Daniel Rodrigues
quarta-feira, 20 de novembro de 2024
sábado, 2 de novembro de 2024
Drops lançamento livro "Chapa Quente" - 70ª Feira do Livro de Porto Alegre - Espaço Força & Luz
Já tem data o lançamento oficial do novo livro do coeditor do nosso blog, o escritor e jornalista Daniel Rodrigues, “Chapa Quente” (ed. Caravana Editorial). Será durante a celebrada Feira do Livro de Porto Alegre, que abriu no dia de ontem para sua gloriosa 70ª edição, no dia 16 de novembro, e contará com duas programações. Primeiro, às 15h, na sala O Retrato do Espaço Força e Luz, ocorre um bate-papo do autor com a escritora convidada e amiga Simone Saueressig. Logo em seguida, às 16h, é a vez de Daniel autografar a obra na Praça de Autógrafos da Feira do Livro, na Praça da Alfândega.
Primeiro individual de contos de Daniel, “Chapa Quente” é composto por uma reunião de cinco histórias e foi selecionado em concurso realizado pela editora Caravana Editorial em 2023, resultando resultado da experiência de mais de 10 anos de Daniel Rodrigues como contista, o qual já participou de diversas antologias coletivas. Além destas obras, também é autor de “Anarquia na Passarela – A influência do movimento punk nas coleções de moda”, livro pelo qual venceu o Prêmio Açorianos de Literatura 2013, na categoria Ensaio e Humanidades. Pela Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, também assina artigo no livro “50 Olhares daCrítica Sobre o Cinema Gaúcho”, editado pela ACCIRS em 2022.
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cotidianas #846 - Semi-humano (Mordida)
Eu não sei ainda. Quero dizer..., ainda não tenho certeza. Tenho que esperar as próximas horas. Ou os próximos minutos. Não sei quanto tempo. O que sei é que dói. Acho que uma mordida humana doeria de qualquer maneira mas o ferimento está muito feio. Pode ser que eu esteja apenas impressionado, meio em choque mas o fato é que a ferida parece apodrecer a cada minuto. Minuto... Não sei quanto tempo tenho até virar um deles. Se é que vou virar. E como será? De um instante para o outro deixarei de ser o cara que sempre fui, cordial, gentil (me considero uma boa pessoa, ora), e vou sair arrebentando a porta desse porão e sair numa fúria assassina tentando devorar meus semelhantes? Que horror! Se bem que lá fora já não deve haver muitos como eu. Digo, como eu normal, são, sem a mordida. Humano. (Ainda). Isso se for mesmo a mordida que provoca isso tudo. Ah, já não sei de mais nada! Só me resta esperar. Quanto tempo será que ainda tenho?
quinta-feira, 17 de outubro de 2024
cotidianas #845 - "Acordei Bemol"
Acordei bemol
Tudo estava sustenido
Sol fazia
Só não fazia sentido
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Paulo Leminski
terça-feira, 1 de outubro de 2024
cotidianas #843 - Eu corro pela vida
A escuridão que o corpo dela possuiu
E as cicatrizes ainda estão lá no espelho
Cada dia que ela se veste
Mas a dor está a milhas e milhas atrás dela
E o medo é agora uma fera dócil
Se você perguntar para ela por que ela ainda está indo
Ela vai lhe dizer que isso faz ela completa
Eu corro pela esperança, eu corro para sentir
Eu corro pela verdade, por tudo que é real
Eu corro pela sua mãe, sua irmã, sua esposa
Eu corro por você e eu, meu amigo, eu corro pela vida
É uma mancha desde que me falaram sobre isso
Como a escuridão pegou seu pedágio
E eles cortaram a minha pele e eles cortaram o meu corpo
Mas eles nunca vão ter um pedaço da minha alma
E agora eu ainda estou aprendendo a lição
Para acordar quando eu ouvir o chamado
E se você me perguntar por que eu ainda estou correndo
Eu vou te dizer que eu corro por todos nós
Eu corro pela esperança, eu corro para sentir
Eu corro pela verdade, por tudo que é real
Eu corro pela sua mãe, sua irmã, sua esposa
Eu corro por você e eu, meu amigo, eu corro pela vida
E algum dia se eles falarem sobre isso
Se a escuridão bater à sua porta
Lembre-se dela, lembre-se de mim
Nós vamos estar correndo como estivemos antes
Correndo por respostas
Correndo por mais
segunda-feira, 23 de setembro de 2024
cotidianas #842 - Euforice
quinta-feira, 12 de setembro de 2024
cotidianas #841 - Natureza
Carolina cursou, se formou e, apoiada pela avó, foi para o Rio tentar a vida na cidade. Batalhou, fez concursos, entrevistas, até que conseguiu trabalho. Um bom trabalho! Conseguiu se estabelecer, montar apartamento e garantir uma vida estável e sabia que devia muito daquilo ao incentivo da avó.
