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sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

cotidianas #852 - "Poema Abraço"

 


Ilustração original de Cândido Portinari
do livro As Metamorfoses, de 1944
Sim: letra e nuvem
lutam com os sonhos
Pela posse do poema.

O sino da tempestade
Convida a criação às núpcias,
O véu da ternura desce
Sobre a carne inconformada.

A página aberta do livro
Mostra a inicial de Altair.
Responde o clarim augusto:
─ Vestida de água e céu

Voas acima do tempo.
No espelho do futuro
Te assisto refletida.
Serás tu mesma? Ou sou eu.


************************
"Poema Abraço"
Murilo Mendes
do livro "As Metamorfoses"

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

cotidianas #851 - "Dia 1"



Diferentemente de outras capitais maiores ou turísticas, Horto Feliz era uma metrópole de passagem que se esvaziava no final de ano. Bastava que chegasse pela metade de dezembro, que o fluxo migratório passava a se direcionar a outros estados (turísticos, em geral) ou, principalmente, para o litoral do próprio estado, a menos de 120 quilômetros, onde boa parte da população local mantinha casas de praia ou as locava para que outros gozassem as festas. No Natal, ainda se viam pessoas, pois o hábito bastante católico de passar esta data em casa com a família se mantinha em muitas delas, como a de Nei, cuja virada do 24 para o 25 foi com as filhas, a esposa e o filhão peludo Guilherme, um golden idoso.

E ficava ótimo curtir a cidade assim no Natal. Ruas desbloqueadas, trânsito civilizado, pouco movimento no supermercado, restaurantes frequentáveis. Um alívio a todos aqueles estímulos sensoriais constantes. A grosseria, o barulho, a histeria, a violência, até a mendicância haviam todos se mudado – mesmo que temporariamente. Nei não lembrava que a cidade ficava tão boa nessa época.

Porém, como é de praxe também, após a festividade natalícia, aí sim é que a cidade esvazia de verdade.

E esvaziou.

Havia ainda uma pessoa que outra a pé nas ruas. Carros, muito de vez em quando. O comércio, a maioria fechado: em recesso ou em férias coletivas. Todos merecem descanso, pois trabalharam o ano todo, pensava. Nas descidas do apartamento para as necessidades do Guilherme, foi raro encontrar algum vizinho fazendo o mesmo. Uma, duas, três, quatro vezes - e fosse pela manhã, tarde ou noite, independia. Tudo muito vazio, inóspito, silencioso, até inseguro. Nei arrepiou-se.

No fundo, ele entendia tamanho deslocamento. Havia um sentimento no ar de aproveitar o melhor possível os feriadões do final de ano, pois aquele tinha sido especialmente difícil para todo o Estado. Uma grave tragédia climática se abatera sobre o lugar meses antes, matando gente, desalojando milhares, provocando perdas irreparáveis. Recuperar-se disso demandou muita força de vontade e resiliência da população. Concluir o ano, então, tornou-se o primeiro e imediato alívio para mentes e corações ainda abalados com a calamidade. Era compreensível que a maioria quisesse passar os bons momentos da virada longe de onde sofreram tanto, já que, inevitavelmente, haveriam de voltar depois para as próprias casas (os que não as perderam na tragédia, claro).

Nei e sua família só não acompanharam o fluxo da massa porque, justo por conta do aquecimento imobiliário no litoral, amigos haviam alugado sua confortável casa de praia para a temporada. Então, resolveram de comum acordo ficarem na evacuada Horto Feliz. Mas conforme se aproximava do dia 31, mais ermo ficava. Menos gente se via. Aliás, mais ninguém. Casas mudas, janelas fechadas, trânsito zero. Estranho... Todo ano, o povo se mudava para outros lugares no Ano Novo, isso era comum. Mas desta vez, estava diferente. Algo radical e misterioso parecia estar acontecendo. Nei e os seus não quiseram pagar pra ver: valeram-se do que tinham na dispensa, passaram a tranca na porta e se enclausuraram dentro de casa. Temerosos.

Não bastasse todo este clima, horas antes de escurecer a luz falta. Pouco depois, a água que é cortada. Aflita, a esposa buscava falar com amigas e parentes, mas em todos os casos aparecia apenas um risquinho cinza da mensagem do whats. Nem leram. A melhor amiga, em viagem à Europa, fora o fuso-horário, tinha mais com o que se ocupar, e os parentes, naquele frenesi de filas e engarrafamento da praia, deviam estar muito mais ocupados com a própria irritação. Largou o celular. A filha mais velha, no entanto, realmente estranhou a incomunicabilidade quando tentou acessar as redes sociais e percebeu que estavam sem sinal. Nei, da velha geração, achou que conseguiria resolver a falta de notícias através do radinho de pilha guardado na dispensa. O aparelho, aliás, funcionou, mas a sintonia das rádios emitia apenas um angustiante zunido.

