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quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

cotidianas #197 - As Bonecas


A tranquilidade do Seu Etelvino acabou desde que aquelas ‘meninas’ passaram a fazer ponto naquela esquina, quase em frente ao prédio onde ele morava. Não que os travestis fizessem alguma coisa efetivamente para incomodá-lo. Tirando alguns chiliques, alguns barracos, algumas frescuras, alguns exageros, mas que eram até raros, não atrapalhavam em nada a vida daquele senhor de idade. O que o incomodava era o fato de estarem ali e fazendo aquilo e ainda pior, o fato serem homens, ou de pelo menos terem nascido sob o sexo masculino.

O fato é que sempre que descia para sua caminhada, de não mais do que duas quadras, recomendada pelo médico por causa dos ossos, realizada ali à noitinha de modo a evitar o forte do calor, dava uma alfinetada nos travestis que faziam seu trabalho noturno.

- Que poucassenvergonhice – largava ele, se dirigindo às bichas, logo virando a cara e saindo ainda resmungando mais alguma coisa incompreensível.

E todos os dias, sempre que descia do apartamento e despontava na porta do prédio, saía com algum comentário condenatório: “Onde já se viu...”, “Tinha era que chamar a polícia!”, “Vocês tinham era que arranjar um trabalho decente”, “Esse mundo tá mesmo virado...”, sempre saindo sem dar chance para alguma argumentação ou algo do tipo. É lógico que as bichas tripudiavam nos ranços do velhinho e faziam piada, vaiavam, mostravam peitinho e tudo mais, mas ele já ia longe resmungando sozinho e na volta mal olhava para a cara das damas da noite por mais que elas às vezes tentassem implicar com ele retribuindo as indelicadezas daquele morador rabujento.

Mas um dia o Seu Etelvino surpreendentemente dirigiu-se diretamente a uma delas. Curioso, intrigado ou sabe-se lá movido pelo que, o velhote indagou com sincero interesse para um dos rapazes da ronda:

- Vem cá, tu não tem vergonha, não?

- Eu? – retribuiu surpreso o travesti – De quê?

- Disso – apontou o velho fazendo cara de nojo – Um homenzarrão desse, podia ser zagueiro, uns coxão desse tamanho, se prestando a isso aí fantasiado de mulher.

- Quer dizer que o senhor está olhando pras minhas pernas, vovô? – contra-atacou maliciosamente fazendo um pose sensual.

- "Vovô" não, que eu não tenho neto fresco. Nunca que ia deixar um neto meu me fazer passar uma vergonha dessa. O que eu to dizendo é que tu, um rapaz bonito, podia ta aí com umas menina, ficando com elas, como se diz hoje em dia...

- Ai, nem me fala nessas mocréias que eu tenho urticária só de pensar nisso. Cruzcredo! – se retorcendo num arrepio mas já mudando de assunto, aproveitando a deixa do velho – Mas então tu me acha bonita?

- Ora, vai te dar o respeito, mariposa!

- Que que tem? Muita gente gosta - argumentou a boneca.

- Duvido. Quem ia querer um...um... um desses assim que nem tu com tanta mulher por aí?

- Ah, pode ter certeza que tem quem queira.

- Olha, Deus fez tudo do jeito certo: homem é pra ser homem e mulher é pra ser mulher. O resto ta errado.

- É, mas um monte de homem casado, pai de família, católico, homem que gosta de mulher mesmo, viu, vem aqui, ó, só pra brincar com euzinha – disse apontando para os robustos peitos de silicone.

- Que horror!

- Como é que o senhor sabe que é um horror? Nunca provou – agora dando palamadinhas na própria bunda.

- Deus me livre!

- Não pode dizer que não gosta de uma coisa se não experimentou, vovô.
- Hunff... – fungou o velhote virando a cara mas logo retornando à conversa com ar de desinteressado - Mas, digamos que eu fosse querer, quanto é que seria?



Cly Reis

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