Mantinha contato, voltava à cidade natal sempre que possível, mas a correria da vida, o dia a dia atropelado e cheio de obrigações, fizeram com que esse contato fosse rareando.
Ligava para o pai, recebia notícias da avó mas o fato é que o tempo passava e, inevitavelmente, Dona Tereza fica mais velha. A saúde já não era a mesma, as deficiências da idade já se manifestavam de maneira implacável, até que um dia recebera a notícia que nunca gostaria de ouvir: a avó havia falecido.
Pediu licença do trabalho, tirou uns dias e voltou à sua cidadezinha, no interior da Bahia para o adeus à tão amada vozinha.
Enterro, despedida, abraços, lágrimas, enfim... Fazer o quê? Todo mundo vai um dia. É da natureza.
Na casa do pai, já mais consolada e conformada, chegando da cerimônia fúnebre, Carolina, cansada do dia longo e desgastante, deixou-se desabar no sofá. Fechou os olhos, repassou, num flash, momentos com a avó. Sorriu. Ah, Dona Tereza! À sua frente, na mesa de centro, estava a pasta de elástico com a certidão de óbito. Como que numa certificação, agora sim, oficial do que acabara de ver no cemitério, resolvera ler o documento: Naturalina Maria Conceição dos Santos.
Como assim?
Erraram o nome da sua avó?
E nem tinha Tereza no nome.
Erguera-se num salto e saiu atrás do pai pela casa.
Mostrou-lhe o erro.
Erro nenhum.
Sua mãe, avó de Carolina, chamava-se, sim, Naturalina. Os vizinhos é que achavam muito complicado, difícil de lembrar, aí associavam com natureza: Naturalina, natureza, Naturaleza, natural, Tereza... Misturaram as coisas e simplificaram. Tereza pegou, e dona Naturalina ficou mesmo conhecida como Tereza.
Carolina agora ria. Nunca soubera o verdadeiro nome da avó. Era uma espécie de batismo após a morte. Mas seria muito estranho, agora, passar a se referir àquela mulher que estivera perto dela a vida toda como Naturalina. Seria quase como se tivesse sido outra pessoa. Dissesse a certidão de nascimento ou a de óbito o nome que fosse, para Carolina, aquela mulher de quem acabara de se despedir sempre seria a vó Tereza. Assim era natural para ela.
sábado, 31 de agosto de 2024
cotidianas #840 - Pílula Surrealista #58
Um esperou pelo outro, e o outro esperou pelo um. O um esperou pelo um, e o outro pelo outro, e os dois pelos dois, e os três pelos três, quatros, cincos, seis, setes outros, infinitamente. Quem se beneficiou foi o pedestre, que atravessou o cruzamento com seus fones isolantes e os olhos enfiados na tela do celular sem atenção alguma ao que se sucedia.
Não houve buzinas, nem xingamentos, nem irritação, nem discussão ou vias de fato. Sequer sentimentos de aflição, derrota ou sujeição: todos os motoristas, presos em seus carros apontados de frente uns para os outros, como vacas aplastadas num curral, aguardavam-se mutuamente com resignação e tranquilidade. Em silêncio.Um silêncio incomum ao perturbador trânsito daquela hora, final de tarde. Tão incomum quanto a invisível nuvem de solidariedade que ali desceu inexplicavelmente, naquele que foi considerado o primeiro engarrafamento gentil da história daquela cidade.
Daniel Rodrigues
terça-feira, 13 de agosto de 2024
cotidianas #839 - Todo Errado
Caiu de mau jeito e bateu com a cabeça.
Levantou.
Um pé de cada vez. Primeiro o esquerdo depois o direito. Pronto.
Pra onde agora?
Direita ou esquerda?
Tanto fazia. Já estava fodido mesmo. Havia metido os pés pelas mãos e agora não tinha mais como desfazer o que estava feito.