Nem precisa dizer que aquela foi a mais desagradável virada de ano de suas vidas. No escuro, socados em casa, com medo e no silêncio. Nem os fogos de artifício espocaram no céu, para sorte de Guilherme, que desta vez se livrou dos desesperadores barulhos de bomba. Não houve contagem regressiva, espumante, cumprimento, Feliz Ano Novo, selfie e nem abraços. O negócio era dormirem algumas horas para, quando o sol raiasse, tomarem juntos alguma providência.

Já de manhãzinha, desceram as escadas cuidadosos em direção à porta de saída, mas sem qualquer ameaça (ou esperança) ao redor, tendo em vista que nenhum vizinho se encontrava no bloco. Nem em todo o condomínio. Sob o olhar julgador dos filhos e da esposa, Nei avisou que não seria possível pegarem o carro, porque não havia abastecido o suficiente para uma viagem maior na crença de que, em alguma saída boba ao mercado, passaria num posto e reporia o tanque. Teriam que ir a pé.

Em grupo, quase colados, mas ligeiros, andaram pelo bairro o qual raramente acessavam a pé, olhando para os lados, tão admirados pelo o que não conheciam do que pela inação a qual presenciavam. Um silêncio assustador abrandado apenas pelo barulho do vento na vegetação e pelo canto dos pássaros, que podiam cantar livremente sem competirem com o ruído da urbe.

A esposa mandava os filhos não se distanciarem. A marcha era forte, principalmente para as pernas mais curtas do menor. Precisavam chegar em algum lugar. Cruzaram com uma árvore em frente a um prédio em que as luzinhas de Natal tocavam um antes inaudível Jingle Bells já desafinando em razão das pilhas gastas. Foi quando ouviram, de repente, o som de um veículo se aproximando. Uma caminhonete de vidros insulfilmados, que dobrou a rua cantando pneu e saiu em alta velocidade até sumir no horizonte em segundos. Eles, que acharam por alguns instantes terem retornado à civilização, se entreolharam desiludidos e sem se dirigirem palavras. Depois disso, mais nenhum sinal de vida por qualquer lado que olhassem. Tudo havia parado de fato. Nenhuma viva-alma sequer vista em quarteirões. Deserto.

Horto Feliz tinha se tornado uma cidade-fantasma.

Como Nei desconfiou, todos os postos de gasolinas que avistaram no caminho restavam abandonados: nem frentista, nem carros e nem energia. A cena calamitosa, ao menos, lhe amenizou um pouco a culpa por não poder pegar o carro e evitar aquela situação para todos, que caminhavam assustados e apressados para chegar sabe-se lá onde.

Carregando no colo Guilherme – cujas articulações gastas não o permitiam mais andar tanta distância – Nei, embora ofegante, indagava-se mentalmente: “Será que lá no litoral as pessoas estão felizes?” “Será que, realmente, estão TODOS lá?” “Terão gostado tanto de lá, que não pensem mais em voltar?” “Será que os encontraremos quando chegarmos, se chegarmos?” Outras inquietações, inclusive, lhe ocorriam: "Como ficará nosso apartamento, nossas coisas, o trabalho, a escola das crianças?!" "Teremos chance de... recomeçar?..."

Nei apressava o passo e cobrava com a voz trêmula de pavor que os outros o fizessem também. A noite começava a cair, e na estrada não era nada recomendável que andassem no escuro. A madrugada os esperava, contudo. Era inevitável. Quem sabe, após resistirem à noite, o dia 2 guardasse uma boa novidade.

 

Daniel Rodrigues


terça-feira, 24 de dezembro de 2024

cotidianas #850 - "Natal Brasileiro"




presépio "Neste Natal que Ele nasça em todos os lares",
de C. Freire, F. Carlos, D. Murta, B.L. de Oliveira e C.S. Veiga
foto: JR

Mas que Natal é esse?
É o Natal brasileiro, amor

Depois da Missa do Galo
Parentes, amigos e convidados
Reunidos na mesma mesa, toda enfeitada
Com frutas tropicais
E no centro um cabrito assado, tenro, todo recheado, 
Espalhando farofa pra todo lado

Mas que Natal é esse?...

