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terça-feira, 7 de maio de 2013

cotidianas #221 - Aipim

para Lúcio



A coisa toda começou quando a irmã do Ângelo, que havia ouvido falar em algum lugar sobre cachaça de mandioca, resolveu produzir em casa a bebida. O problema é que na cabeça dela, o processo era simplesmente fazer um combinado de aguardente com o tubérculo e estaria pronta a poção. O fez. Deixou então a raiz curtindo na cachaça por algum tempo pra pegar bem o sabor. Nesse meio tempo, o irmão, abrindo a geladeira, topou ali com aquela espécie de conserva muito bizarra. Achou esquisito mas vendo que tratava-se de algum tipo de bebida alcoólica, resolveu provar. O cheiro não era lá aquelas coisas mas o gosto... hum!!! Até que era bom. Descobrindo com a irmã do que era feita aquela poção, surpreendeu-se mas nem de perto se arrependeu de ter provado. Pelo contrário, acrescentou mais alguns ingredientes para ficar mais interessante. Um pouco de limão, gengibre, quem sabe alguns butiás... Gostando do estranho resultado, passou um pouco para uma garrafa menor e foi para a rua. Encontrando a gurizada na esquina, logo foi solicitado a dividir a bebida:

- Ô. Ângelo, vai ficar te fazendo com essa mixaria? Passa logo esse trago pra cá – intimou um.

- Ó, só vou avisando que é um negócio estranho que a minha irmã fez, hein.

- Ah, dá logo isso aqui – disse o Lúcio, parceiro velho de baderna e bebedeiras, arrancando a garrafa da mão do outro.

Porém, assim que o Lúcio destampou e tentou levar à boca, o cheiro, já originalmente desagradável e agora piorado pelos ingredientes adicionados pelo Ângelo, quase o fez desistir.

- Mas o que é que tu botou aqui???

- Eu disse que o negócio era brabo – riu o Ângelo e continuou – Foi a minha irmã que tentou fazer cachaça de mandioca e deixou curtindo no aipim. Aí ficou isso. Mas tá bom. Eu coloquei mais uns troço aí. Prova, prova aí – insistiu.

O Lúcio, taura, índio-velho, gaudério, velho de guerra, não ia arregar pra um cheirinho de uma cachaça fedorenta e não se intimidou metendo o tal trago goela abaixo.

- Hmm... Pior é que é bom. Hehe! Toma aí, Black – passando a garrafa.

- Bah, ‘tisguei’! – exclamou o Black, com aquela expressão que ele tinha inventado mas que significava, mais ou menos, que havia ficado positivamente impressionado

Os outros, mesmo um tanto desconfiados de início, foram provando e por fim compartilharam da opinião que tinha ficado muito bom. Muito bom mesmo. Tanto que ficaram até horas da madrugada bebendo aquele troço, até mesmo pra se esquentar no frio de Sapucaia do Sul no inverno. E naquela de ‘me passa o aipim pra cá’, ‘passa o aipim pra ele’, ‘não vai virar o aipim’, o nome da beberagem ficou sendo mesmo Aipim.

Quando resolveram que era hora de voltar pra suas casas tinha sobrado pouco do aipim na garrafa. Mas tinha ficado tão bom. Tinham que ter mais Aipim pras próximas madrugadas de frio falando besteira na esquina. Como ima fazer pra reproduzir aquela fórmula. O Pereba se prontificou a resolver. Levou a garrafa pra casa e no dia seguinte acrescentou mais cachaça. Vendo que havia perdido as propriedades exóticas, resolveu adicionar mais algumas coisas. Algum legume, um pouco de Ki-Suco, casca de maçã.... O troço ficou com uma aparência medonha e com um cheiro ainda pior. Levou então pra galera.

- Ó, aí, o aipim – anunciou com aquele seu jeito quase impassível.

O Lóki foi o primeiro a provar.

- Bah, esse cheiro tá horrível...- disse virando a cara para evitar o odor que exalava do gargalo- Tá pior do que ontem.

Mas bebeu.

- Porra, mas ainda tá bom! – disse com entusiasmo.

E a bebida correu de mão em mão entre exclamações de satisfação e risadas.

Pra quem chegava e se interessava pelo que estavam bebendo, valia sempre a advertência:

- Não cheira. Se tu cheirar tu não bebe.

E outro completava:

- Mas se beber, não cheira.

E caíam todos na risada.

E aquilo, “se tu cheirar não bebe, mas se beber, não cheira”, virou praticamente o slogam da bebida.

O fato é que a invenção etílica correu os bairros de Sapucaia ganhando fama e adeptos. Sempre que estava para acabar, alguém levava a garrafa pra casa e acrescentava cachaça e mais alguma coisa tipo agrião, vagem, suco de frutas, uísque, orégano, macela, maconha, de modo a manter o brilho e o encanto da conserva.

Agora dividiam o conteúdo em recipientes menores, em pequenas embalagens de sal de frutas Eno, de modo que todos da turma tivessem um pouco e pudessem levar para qualquer lugar. Para as festas, para o trabalho, para praça pra andar de skate, ou mesmo para a escola. O problema é que a bebida era cada vez mais popular no colégio e não raro se encontrava algum aluno entornando um potezinho de sal de frutas. Começaram a haver queixas de professores que alunos estariam assistindo às aulas completamente embriagados, o que motivou o diretor a convocar uma reunião pública no pátio para expor a situação e dar um basta naquilo;

- Temos informações que alunos tem consumido bebidas alcoólicas no interior deste estabelecimento de ensino e têm freqüentado às aulas em condições lastimáveis de embriaguez. Quero declarar aqui que condutas como estas são inadmissíveis e que a partir de hoje o aluno que for encontrado portando alguma bebida ou em condições suspeitas será suspenso...

O Lúcio e o Ângelo, no pátio, bem lá atrás, só se olharam um para o outro meio de lado.

- Vamos largar fora?

- Vamo. – concordou o Ângelo

O Lúcio tirou um pote de sal de frutas Eno da mochila, deu um gole, fez cara feia, passou pro Ângelo que também fez careta no talagaço, e saíram os dois para matar mais uma aula.




*Salvo algum exagero, alguma fantasia, alguma licença poética, algum personagem fora do lugar ou que eu tenha errado ou esquecido, os fatos descritos aqui são absolutamente verdadeiros e o Aipim efetivamente existiu.



Cly Reis

Um comentário:

  1. Não sei se o Clayton sabe, mas o Aipim chegou a descolar o rótulo de uma garrafa. O negócio era tao ácido mas tão ácido que, depois do Lúcio por dentre dessa garrafa, durante a noite o rótulo foi corroendo e descolou totalmente. Pra tu vê o foto que era o troço...

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