"EXISTEM MARÉS
E EXISTE A LUA (...)
EXISTEM
CANÇÕES"
(do texto do encarte do disco)
O imenso sucesso do terceiro disco da Legião Urbana, “Que
País É Este”, gerou uma enorme expectativa pelo lançamento do seu sucessor, até
porque, embora extremamente exitoso em vendas e nas paradas, “Que País É este”
era uma espécie de coletânea de material não lançado porém já conhecido por
parte do público. Esperava-se então uma novidade, supostamente de material
composto desde o grande "Dois" , de 1986. O que sabia-se há muito, desde
praticamente o andamento da turnê do terceiro, era que o trabalho seguinte
chamar-se-ia, “As Quatro Estações”. Conhecido o nome, que de certa forma
continuava a seqüência numérica interrompida pelo último disco, (“Legião
Urbana” de 1985, conhecido como “Um” por não ter nome e “Dois” de 1986) começavam
as especulações sobre como viria a Legião para este novo trabalho. Se seguiria
a linha do "Dois" que na verdade, em termos de ineditismo era o antecessor
imediato; se a veia punk resgatada em “Que País É este” seria a tônica a partir
daquele momento; se o modelo cancioneiro, quase acústico de "Faroeste Caboclo"
prevaleceria. As possibilidades eram muitas. Renato Russo avisava que voltaria
a utilizar material antigo do Aborto Elétrico e sinalizava com as gravações de
“Dado Viciado” e “Marcianos Invadem a Terra”, duas conhecidas do público de
Brasília mas não lançadas em disco e que acabaram só aparecendo mesmo muitos
nos depois na coletânea póstuma “Uma Outra Estação”. Mas os planos mudaram,
tudo mudou, fatos novos aconteceram, a banda mudou, a cabeça do vocalista mudou
e o lançamento prometido para o início de 1988 foi sendo postergado por
diversas vezes. Primeiro, inesperadamente para os fãs, Renato Rocha, o baixista
competente de bases firmes e sangue punk foi afastado da banda em
circunstâncias naquele momento pouco esclarecidas. Isso teria gerado a primeira
mudança de rumo e afastamento da idéia inicial, já concebida e em fase de
maturação para o novo álbum. Em segundo lugar, o estado emocional de Renato
Russo, deprimido, confuso e se reavaliando, repensando novamente então o
conceito que pretendia desenvolver no projeto. Depois ainda, resultado dessa
autoavaliação com certeza, Renato Russo decidia, neste meio tempo, assumir sua
homossexualidade, fator importante e decisivo para o resultado final do
trabalho, mas que naquele momento fazia com que novamente alguma coisa fosse
revista, excluída, incluída no trabalho. Assim, somente depois de 3 anos, era
apresentado o tão esperado “As Quatro Estações” da Legião Urbana e a sensação
quando se ouviu foi a de que valeu a pena esperar.
Com um Renato Russo mais equilibrado depois de tantas
complicações, a Legião, agora um trio, nos brindava com um disco mais leve,
mais otimista, mais espiritual, que como o próprio Renato afirma no encarte do
álbum, não fora feito sem ajuda, valendo-se desde a Bíblia à filosofia oriental
para compor uma das grandes obras da discografia nacional.
A lindíssima “Monte Castelo”, de sonoridade medieval, com
letra praticamente tirada do soneto “O Amor é o fogo que arde sem se ver” de
Camões, refrão adaptado da Epístola de São Paulo, com toques do “Tao Te King”
do filosofo chinês Lao Tse, é bom exemplo de todos os pontos levantados: da ‘ajuda’ externa, da espiritualidade e do
otimismo. “Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto” também serve de amostra
dessa aura positiva, esperançosa e mística de Renato e da banda. Sobre uma
contagiante levada de violão, Renato convoca-nos (como sempre) a reagir e fazer
um mundo melhor. Detalhe: toda a parte do “tudo é dor e toda a dor vem do
desejo de não sentirmos dor” é de uma doutrina budista creditada a Bukkyo Dendo Kyokai, mais um dos
inusitados ‘parceiros’ de autoria no disco.