E lá fora os partideiros
Jorge da Viola, Neném da Cuíca 
e Joãozinho do Pandeiro
Representando os três Reis Magos
Trazendo de presente o samba
E a alegria pro terreiro

Pois o filho homem de Dona Maria
Que acabou de nascer 
Nesse dia glorioso e sentimental

É a imagem do menino Rei, 
É a alegria do Natal
É a imagem do menino Rei, 
É a alegria do Natal

Mas que Natal é esse?
É o Natal, é o Natal brasileiro, amor

Feliz Natal, Brasil
Feliz Natal

************************
"Natal Brasileiro"
Jorge Ben

Ouça:


segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

cotidianas #849 - "Downtown Train"

 


Tom Waits - "Downtown Train"


canção do álbum 'Rain Dogs', de 1985
vídeo dirigido por Jean Baptiste Mondino

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

cotidianas #848 - "O Mundo"




O mundo é pequeno pra caramba
Tem alemão, italiano e italiana
O mundo filé milanesa
Tem coreano, japonês e japonesa

O mundo é uma salada russa
Tem nego da Pérsia, tem nego da Prússia
O mundo é uma esfiha de carne
Tem nego do Zâmbia, tem nego do Zaire

O mundo é azul lá de cima
O mundo é vermelho na China
O mundo tá muito gripado
O açúcar é doce, o sal é salgado

O mundo caquinho de vidro
Tá cego do olho, tá surdo do ouvido
O mundo tá muito doente
O homem que mata, o homem que mente

Por que você me trata mal
Se eu te trato bem
Por que você me faz o mal
Se eu só te faço o bem

Todos somos filhos de Deus
Só não falamos as mesmas línguas
Todos somos filhos de Deus
Só não falamos as mesmas línguas

Everybody is filhos de God
Só não falamos as mesmas línguas
Everybody is filhos de Ghandi
Só não falamos as mesmas línguas

Todos somos filhos de Deus (Por que você me trata mal)
Se eu te trato bem (Só não falamos as mesmas línguas)
Todos somos filhos de Deus (Por que você me faz o mal)
Se eu só te faço o bem (Só não falamos as mesmas línguas)
Everybody is filhos de God (Por que você me trata mal)
Se eu te trato bem (Só não falamos as mesmas línguas)
Everybody is filhos de Ghandi (Por que você me faz o mal)
Se eu só te faço o bem (Só não falamos as mesmas línguas)

*************************************
"O Mundo"
banda Karnak
(letra André Abujamra)

Ouça:

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

cotidianas #846 - Semi-humano (Mordida)




Dizem que quem é mordido fica igual a eles.

Eu não sei ainda. Quero dizer..., ainda não tenho certeza. Tenho que esperar as próximas horas. Ou os próximos minutos. Não sei quanto tempo. O que sei é que dói. Acho que uma mordida humana doeria de qualquer maneira mas o ferimento está muito feio. Pode ser que eu esteja apenas impressionado, meio em choque mas o fato é que a ferida parece apodrecer a cada minuto. Minuto... Não sei quanto tempo tenho até virar um deles. Se é que vou virar. E como será? De um instante para o outro deixarei de ser o cara que sempre fui, cordial, gentil (me considero uma boa pessoa, ora), e vou sair arrebentando a porta desse porão e sair numa fúria assassina tentando devorar meus semelhantes? Que horror! Se bem que lá fora já não deve haver muitos como eu. Digo, como eu normal, são, sem a mordida. Humano. (Ainda). Isso se for mesmo a mordida que provoca isso tudo. Ah, já não sei de mais nada! Só me resta esperar. Quanto tempo será que ainda tenho?




Cly Reis

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

terça-feira, 1 de outubro de 2024

cotidianas #843 - Eu corro pela vida


Faz anos desde que falaram para ela sobre isso
A escuridão que o corpo dela possuiu
E as cicatrizes ainda estão lá no espelho
Cada dia que ela se veste
Mas a dor está a milhas e milhas atrás dela
E o medo é agora uma fera dócil
Se você perguntar para ela por que ela ainda está indo
Ela vai lhe dizer que isso faz ela completa

Eu corro pela esperança, eu corro para sentir
Eu corro pela verdade, por tudo que é real
Eu corro pela sua mãe, sua irmã, sua esposa
Eu corro por você e eu, meu amigo, eu corro pela vida

