A tranquilidade do Seu Etelvino acabou desde que aquelas ‘meninas’
passaram a fazer ponto naquela esquina, quase em frente ao prédio onde ele
morava. Não que os travestis fizessem alguma coisa efetivamente para
incomodá-lo. Tirando alguns chiliques, alguns barracos, algumas frescuras,
alguns exageros, mas que eram até raros, não atrapalhavam em nada a vida
daquele senhor de idade. O que o incomodava era o fato de estarem ali e fazendo
aquilo e ainda pior, o fato serem homens, ou de pelo menos terem nascido sob o
sexo masculino.
O fato é que sempre que descia para sua caminhada, de não
mais do que duas quadras, recomendada pelo médico por causa dos ossos,
realizada ali à noitinha de modo a evitar o forte do calor, dava uma alfinetada nos travestis que faziam seu
trabalho noturno.
- Que poucassenvergonhice – largava ele, se dirigindo às
bichas, logo virando a cara e saindo ainda resmungando mais alguma coisa
incompreensível.
E todos os dias, sempre que descia do apartamento e
despontava na porta do prédio, saía com
algum comentário condenatório: “Onde já se viu...”, “Tinha era
que chamar a polícia!”, “Vocês tinham era que arranjar um trabalho decente”, “Esse
mundo tá mesmo virado...”, sempre saindo sem dar chance para alguma argumentação
ou algo do tipo. É lógico que as bichas tripudiavam nos ranços do velhinho e faziam
piada, vaiavam, mostravam peitinho e tudo mais, mas ele já ia longe resmungando
sozinho e na volta mal olhava para a cara das damas da noite por mais que elas às
vezes tentassem implicar com ele retribuindo as indelicadezas daquele morador rabujento.
Mas um dia o Seu Etelvino surpreendentemente dirigiu-se diretamente a uma
delas. Curioso, intrigado ou sabe-se lá movido pelo que, o velhote indagou com
sincero interesse para um dos rapazes da ronda:
- Vem cá, tu não tem vergonha, não?
- Eu? – retribuiu surpreso o travesti – De quê?
- Disso – apontou o velho fazendo cara de nojo – Um homenzarrão
desse, podia ser zagueiro, uns coxão desse tamanho, se prestando a isso aí fantasiado de mulher.
- Quer dizer que o senhor está olhando pras minhas pernas, vovô?
– contra-atacou maliciosamente fazendo um pose sensual.
- "Vovô" não, que eu não tenho neto fresco. Nunca que ia
deixar um neto meu me fazer passar uma vergonha dessa. O que eu to dizendo é
que tu, um rapaz bonito, podia ta aí com umas menina, ficando com elas, como se
diz hoje em dia...
- Ai, nem me fala nessas mocréias que eu tenho urticária só
de pensar nisso. Cruzcredo! – se retorcendo num arrepio mas já mudando de
assunto, aproveitando a deixa do velho – Mas então tu me acha bonita?
- Ora, vai te dar o respeito, mariposa!
- Que que tem? Muita gente gosta - argumentou a boneca.
- Duvido. Quem ia querer um...um... um desses assim que nem tu
com tanta mulher por aí?
- Ah, pode ter certeza que tem quem queira.
- Olha, Deus fez tudo do jeito certo: homem é pra ser homem
e mulher é pra ser mulher. O resto ta errado.
- É, mas um monte de homem casado, pai de família, católico, homem que
gosta de mulher mesmo, viu, vem aqui, ó, só pra brincar com euzinha – disse apontando
para os robustos peitos de silicone.
- Que horror!
- Como é que o senhor sabe que é um horror? Nunca provou –
agora dando palamadinhas na própria bunda.
- Deus me livre!
- Não pode dizer que não gosta de uma coisa se não
experimentou, vovô.
- Hunff... – fungou o velhote virando a cara mas logo retornando à
conversa com ar de desinteressado - Mas, digamos que eu fosse querer, quanto é
que seria?
Cly Reis
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