Um passo, dois... Tudo começou a girar.
Levou a mão à cabeça. Sangue...
Não importava. Tinha que seguir em frente. Estavam na sua cola. Não demoraria muito o alcançariam.
Onde estava com a cabeça quando foi inventar de meter a mão naquela grana?
Era tarde demais pra pensar nisso. Melhor apertar o passo.
Esquerda, direita... Em frente... Um muro.
Tava fodido!
Estavam perto. Conseguia sentir o cheiro deles.
'Pensa, pensa... Pra que serve essa cabeça?'
Ali..., à direita.
Um galho, uma pedra. Um , dois e... Estava em cima do muro.
'Aqui pra vocês, filhas das puta', mostrando o dedo do meio.
Pulou pro outro lado. Caiu de pé.
'Acho que quebrei o tornozelo'. Não conseguiu levantar.
Só precisa tentar apoiar o pé. Um, dois... (Viu estrelas).
Levou a mão ao pé. O osso estava pra fora.
'Agora que faltava tão pouco...'
Ouvia os passos cada vez mais perto.
Não os vejo mas sinto sua respiração.
'Então achou mesmo que era uma boa ideia dar no pé?'
Um tirou uma faca grande da cintura.
'Vou deixar a cabeça por último pra tu poder ver tudo'.
E começou:
Mão direita, mão esquerda, pé...
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"Todo Errado"Cly Reis
sábado, 10 de agosto de 2024
cotidianas #838 - Ela joga bola
Ela é menor que os outros
É uma grandeza o que joga essa moleca
Ela é melhor que muito homem
É uma lindeza como joga essa menina
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quarta-feira, 10 de julho de 2024
cotidianas #837 - "Ou Isto Ou Aquilo"
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo ...
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
segunda-feira, 24 de junho de 2024
segunda-feira, 17 de junho de 2024
cotidianas #834 - "Deus te Conserve"
Mal sabiam que com seus cabelos
compridos imundos
Que com seus poderes poderiam
derrubar sanções
Tornar-se lendas, criar mundos.
Se tu soubesses o que podes
Mandarias pelos ares
Mandarins, Cézares e czares
Não obedeceria mandos, desmandos
Nem dez mandamentos
Manto Sagrado, sacrossanto, aqui ó!
Um saco!
Mando o sagrado para o quinto dos infernos
Fariam faraós
Curvarem-se diante de vós
Chamariam
Filhos de déspotas
de filhos das putas
Mas não...
Preferes criar mitos
Alimentar monstros
Falsos profetas
Ídolos idiotas
No fundo, no fundo
Sem profundidade
Na ponta do lápis
Desapontam
Se espreme, espreme
E nada exprimem
Deus te conserve assim
Deus te conserve
segunda-feira, 10 de junho de 2024
cotidianas #833 - Pílula Surrealista #57
Já era quase hora de ir dormir. Aliás, algo que a esposa de Vicente já havia feito enquanto ele, desenxabido, sorvia lentamente um copo de whisky em frente à TV assistindo qualquer coisa com o volume quase no zero. O tempo lá fora, contudo, parecia selvagem, uma selvageria protegida apenas pelo indissolúvel concreto do prédio. Nada à sua volta, nem mesmo os preguiçosos dos gatos e do cachorro, todos dormindo com o sem a dona. Nem vizinhos pra atazanar, nem estampidos de WhatsApp pra infernizar os ouvidos. A noite quase morria.
Era possível ouvir seu peito asmático chiando, parecido com o ronronar dos gatos os quais trabalhava para alimentar. Até que outro som passou a dominar os ouvidos. O som do vento. A ventania irrompia subitamente na rua e batia nas janelas, nas persianas, balanceando-as cada vez mais violentamente. Os vidros, em fricção com o alumínio das esquadrias, rangiam, parecendo dizerem alguma coisa numa língua longínqua ou morta. Só que calhou de esta ser justamente a especialidade de Vicente: linguística de idiomas exóticos. E ele entendeu o que o vento queria lhe dizer.
