com as espigas", em que a vivacidade dos olhos contrasta com a pincelada difusa do entorno do rosto.
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| "Retrato da condessa de Pourtalès", uma das 12 belas obras de Renoir expostas no MASP |
Porém, é impossível não vidrar naquele que é talvez o seu quadro mais conhecido: "Rosa e azul – As meninas Cahen d’Anvers" (1881), que retrata as pequenas Elisabeth e Alice, tão maravilhosamente pintado, que dá a impressão de que elas estão vivas. Ele não se opunha ao movimento dos seus modelos durante o ato da pintura, o que dava um caráter naturalista e bastante moderno à sua arte.
Há também os belos nus “Lise à beira do Sena” (1870) e “Banhista enxugando o braço direito” (1912). Contudo, não era só com o pincel trabalhava Renoir: também tem a imponente escultura em bronze “Vênus Vitoriosa”, de sua última fase, e que muito lembra suas rechonchudas banhistas.
Para finalizar esse breve, mas empolgante passeio pela obra de Renoir, um realista retrato, “O pintor Le Coeur caçando na floresta de Fontainebleau” (1866), em que o destaque maior fica não para o retratado, mas para a cena na natureza e a forma como o artista mistura as cores. Privilégio ver Renoir, assim, presencialmente, mesmo que numa pequena amostragem de sua grande obra.
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| O filho Claude retratado pela palheta do pai |
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| Outro filho pequeno, o posteriormente ilustre Jean, em "Quatro Cabeças" (1903-04) |
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| Esmero dos retratos femininos (Marthe Bérard) |
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| O impressionante realismo de "Menina com as espigas" |
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| Por falar em impressionante, o que dizer de "Rosa e Azul", um dos quadros mais famosos do mundo? |
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| Os nus, que remete à Mitologia Grega |
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| A banhista de Renoir |
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| Já no fim da vida, o artista aventurou-se com excelência na escultura |
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| Retrato sob uma perspectiva diferente e inovadora para a época |
Projeto coletivo pioneiro iniciado em 1944 por Abdias
Nascimento, o TEN foi criado para transformar, por meio do teatro, “as
estruturas de dominação, opressão e exploração raciais implícitas na sociedade
brasileira dominante”. Ativo e militante nos palcos até a década de 1960, o
grupo desenvolveu obras de forte impacto, enfrentou o racismo e abriu caminhos
para a formação e o reconhecimento de expoentes como Ruth de Souza e Léa
Garcia.
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| A magnífica arquitetura interna do Instituto recebendo a expo sobre o TEN |
Presenciar essa exposição fotográfica foi um reencontro. Primeiro, no que se refere ao Instituto Tomie Ohtake, o belíssimo prédio em homenagem à artista visual nipo-brasileira projetado pelo seu filho, o arquiteto Ruy Ohtake e o qual havia conhecido em 2010, em visita a São Paulo na companhia de minha mãe. Desta vez, a parceria foi de Leocádia, que pisava neste espaço cultural pela primeira vez como eu fazia há 15 anos. Hoje, é possível perceber que a programação do local conta com diversas atividades e parcerias que tocam na questão da negritude, seja por meio de cursos, debates, exposições, etc.
Mas o reencontro maior se deu, claro, pelo objeto da
exposição: o TeatroExperimental do Negro. No curso sobre cinema negro que ministro,
há cruzamentos que traço com o TEN, como a presença dos atores Aguinaldo
Camargo e Ruth de Souza em um dos filmes clássicos dessa temática no Brasil, “Também
Somos Irmãos”, de 1948, que bebe bastante na fonte da companhia teatral através
do conceito de atuação e, mais que isso, no protagonismo dado a eles e à
questão racial, bastante abafada àqueles idos.
Além de Ruth, Léa e Aguinaldo, já mencionadas, as fotos de
Medeiros trazem outras figuras emblemáticas das artes cênicas pretas
brasileiras, como Haroldo Costa, Marina Gonçalves, José Monteiro, Renée
Ferreira e, claro, o próprio Abdias, descrito pelo Ipeafro como o mais completo
intelectual e homem de cultura do mundo africano do século XX. Poeta, escritor,
dramaturgo, artista visual e ativista pan-africanista, é ele quem mobiliza as
ações do TEN, montando a pioneira peça “O imperador Jones”, em 1945, e diversas
outras, como “Todos os Filhos de Deus têm Asas” (1946), “Auto da Noiva” (1947)
e “Othello” (1949).
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| Abdias, a mente pro trás do TEN |
Na sequência, alguns registros das fotos de José Medeiros, que carregam a força e a expressividade da arte preta brasileira nos palcos e nos seus arredores de coxias, camarins e ensaios. As fotos mesmo falam por si, tendo em vista que algumas foram tiradas em condições de iluminação precárias, mas que, mesmo assim, e com muita habilidade técnica do fotógrafo, existiram. Persistiram. Resistiram.
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| Então, vamos à exposição! |
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| Ensaio da peça O filho pródigo, com Ruth de Souza, Abdias Nascimento, José Monteiro, Aguinaldo Camargo, Marina Gonçalves e Roney da Silva |
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| Ruth de Souza e Ilena Teixeira na peça "Todos os filhos de Deus têm asas" |
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| Ruth novamente, em Othello, totalmente diva negra |
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| Elenco masculino ensaiando a pioneira peça "O Imperador Jones", de 1945 |
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| Abdias e Léa Garcia em cena: que dupla |
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| Detalhe de cena com Aguinaldo Camargo e Fernando Araújo |
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| A Orquestra Afro-Brasileira, que mantinha parceria com o TEN |
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| José Medeiros captou também o momento de pausa na aula de balé |
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| O jovem Haroldo Costa |
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| Aula de alfabetização oferecida pelo TEN à comunidade preta dos anos 40. Revolucionário |
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| Em "Filhos de santo", Addias contracena com Ruth (1949) |
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| Retratos: Haroldo, Abdias, Ruth e Léa |
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| Foto imperfeita tecnicamente, mas brilhante em expressividade |
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| Outro pioneirismo do TEN: o jornal Quilombo, publicação só sobre assuntos da negritude |
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| A bela Renée Ferreira em "Aruanda", de 1948 |
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| Outra preciosidade de José Medeiros: Abdias e Léa encenando Shakespeare |