Lars Von Trier é na minha opinião,
provavelmente, o maior realizador do cinema atual, e quando digo
realizador o faço para ser bastante amplo e não me restringir à
direção. Falo de concepção, estética, autonomia, intenção,
autoralidade, versatilidade, influência, tudo isso junto e, nisso
tudo, no momento, ele mostra-se à frente de seus contemporâneos. É
verdade que acabou metendo os pés pelas mãos por declarações
infelizes no Festival de Cannes de 2011 e por conta disso ganhou a
antipatia de muita gente mas por outro lado parece também que a
crítica e o público acabou confundindo as supostas preferências do
diretor com o julgamento de sua obra, passando a tratá-lo com
extrema má vontade a partir do ocorrido.
“Melancolia”, filme que então
estava sendo exibido naquele Festival de Cannes, acabou sendo um dos
mais prejudicados com a polêmica, já sofrendo as consequências no
próprio evento com algumas vaias e zombarias, vendo em seguida sua
reprovação estender-se em forma de desconfiança por parte do
público nos cinemas e locadoras. Mas o fato é que a qualidade falou
mais alto e, aos poucos, “Melancolia” foi conseguindo apaziguar
os ânimos e ocupar seu devido lugar como um dos grandes filmes dos
últimos tempos.
O belíssimo prólogo, com imagens em câmera lenta que
antecipam a catástrofe de maneira incrivelmente plástica e poética
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Uma fantasia sobre o fim do mundo
filmada com extrema sensibilidade estética e humana, captando já na
introdução, em câmera super lenta ao som de Wagner, imagens de uma beleza quase
hipnótica onde, de uma forma incrivelmente plástica, já se anuncia a
inevitável catástrofe do choque de um planeta contra a Terra. Logo em seguida numa festa de casamento ânimos, humores e vão se
alterando, mostrando as verdadeiras faces das pessoas envolvidas na
cerimônia, inclusive da própria noiva, vivida por Kirten Dunst,
cuja personagem dá nome à primeira metade do filme: "Justine".
Justine chega à festa do próprio casamento na
luxuosa casa do cunhado exibindo alguma animação, mas é uma alegria que
parece imposta a si mesma diante do fato de estar casando e TER que
mostrar-se feliz. Aos poucos, no entanto, a artificialidade do ambiente, a
falsidade dos convidados, as discussões dos pais, a pressão do
patrão, a inexpressividade suplicante do futuro esposo, a fazem ir
ao extremo oposto da alegria, estragando com a festa, com o
casamento, com o emprego e, como vemos na segunda parte, que leva o
nome da irmã, "Claire", com a própria vida.
O jogo de poses e aparências
no frustrado casamento
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Na segunda parte, vivendo na casa da
irmã, interpretada por Charlotte Gainsbourg, quase catatônica depois dos acontecimentos de seu casamento
não acontecido, Justine parece sem ânimo nem reação a nada.
Assim, sob a expectativa da passagem muito próxima à Terra de um
planeta, o Melancolia, Justine convive com a irmã, muito solícita,
interessada, mas impotente em relação à irmã, o egoísta e
materialista cunhado vivido por Kiefer Suterland e o sobrinho uma
criança que vive a expectativa do fenômeno astrológico com a
curiosidade de quem desconhece o risco que a proximidade dos planetas
pode oferecer.
A proximidade do Melancolia vai, desde a
noite do casamento quando já pode ser notado muito discretamente
brilhante no céu, de alguma forma operando gradualmente no comportamento das pessoas, especialmente no de Justine que, na segunda metade, depois da festa, que funcionara nela como uma espécie de revelação, parece ter desistido da humanidade e vê a iminência da catástrofe quase que como um juízo final, um final merecido para uma raça humana que já está moralmente destruída.
Com a irmã frágil e cada vez mais desesperada pelo fim do mundo e com o insuportável cunhado tentando o tempo todo enganar-se de que o impacto não ocorrerá, o último último laço afetivo de Justine com a humanidade parece ser seu sobrinho Leo, um garoto por quem guarda grande carinho e que, por sua vez, vê com curiosidade e tristeza a "Tia Invencível", apelido originado em momentos mais corajosos da protagonista, em estado lamentável, depressiva, indiferente, desinteressada e à parte do mundo.
O diretor sabidamente cético, descrente, amargo, demonstra o tempo todo seus sentimentos pessimistas em relação ao homem, como o desprezo, a decepção, a desesperança, mas no final, com a inevitável colisão entre os planetas, sinaliza com uma ponta de esperança no ser humano, com uma derradeira demonstração de piedade e amor, quando a Tia Invencível coloca a irmã apavorada e o sobrinho em uma suposta "Caverna Mágica", uma espécie de cabana montada com galhos onde segundo ela estariam "invulneráveis" a qualquer efeito do impacto, numa das cenas mais lindas e marcantes que o cinema produziu nos últimos tempos.
"Melancolia" me lembra muito um outro filme do qual sou grande admirador, que é "O Sacrifício", de Andrei Tarkovsky. O filme do cineasta russo também traz uma situação de uma família praticamente isolada em algum lugar remoro enquanto o mundo, por outro motivo na verdade, também se encaminha para o fim de seus dias. De maneira menos amarga que na obra de Trier, "O Sacrifício" de Tarkovsky também traz o componente do exame da natureza humana, a observação da reação do indivíduo diante do pânico e elementos como a renúncia, o desespero e a compaixão que também aparecem em "Melancolia". E talvez não na mesma dimensão que "O Sacrifício", mas "Melancolia" é uma dessas novas obras-primas do cinema.
"Melancolia" me lembra muito um outro filme do qual sou grande admirador, que é "O Sacrifício", de Andrei Tarkovsky. O filme do cineasta russo também traz uma situação de uma família praticamente isolada em algum lugar remoro enquanto o mundo, por outro motivo na verdade, também se encaminha para o fim de seus dias. De maneira menos amarga que na obra de Trier, "O Sacrifício" de Tarkovsky também traz o componente do exame da natureza humana, a observação da reação do indivíduo diante do pânico e elementos como a renúncia, o desespero e a compaixão que também aparecem em "Melancolia". E talvez não na mesma dimensão que "O Sacrifício", mas "Melancolia" é uma dessas novas obras-primas do cinema.
Trier pode ser controverso, um chato, pode às vezes se arriscar demais, pode errar a mão de vez em quando, mas é um dos poucos diretores que ainda conseguem propor um cinema autoral de qualidade resultando em obras inegavelmente singulares e relevantes. "Melancolia" é mais uma destas obras, um filme que faz refletir sobre a condição humana e se a maior catástrofe talvez não seja no que se tornou a civilização. Não que o Melancolia, o planeta, seja proposto pelo diretor como uma punição ao Homem, um castigo, mas faz pensar que diante de tudo o que acontece no planeta Terra, talvez um enorme planeta em rota de colisão seja o menor dos nosso problemas.
Os três na cabana "à prova de tudo" e o Melancolia aproximando-se inexorável e ameaçadoramente. Cena lindíssima. |
Cly Reis
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