Só pela manhã a esposa percebeu o espaço vazio no lado esquerdo da cama, um espaço não ocupado naquela noite e nem nunca mais por Vicente. Àquela hora, não havia mais tempo de resgatá-lo. Curiosamente, tempos depois Vicente foi visto pelas câmeras do Google Street View em dois pontos totalmente distintos do planeta: em Okarem, no Turcomenistão, na região de Balkan, e na Patagônia Argentina, mais precisamente em Ushuaia. No primeiro deles, caminhava por uma praia ensolarada e rústica às margens do Cáspio. Na outra imagem, aparecia com um gato a tiracolo na Avenida Maipú, próximo a Plaza Manuel Belgrano. Isso, num espaço de tempo de quatro anos. Disseram que enlouquecera, claro. Jamais iriam perdoá-lo ou tentar entender suas razões. O fato foi que Vicente entendera, isso sim, o chamado dos ventos. Dificilmente, um dia eles o fariam coincidir de retornar a seu agora antigo endereço.
Daniel Rodrigues
domingo, 19 de maio de 2024
cotidianas #831 - "Lama nas Ruas"
Deixa
Desaguar tempestade
Inundar a cidade
Porque arde um sol dentro de nós
Queixas
Sabes bem que não temos
E seremos serenos
Sentiremos prazer no tom da nossa voz
Veja
O olhar de quem ama
Não reflete um drama, não
É a expressão mais sincera, sim
Vim pra provar que o amor quando é puro
Desperta e alerta o mortal
Aí é que o bem vence o mal
Deixa a chuva cair, que o bom tempo há de vir
Quando o amor decidir mudar o visual
Trazendo a paz no sol
Que importa se o tempo lá fora vai mal
Que importa?
Se o clarão da luz
Do teu olhar vem me guiar
Conduz meus passos
Por onde quer que eu vá
Veja
O olhar de quem ama
Não reflete um drama, não
É a expressão mais sincera, sim
Vim pra provar que o amor quando é puro
Desperta e alerta o mortal
Aí é que o bem vence o mal
Deixa a chuva cair, que o bom tempo há de vir
Quando o amor decidir mudar o visual
Trazendo a paz no sol
Que importa se o tempo lá fora vai mal
Que importa
Se o clarão da luz
Do teu olhar vem me guiar
Conduz meus passos
Por onde quer que eu vá, se há
Se o clarão da luz
Do teu olhar vem me guiar
Conduz meus passos
Por onde quer que eu vá...
terça-feira, 30 de abril de 2024
cotidianas #829 - Pílula Surrealista #56
Verônica levantou-se da cama tarde. Meio zonza, a cabeça ainda cheia da bebedeira da noite anterior. O atraso era fatal, só precisava se confirmar na prática quando, mais de uma hora além do horário do ponto, ela se depararia cara a cara com o chefe, sendo a dela de constrangimento e a dele de fúria.
Mas o atraso não se confirmou. Melhor dizendo: jamais houve, pois nem atraso e nem compromisso se realizaram. Tudo isso porque, voltando ao momento da saída de Verônica da cama, os sapatos lhe embaralharam a rotina. Não somente de Verônica, aliás. De todos. Ao tentar calçá-los, ela percebeu que o pé direito calçava o sapato esquerdo e vice-versa. Não havia o que consertasse aquele descompasso. Com desconforto, calçou-os trocados. Era o que restava.Mesmo assim, tentou ir ao trabalho. Saiu pela rua cambaleando e com os pés tortos num exercício de equilíbrio entre bolsa, filho, casaco, processos e autoconfiança. Foi difícil, ainda mais com a dor nos dedos dos pés que o aperto causava. Quase caiu num desnível da calçada, mas manteve a dignidade.
Menos mal que não era somente Verônica que sofria com aquele enviesamento imprevisível. Pessoas atrapalhavam-se com os próprios passos por todos os lados, como se tivessem desaprendido a caminhar em duas pernas, engatinhando igual espécies muito primitivas do homem. Tropeços, quedas, agonias. Uns, desacostumados como não poderia ser diferente, iam forçadamente na direção que o lado esquerdo apontava, mesmo que quisessem ir na direção exatamente oposta. Nas esquinas, Verônica e o filho precisavam desviar de amontoados de gentes, que despencavam umas sobre as outras e não conseguiam mais levantarem-se, numa cena tal qual condenados no fogo do purgatório: urrando, chorando, clamando, lamentando uma vida civilizada que nunca mais recuperarão.
"Trocar os pés pelas mãos", "andar pé ante pé", "usar o sapato do outro", "dois pés não cabem num só sapato", "cada um sabe onde lhe aperta o sapato". Vieram à cabeça de Verônica todos estes provérbios, os quais, contudo, não fizeram sentido, não lhe ajudaram em nada. Desistiu de levar o filho ao colégio a duas agora intermináveis quadras de distância. Parou no meio-fio, vencida. Pela primeira vez na vida, não sabia que direção tomar.