A propósito de parceiros, mas agora em outro sentido, Renato
Russo aproveita o disco pra se libertar e gritar para o mundo o que realmente
é, e o faz especialmente no gostosíssimo rock “Meninos e Meninas” e na grave
“Maurício”; fazendo, por sua vez, menção também à AIDS, que mais tarde lhe
vitimaria, na excelente “Feedback Song For a Dying Friend”, um hard rock
agressivo, guitarrado, cantado em inglês, finalizado com um instrumental árabe
extasiante.
“Pais e Filhos” um dos grandes sucessos do disco é um blues
acústico que coloca diversas situações familiares desde um aguardado nascimento
de uma criança até um suicídio por falta de atenção, nos lembrando de um
princípio básico da vida, num dos refrões mais conhecidos da música nacional (“é preciso amar as pessoas como se não
houvesse amanhã porque e você parar pra pensar na verdade não há”).
Com uma condução lenta, pontuada por um bandolim e com
teclados soando como sinos, “Eu Era um Lobisomem Juvenil” é uma das poucas que
soa um pouco mais lamentosa pela desilusão amorosa que expõe, mas no fundo
falando mesmo simplicidade de espírito, de alegrias comuns, de coisas
corriqueiras que parecem desimportantes mas que são na verdade a verdadeira
vida.
O disco é tão positivo que até uma romântica como “Sete
Cidades”, rock básico conduzido por uma harmônica muito legal, não chega a ser
uma canção de amor sofrida como em muitos casos, servindo mais como uma espécie
de instrumento de autoconhecimento e resignação do que uma dor-de-cotovelo
clássica.
A primeira faixa de trabalho do disco, a smithiana “Há Tempos”, impressionava
pela objetividade e contundência das sentenças manifestando, nesta sim, um
certo desapontamento e preocupação com a juventude em um daqueles hinos
característicos de Renato dirigidos à sua ‘geração Coca-Cola’. “Há Tempos”
também tem colaborações externas assumidas e o segundo verso (“muitos temores nascem do cansaço e da
solidão”) é adaptado da “Desiderata”, obra do filósofo-poeta Max Ehrmman.
A punkzinha “1965 (Duas Tribos)” também aborda um tema
desagradável, a tortura e a ditadura militar, mas no fim das contas propõe uma
volta por cima e cobra uma atitude positiva (“eu quero tudo pra cima”)
“As Quatro Estações” termina com “Se Eu Fiquei Esperando Meu
Amor Passar”, outra canção romântica de composição simplória e delicada e que
confirma toda a espiritualidade do disco encerrando com os versos do rito
litúrgico “Cordeiro de Deus”.
E num momento equilibrado de Renato, tranquilo da banda, os
abençoados éramos nós, os fãs, por recebermos depois de tanta espera um disco
iluminado como aquele “As Quatro Estações”. Fresco como um dia de outono, gostoso como um dia de primavera, não sem ser severo como um dia frio de inverno, mas, sobremaneira, ensolarado como um dia de verão.
FAIXAS:
- "Há Tempos" (Villa-Lobos/Russo/Bonfá) –
3:18
- "Pais e Filhos" (Villa-Lobos/Russo/Bonfá) – 5:08
- "Feedback
Song for a Dying Friend" (Villa-Lobos/Russo/Bonfá) –
5:25
- "Quando o Sol Bater na Janela do Teu
Quarto" (Villa-Lobos/Russo/Bonfá) – 3:13
- "Eu Era um Lobisomem Juvenil" (Villa-Lobos/Russo/Bonfá) – 6:45
- "1965 (Duas Tribos)" (Villa-Lobos/Russo/Bonfá) – 3:44
- "Monte Castelo (Renato
Russo) – 3:50
- "Maurício" (Villa-Lobos/Russo/Bonfá) –
3:17
- "Meninos e Meninas" (Villa-Lobos/ Russo/Bonfá) – 3:23
- "Sete Cidades" (Villa-Lobos/Russo/Bonfá) – 3:25
- "Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar" (Villa-Lobos/Russo/Bonfá) 4:56
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Ouça:
Arrasou no texto,muito bom.
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