“Eu não falo porque quero salvar alguém. Eu falo porque gosto. Quem sou eu para salvar alguém? Eu é que tenho que me salvar!”
“Minha geração sempre foi tachada de vazia e idiota. Eu não podia fazer uma besteira.”
Renato Russo
Lembro que ganhei o
“Dois” em cassete num Natal. O rock Brasil estava em plena efervescência, “Tempo Perdido” tinha estourado havia pouco tempo e todo mundo queria ter discos de Titãs, RPM, Legião. Pedimos de presente então, eu, o novo do Legião Urbana, e meu irmão, o “Selvagem?” dos Paralamas. Lembro que botamos a fita pra tocar, ali, ainda naquela noite. Iniciava com um ruído de sintonia radiofônica que passava brevemente por “Será”, como que anunciasse exatamente que ali estava uma continuação melhorada do bom álbum de estréia. E “Daniel na Cova dos Leões”, começava então, confirmando bem o refinamento e aperfeiçoamento em relação ao que haviam feito anteriormente, num rock preciso, intenso, numa composição forte claramente mais elaborada que os punks quase crus do disco anterior, com um final clássico com um piano cheio de dramaticidade.
“Quase sem Querer” que a seguia, apresentava uma faceta meio cancioneira que o público não conhecia até então dada a característica do disco anterior. Com um rock acústico de letra introspectiva e intimista Renato expunha sentimentos de tal forma que músicas como esta seriam fundamentais para consolidar a proximidade que o público viria a assumir a partir dali cada vez mais com a banda.
A terceira, “Acrilic On Canvas” tinha um arranjo duro, baixo, com vocal forçado nos graves. Tem como maior mérito o interessante paralelo, cheio de matáforas, entre uma desilusão amorosa e a concepção e pintura de um quadro. Talvez seja a mais amarga e dolorosa do disco.
Já a seguinte, “Eduardo e Mônica”, com sua levada acústica, foi sucesso imediato apesar de sua letra longa, sem refrão e sua historinha de amor. Meio piegas, meio breguinha, é verdade, mas provavelmente fora exatamente isto o que cativara tanto as pessoas. Uma história contada de forma objetiva e direta cheia de ternura e bom humor versando sobre pessoas comuns; comuns como nós.
“Central do Brasil” era um pequeno interlúdio; um lamento acústico, meio sertenejo, breve, servindo praticamente de entrada para um dos grandes hits da banda, “Tempo Perdido”, esta por sua vez, um dos maiores ‘hinos’ da Legião. Talvez seja a que tenha conquistado o público de vez e que tenha efetivamente impulsionado o disco e a popularidade do quarteto de Brasília. Forte, intensa, cheia de sentimento, “Tempo Perdido” mostrava uma levada bem próxima ao som do The Smiths, que na época era influência forte de Renato Russo, desde a sonoridade, passando pelo jeito de dançar no palco e pelas flores que carregava em shows e fotos, assim como Morrissey. Mas “Tempo Perdido” era mais que uma “imitação” de Smiths, era algo como um grito desesperado da juventude e Renato Russo aparecia como uma espécie de representante. Todos nos identificamos na época com Renato porque ele se colocava no nosso mesmo barco e lamentava o fato de que ainda éramos tão jovens e já havíamos perdido tanta coisa.
A seqüência do disco era destruidora com duas pancadas sonoras, “Metrópole” e “Plantas Embaixo do Aquário”, especialmente a primeira, um punk-rock agressivo no melhor estilo Aborto Elétrico.
Seguia então com “Música Urbana 2”, um blues acústico lamentoso e amargo que a seu modo resumia o dia-a-dia nas cidades grandes; e “Andréa Doria”, que vinha em seguida, funcionava como uma de gêmea de “Acrilic On Canvas”, apenas um pouco mais leve sonoramente mas tão triste, infeliz e com o coração tão partido quanto na outra.
“Fábrica”, a seguinte, também lembrava Smiths no som - mais de leve, mas lembrava -, e era uma das mais belas e emocionantes do disco com Renato novamente se colocando junto com a massa, exigindo justiça e elevando valores como honestidade, bondade, igualdade. Era uma espécie de Messias?
Mas seu 'messianismo' ainda estava por mostrar-se mesmo na última faixa, “Índios”, uma letra longa, difícil, construída a partir de uma anáfora cujo verso repetido passaria a ser emblemático para a banda:
“quem me dera ao menos uma vez”. “Índios” era um canto de esperança e desesperança ao mesmo tempo, uma demonstração de inocência traída, um clamor de justiça, uma declaração de amor ao país e um pedido de algo em troca. E nós nos sentíamos aqueles índios. Nós éramos a partir de então os índios, e todos sabíamos disso.
Não à toa, a partir daí passou-se a chamar, informalmente e extraoficialmente, os fãs do Legião Urbana de “tribo” e a banda de
A legião, como se aquilo tudo do que fazíamos parte fosse uma espécie de seita, de religião.
E era mais ou menos isso, e por incrível que pareça, hoje exatamente 14 anos depois da morte de Renato Russo, não é muito diferente. Já não somos mais crianças, já não somos mais tão jovens quanto o próprio Renato cantou, sabemos que não somos
fiéis de ninguém e que essa coisa de líder messiânico é bobagem, mas, independentemente disso,
A Legião Urbana, sobretudo na figura de seu líder, ainda preserva essa aura de ascendência sobre uma geração. A geração Coca-Cola.
Renato Russo era soropositivo desde 1989 e morreu em virtude complicações causadas pela AIDS em 11/10/1996.
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FAIXAS:
- "Daniel na Cova dos Leões" (Renato Russo/Renato Rocha) – 4:04
- "Quase Sem Querer" (Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Renato Rocha) – 4:42
- "Acrilic on Canvas" (Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Renato Rocha/Marcelo Bonfá) – 4:43
- "Eduardo e Mônica" (Renato Russo) – 4:31
- "Central do Brasil" (Renato Russo) – 1:34
- "Tempo Perdido" (Renato Russo) – 5:03
- "Metrópole" (Renato Russo) – 2:42
- "Plantas Embaixo do Aquário" (Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Renato Rocha/Marcelo Bonfá) – 2:53
- "Música Urbana 2" (Renato Russo) – 2:40
- "Andrea Doria" (Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá) – 4:53
- "Fábrica" (Renato Russo) – 4:55
- ""Índios"" (Renato Russo) – 4:17
* o formato cassete trazia ainda a faixa "Química" que depois vira a fazer parte do álbum seguinte, "Que País é Este".
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Ouça:
Legião Urbana Dois
Cly Reis