Daniel Rodrigues
quinta-feira, 18 de abril de 2024
"Gilberto Braga: O Balzac da Globo - Vida e obra do autor que revolucionou as novelas brasileiras", de Artur Xexéo e Maurício Stycer - Ed. Intrínseca (2024)
Obra que teve uma trajetória atribulada, com a morte do personagem (Gilberto Braga) e do autor inicial (o jornalista Artur Xexéo), o livro acaba refletindo esses desencontros. Acabou sendo concluído por outro jornalista, Maurício Stycer, e aí surge o primeiro problema: Xexéo, então, em muitas partes, passa a ser tratado como fonte, não mais como autor. Stycer assume a conclusão das entrevistas e se responsabiliza pela redação final.
Outra desilusão foi com relação aos capítulos. São curtos demais e quase todos centrados na obra de Gilberto, com poucas referências ao making of. São ainda quase sempre apresentados num formato semelhante: Gilberto tem a ideia, desenvolve-a, discute com o diretor, começa a gravação, se desespera (com algum ator/atriz, com o Ibope, com a pressão interna da emissora...), promete que aquele será o último trabalho e... volta a escrever uma próxima novela - que servirá de base para o próximo capítulo do livro.
Pouco se fala dos bastidores. Ficamos sabendo da óbvia admiração de Gilberto pela sua patota: José Lewgoy, Malu Mader, Dennis Carvalho, Antonio Fagundes... e até as pouco lembradas Henriette Morineau e Jacqueline Laurence, mas o livro pouco desenvolve quem Gilberto NÃO gostava. Fala en passant dos desentendimentos com Luiz Fernando Carvalho e com Vera Fischer. E só. Daniel Filho e Boni, tão fortes no início de Gilberto em 1972, contrastam com a ausência de Walter Clark, ainda mais poderoso na época e tão pouco citado. São escondidas também pequenas (quem era o cantor que Gilberto não tinha nenhum disco e se apressou em adquirir quando o convidou para um jantar na sua casa?) e grandes fofocas (a maior delas: o misterioso Diplomata, hoje com mais de 90 anos, que teria tido um papel afetivo importantissimo na vida do novelista?).
O livro tem méritos. Recupera bem a fase de Gilberto pré-Globo, a vida como professor de Francês e, mais ainda, como crítico teatral. Mostra também com detalhes o entorno familiar - mais complicado do que qualquer novela do autor. Apresenta ainda Gilberto como uma pessoa insegura, com obsessão por dinheiro (isso se fala quase no início, quando ele ainda está preocupado com um teste vocacional e confessa que "não enxergava futuro algum como professor, não gratifica ninguém, nem monetária nem intelectualmente"), preocupado com a ascensão social (tema tão presente em seus textos) e até da inveja que ele nutriu de Mário Prata durante um período, pelo fato de ele, Mário, ter livre acesso à sala de Boni e ele, Gilberto, não.
A vida de Gilberto Braga deu num livro bom. Poderia ter sido uma novela ótima.
domingo, 14 de abril de 2024
cotidianas #828 - XTRMSTa
- Vamos logo, Mari, o pessoal tá esperando.
- Já vou, já vou.
Beto esperava impaciente, já posicionado ao lado da porta.
- Vamos, Mari! - insistiu, diante da persistência da demora.
- Tô indo! Que pressa! - reclamou ela aparecendo no estreito corredor do apartamento, segurando algumas garrafas cheias de um líquido amarelado e com trapos enfiados nos bocais.
- O que que é isso? - interpelou Beto um tanto incrédulo do que estava vendo.
- Temos que estar prontos, Beto. - disse ainda com um pedaço de trapo na boca - O inimigo é implacável. Temos que estar prontos pra tudo.
- Mari, eu falei que é uma manifestação pacífica. PA-CÍ-FI-CA!
- Diz isso pra eles, diz. Vai lá e argumenta quando eles estiverem te descendo a borracha.
- Não vai ter borracha coisa nenhuma. Não vai ter essas tuas coisas também. A gente só vai lá, estica as faixas, os cartazes, marcha até o local, grita aquelas palavras de ordem que a gente combinou e pronto.