É uma mancha desde que me falaram sobre isso
Como a escuridão pegou seu pedágio
E eles cortaram a minha pele e eles cortaram o meu corpo
Mas eles nunca vão ter um pedaço da minha alma
E agora eu ainda estou aprendendo a lição
Para acordar quando eu ouvir o chamado
E se você me perguntar por que eu ainda estou correndo
Eu vou te dizer que eu corro por todos nós
Eu corro pela esperança, eu corro para sentir
Eu corro pela verdade, por tudo que é real
Eu corro pela sua mãe, sua irmã, sua esposa
Eu corro por você e eu, meu amigo, eu corro pela vida

E algum dia se eles falarem sobre isso
Se a escuridão bater à sua porta
Lembre-se dela, lembre-se de mim
Nós vamos estar correndo como estivemos antes
Correndo por respostas
Correndo por mais

*********************
tradução de "I Run for Life"
de Melissa Etheridge

Ouça:

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

cotidianas #842 - Euforice





Eunice
vivia tamanha euforia
naquele dia
que poder-se-ia,
classificar aquele estado,
praticamente,
como uma
Euforice

******************
"Euforice"
Cly Reis

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

cotidianas #841 - Natureza

 



Carolina sempre tivera uma ligação muito forte com a avó, muito próxima. Na verdade, todos no bairro adoravam Dona Tereza. Senhora alegre, falante, espontânea. Era a típica vozona, aquela cúmplice e protetora dos netos. Para Carolina, Dona Tereza era como uma mãe. Foi quem mais a incentivou quando decidira ingressar no curso de assistente social, mesmo diante da resistência do pai de Carolina, seu filho, que considerava uma profissão 'pra morrer de fome'.
Carolina cursou, se formou e, apoiada pela avó, foi para o Rio tentar a vida na cidade. Batalhou, fez concursos, entrevistas, até que conseguiu trabalho. Um bom trabalho! Conseguiu se estabelecer, montar apartamento e garantir uma vida estável e sabia que devia muito daquilo ao incentivo da avó.
Mantinha contato, voltava à cidade natal sempre que possível, mas a correria da vida, o dia a dia atropelado e cheio de obrigações, fizeram com que esse contato fosse rareando.
Ligava para o pai, recebia notícias da avó mas o fato é que o tempo passava e, inevitavelmente, Dona Tereza fica mais velha. A saúde já não era a mesma, as deficiências da idade já se manifestavam de maneira implacável, até que um dia recebera a notícia que nunca gostaria de ouvir: a avó havia falecido.
Pediu licença do trabalho, tirou uns dias e voltou à sua cidadezinha, no interior da Bahia para o adeus à tão amada vozinha.
Enterro, despedida, abraços, lágrimas, enfim... Fazer o quê? Todo mundo vai um dia. É da natureza.
Na casa do pai, já mais consolada e conformada, chegando da cerimônia fúnebre, Carolina, cansada do dia longo e desgastante, deixou-se desabar no sofá. Fechou os olhos, repassou, num flash, momentos com a avó. Sorriu. Ah, Dona Tereza! À sua frente, na mesa de centro, estava a pasta de elástico com a certidão de óbito. Como que numa certificação, agora sim, oficial do que acabara de ver no cemitério, resolvera ler o documento: Naturalina Maria Conceição dos Santos.
Como assim?
Erraram o nome da sua avó?
E nem tinha Tereza no nome.
Erguera-se num salto e saiu atrás do pai pela casa.
Mostrou-lhe o erro.
Erro nenhum.
Sua mãe, avó de Carolina, chamava-se, sim, Naturalina. Os vizinhos é que achavam muito complicado, difícil de lembrar, aí associavam com natureza: Naturalina, natureza, Naturaleza, natural, Tereza... Misturaram as coisas e simplificaram. Tereza pegou, e dona Naturalina ficou mesmo conhecida como Tereza.
Carolina agora ria. Nunca soubera o verdadeiro nome da avó. Era uma espécie de batismo após a morte. Mas seria muito estranho, agora, passar a se referir àquela mulher que estivera perto dela a vida toda como Naturalina. Seria quase como se tivesse sido outra pessoa. Dissesse a certidão de nascimento ou a de óbito o nome que fosse, para Carolina, aquela mulher de quem acabara de se despedir sempre seria a vó Tereza. Assim era natural para ela.