Mari parou olhando fixamente para Beto com os braços caídos ao lado do corpo, em desânimo, com uma garrafa em cada mão.
- Agora larga isso aí e vamos.
Contrariada, deixou as garrafas no canto atrás da porta e saíram para a passeata.
**********
O povo bradava com os punhos cerrados e erguidos.
No meio da multidão, Beto parou com os gritos de guerra e olhou para o lado.
Mari não estava mais ali.
Vasculhou tudo apressadamente em volta, virando o pescoço para um lado e para o outro, quando finalmente a avistou lá na frente. Estava à frente da primeira fileira de manifestantes e a apenas alguns passos da tropa de choque. Levava em uma das mãos um pequno bloco de paralelepípedo de granito.
Antes de avançar contra a barreira de escudos policiais, ela ainda olhou para trás e gritou, "Desculpa, Beto, mas a mudança não vai acontecer com palavras bonitas".
Arremessou a pedra...
- Viva la Revolución!
Cly Reis
quinta-feira, 4 de abril de 2024
Sarau de leitura “Chapa Quente” – Macunaína Gastro Bar – Porto Alegere/RS (08/03/2024)
Faz já alguns dias, mas segue valendo a pena o registro do sarau literário com os autores gaúchos da editora Caravana, grupo do qual faço parte agora por conta do meu “Chapa Quente”. Foi no agradável Macunaíma Gastro Bar, na Cidade Baixa, que reuniu cerca de 15 escritores do “cast” gaúcho da editora. Teve poesia, ensaio, crônica e, claro, conto, garantida por outros e de minha parte com um trecho lido do meu “Abrindo-se”, história que abre o livro.
A coincidência do sarau com o Dia Internacional da Mulher fez com que, além de várias menções e homenagens, eu tivesse clareza de que trecho ler da minha obra, uma vez que cada um tinha em torno de 3 min com o microfone. O pedaço do conto que li falava exatamente da personagem Nina, uma sofrida jovem de classe alta que, em desavença com os pais, morava sozinha em um apartamento simples para seus padrões financeiros e sob o jugo dos homens da sua vida: o agressivo namorado e, principalmente, o pai opressor. Contudo, como ressaltei no preâmbulo que fiz em minha fala ao público presente, a história só se move por conta da ação interna transformadora a qual a personagem se dispõe.
Eis o trecho:
"Acontece que Nina, ao contrário do que alguns tentavam imputá-la, tinha muita capacidade e inteligência. A ponto de buscar no fundo de seu íntimo forças para sair daquele poço emocional. Tudo que não queria era transformar-se no que sua mãe se transformou. Porém, por outros caminhos, via que era justamente isso que estava acontecendo. E afinal, não era exatamente isso que seu pai queria, que as mulheres se anulassem diante dele? Reflexões que a música de Felipe lhe dava condições de fazer nas horas a fio de ensaio dele e de ostracismo dela. “Como esta melodia consegue ser tão delicada e intensa ao mesmo tempo?”, questionava. Impressionava-a que, ali, as repetições eram salutares, diferentemente do que costumavam lhe dizer ao demonizarem a repetição. Através daqueles acordes encadeados, quase hipnóticos, ficava-lhe claro ser possível evoluir e conjugar leveza e força, tudo em que sempre fizeram Nina desacreditar.
Tanto que buscou ajuda: adotou um cachorro, parou com as drogas, desfez-se das garrafas de álcool, passou a escancarar todas as manhãs as janelas por muito tempo cerradas e começou a fazer terapia online. Quase sempre as sessões eram embaladas pelo toque daquele mesmo tema tocado repetidamente por Felipe, como uma trilha sonora martelada de um filme cujo roteiro chegava na parte em que a mocinha superava a crise em direção a um desfecho feliz. Nina buscou harmonizar-se com a mãe e, dentro do possível, entender a postura do pai. Ainda não o havia perdoado e nem sabia se um dia conseguiria, mas tentava viver um dia depois do outro. Só não via mais conserto no relacionamento com o namorado, que, desinteressado, pois muito provavelmente já em outra, cada vez menos aparecia, até que sumiu de vez."
Bom conhecer o pessoal da editora, que em parte veio de Belo Horizonte diretamente para o evento, bem como alguns dos colegas escritores. Casa cheia é sempre legal. Esta foi, embora tímida, a primeira aparição pública de “Chapa Quente”, cujo lançamento foi final de dezembro do ano passado. Prenúncio para, aí sim, um lançamento oficial, que pretende-se arranjar em breve. Por ora, no entanto, alguns registros, feitos pela lente atenta de Leocádia Costa, desse momento de letras e encontros.
*********
A literária Macunaína Gastro Pub
|
Com o editor Leonardo Costaneto (em pé), Leocádia e outros autores |
Lendo trecho de "Chapa Quente" no sarau da Caravana |
Com os outros autores gaúchos e o pessoal da editora |
domingo, 31 de março de 2024
cotidianas #826 - 'SPQR: O Super-Soldado Romano'
- Mandou me chamar, Senhor?
O governador se ajeitou no trono e encarou o homem à sua frente com um olhar sentencioso.
- Chegou a meus ouvidos que teria sido ideia tua aplicar a tal poção bizantina em um dos condenados.
O centurião, um tanto embaraçado, hesitou um instante mas confirmou:
- Sim, meu senhor..., a sugestão foi minha.
Novamente acomodando-se no trono, desconfortável, incomodado, o governador da Judéia, claramente impaciente, lançou ao centurião:
- E não te passou pela cabeça, em nenhum momento que DANDO AQUELES PODERES A UM INDIVÍDUO QUE JÁ ERA ADORADO, IDOLATRADO, ELE PODERIA FICAR AINDA MAIOR COM TUDO ISSO? - aumentando gradativamente a voz até terminar a frase praticamente num berro.
- Eu... eu considerei que deveríamos testar antes de dar aos nossos soldados e... pensei que fosse melhor dar a um condenado pacífico do que àqueles outros, bandidos, assassinos... se tivesse algum outro efeito, se ficasse violento, seria mais fácil de controlar e...
- ... E então ele resiste a mais castigo e torturas do que qualquer outro homem resistiria, revive dias depois e ainda assim pareceu uma boa ideia? - completou interpondo-se na frase do subordinado.
O legionário não soube o que responder.
- Bem, - tentando acalmar-se - ao menos agora temos a certeza que a tal poção para o super-soldado romano funciona. Nossos homens ficam mais resistentes, suportam qualquer dor e, principalmente, não podem ser mortos.
- Sim, meu senhor... Embora não tenhamos certeza de quanto tempo podem viver depois de retornarem da morte, creio que a experiência foi positiva. - argumentou o centurião, um pouco aliviado.
- Tragam aqui o alquimista bizantino, ou seja lá como chamam aquilo que ele faz. - ordenou o governador Pilatos a um dos soldados que guardava a porta.
O governador da judéia bebeu um gole de vinho e, enquanto aguardava o retorno do soldado trazendo o místico, voltou a dirigir-se ao centurião:
- Quero, então que dê a solução para todos os soldados. Mandem esse hierofante ou seja o que for preparar a fórmula. Dêem-lhe o que for preciso para produzir para todos nossos homens.
- Sim, meu senhor. - assentiu o militar.
- Quanto ao judeu, - prosseguiu com as ordens - localizem-no, dêem um fim nele e certifiquem-se de que todos que o viram vivo não possam confirmar o fato.
Neste momento, quase correndo entrou pela porta o soldado, com uma aparência pálida e olhos arregalados.
- O que foi? - quis saber o governador - Onde está o homem?
- Sumiu, meu senhor.
- Como assim sumiu? Alguém deixou que ele fugisse? Abriram sua cela, foi isso?
- Não, meu senhor... Sumiu! Evaporou...
- Como 'evaporou'? - duvidou o nobre - Isso é alguma espécie de brincadeira? Vou mandar te crucificar e ao responsável por essa troça!
- Eu juro, meu senhor, eu juro. Se desfez como fumaça, passou entre as grades, voou pela janela, se espalhou pelo ar...
- Centurião Flávio Augusto, leva este homem. Crucifiquem-no e a todos envolvidos nessa galhofa!
- Sim, meu senhor. Ave, Tibérius! - E saiu segurando o soldado pelo braço sem resistência alguma.
Novamente sozinho no salão, em seu trono, Pôncio Pilatos recostou-se reflexivo. O estrago já estava feito: eles endeusariam o tal nazareno, o seguiriam incondicionalmente. Sabia que os tempos, a partir daquele momento seriam diferentes para Roma e seu Imperador. O mundo acabara de recomeçar.
Cly Reis