Cly Reis

para Ana Carolina
(inspirado em
fatos verídicos)

sábado, 31 de agosto de 2024

cotidianas #840 - Pílula Surrealista #58

Um esperou pelo outro, e o outro esperou pelo um. O um esperou pelo um, e o outro pelo outro, e os dois pelos dois, e os três pelos três, quatros, cincos, seis, setes outros, infinitamente. Quem se beneficiou foi o pedestre, que atravessou o cruzamento com seus fones isolantes e os olhos enfiados na tela do celular sem atenção alguma ao que se sucedia.

Não houve buzinas, nem xingamentos, nem irritação, nem discussão ou vias de fato. Sequer sentimentos de aflição, derrota ou sujeição: todos os motoristas, presos em seus carros apontados de frente uns para os outros, como vacas aplastadas num curral, aguardavam-se mutuamente com resignação e tranquilidade. Em silêncio.

Um silêncio incomum ao perturbador trânsito daquela hora, final de tarde. Tão incomum quanto a invisível nuvem de solidariedade que ali desceu inexplicavelmente, naquele que foi considerado o primeiro engarrafamento gentil da história daquela cidade.


Daniel Rodrigues

terça-feira, 13 de agosto de 2024

cotidianas #839 - Todo Errado

 




Caiu de mau jeito e bateu com a cabeça.

Levantou.

Um pé de cada vez. Primeiro o esquerdo depois o direito. Pronto.

Pra onde agora?

Direita ou esquerda? 

Tanto fazia. Já estava fodido mesmo. Havia metido os pés pelas mãos e agora não tinha mais como desfazer o que estava feito.

Um passo, dois... Tudo começou a girar.

Levou a mão à cabeça. Sangue...

Não importava. Tinha que seguir em frente. Estavam na sua cola. Não demoraria muito o alcançariam.

Onde estava com a cabeça quando foi inventar de meter a mão naquela grana?

Era tarde demais pra pensar nisso. Melhor apertar o passo.

Esquerda, direita... Em frente... Um muro.

Tava fodido! 

Estavam perto. Conseguia sentir o cheiro deles.

'Pensa, pensa... Pra que serve essa cabeça?'

Ali..., à direita.

Um galho, uma pedra. Um , dois e... Estava em cima do muro.

'Aqui pra vocês, filhas das puta', mostrando o dedo do meio.

Pulou pro outro lado. Caiu de pé.

'Acho que quebrei o tornozelo'. Não conseguiu levantar. 

Só precisa tentar apoiar o pé. Um, dois... (Viu estrelas).

Levou a mão ao pé. O osso estava pra fora.

'Agora que faltava tão pouco...'

Ouvia os passos cada vez mais perto.

Não os vejo mas sinto sua respiração.

'Então achou mesmo que era uma boa ideia dar no pé?'

Um tirou uma faca grande da cintura.

'Vou deixar a cabeça por último pra tu poder ver tudo'.

E começou:

Mão direita, mão esquerda, pé...

*********************

"Todo Errado"
Cly Reis


sábado, 10 de agosto de 2024

cotidianas #838 - Ela joga bola

 







Ela é menor que os outros
Mas joga muita bola
É uma grandeza o que joga essa moleca

Ela é melhor que muito homem
Joga a bola nela
É uma lindeza como joga essa menina


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Ela joga bola
Cly Reis

quarta-feira, 10 de julho de 2024

cotidianas #837 - "Ou Isto Ou Aquilo"




Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo ...
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

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"Ou Isto Ou Aquilo"
Cecília Meirelles

segunda-feira, 17 de junho de 2024

cotidianas #834 - "Deus te Conserve"

 



Mal sabiam que com seus cabelos
compridos imundos
Que com seus poderes poderiam
derrubar sanções
Tornar-se lendas, criar mundos.

Se tu soubesses o que podes
Mandarias pelos ares
Mandarins, Cézares e czares

Não obedeceria mandos, desmandos
Nem dez mandamentos
Manto Sagrado, sacrossanto, aqui ó!
Um saco!
Mando o sagrado para o quinto dos infernos

Fariam faraós
Curvarem-se diante de vós
Chamariam
Filhos de déspotas
de filhos das putas

Mas não...
Preferes criar mitos
Alimentar monstros
Falsos profetas
Ídolos idiotas

No fundo, no fundo
Sem profundidade
Na ponta do lápis
Desapontam
Se espreme, espreme
E nada exprimem

Deus te conserve assim
Deus te conserve

*************************
"Deus te Conserve"
Cly Reis