imagem adaptada do filme "Fahrenheit 451"
de François Truffaut
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O homem de uniforme laranja concordou
com a cabeça e então o outro prosseguiu:
- Este sim foi o começo do fim: o MP3.
Cada vez mais compactaram-se aparelhos, as possibilidades de
agrupamentos de arquivos musicais eram infinitas. Aparelhos portáteis
cada vez menores no tamanho mas com cada vez maior capacidade
interna. Todos só faziam compilações pessoais. Os álbuns foram
deixando de existir. Para eles, lá em cima, era perfeito. Enquanto
as pessoas ouvissem música em seus aparelhos apenas para ir ao
supermercado, correr, fazer musculação, cada vez mais iam perdendo
os critérios, o senso crítico, iam pensando cada vez menos...
Baixou a cabeça como a lamentar pelo
que estava relatando mas tomou novo fôlego e continuou:
- Mas não era suficiente, você
entende? Tinham que se certificar que não estivéssemos ouvindo uma
obra inteira nos nossos aparelhos, que não tivéssemos a contestação
sarcástica de um Dylan, a fúria de um Kurt Cobain, o ódio de um
Johnny Rotten, a politização de um Bob Marley. Nada que nos fizesse
pensar. Aí começaram as proibições. Primeiro passou a ser
proibido ter aparelhos antigos em casa. Toca-discos, 3 em 1,
gramofones, tudo o que tocasse os antigos discos de vinil.
- O que eram esses... discos de vinil?
- perguntou o ouvinte.
- Eram os LP's dos quais falei. Discos,
disco mesmo. De mais ou menso 30 cm de diâmetro, havia menores, os
compactos, mas a maioria eram os grandes, conhecidos como bolachões.
Tinham faixas gravadas em ambos os lados e eram reproduzidos em aparelhos giratórios, mais comumente a 33 e 1/3 rotações por minuto, pelo
contato de uma agulha que lia sua superfície. A agulha ia deslizando
da borda externa para dentro e assim que chegava no limite interno
era necessário que se levantasse a agulha, virasse o disco para se
ouvir o outro lado.
- Pouco prático, não? - observou o
outro que até então apenas ouvia atento.
- Até pode parecer, mas você não
imagina o prazer que dava em sentir o primeiro contato da agulah com
o vinil. O chiado que fazia ao roçar nele, a expectativa para o
final de cada lado e para o início do outro...
Montag não entendeu muito bem mas
acreditou que provavelmente tratasse de algo especial.
- Mas então? Como chegamos a este
ponto? Como as coisas são hoje.
Retomou então o homem:
- Bem... não é difícil imaginar. Em
seguida aos discos proibiu-se os CD's, os dispositivos portáteis, a
compra de arquivos em bloco ou de um mesmo artista, os downloads
passaram a ser monitorados pelo governo, foram proibidas então as
músicas com letra, instrumentos e por fim, percebendo que até um Beethoven, um
Sivuca ou um Glass podem estimular pensamentos mesmo sem palavras,
resolveram criar a Rádio Estatal e esse o som que sai das paredes. O
único som que é permitido. É lobotômico, você sabia? Deve-se
evitar ouvi-lo prolongadamente. Mas a população ouve. Gostaram da
música do governo. Aliás o povo sempre foi assim, gosta do que der
pronto para ele.
Suspirou fundo, olhou na direção das
árvores:
- O K7 até voltou a ganhar alguma
força no submundo mas tão logo os homens souberam iniciaram uma
nova onda de perseguições e buscas. E é aí onde você entra.
- Mas eu não sou mais um coletor –
defendeu-se rapidamente Montag – Eu, eu... durante uma busca para
coleta eu peguei um aparelho. Eu não o coloquei na prensa. Guardei
no bolso. Eu o levei para casa e consegui ouví-lo. Ainda usei os
fones de ouvido da Central, mesmo. Os que usamos para sermos avisados
das buscas. Eu ouvi.
- O que você ouviu, Montag. É este o
seu nome, não? Montag?
- Sim, é. No aparelho, um reprodutor
de MP3 havia um arquivo chamado “Help”. Eu ouvi aquilo... havia
uma música chamada “Yesterday”. Ela simplesmente... me fez
chorar. Não sabia que músicas podiam fazer isso com a gente.
- Oh, sim... Eles eram conhecidos como
The Beatles. Dizem que foram os maiores. “Help!” foi um grande
álbum – confirmou o outro com ar de satisfação – A música é
muito poderosa. Por isso não querem que as ouçamos.
- Quer ficar conosco?
- Adoraria. Ainda mais agora que sou
uma espécie de “ameaça ao governo” - riu.
- Pois bem, aqui somos apenas uns 80,
mas há muitos outros em muitas outras colônias clandestinas como
esta pelo mundo afora. Pessoas dispostas a manter vivo o encanto, a
magia e o ideal dos artistas e das suas obras fonográficas. Não foi
pensado! Na verdade tudo começou meio que por acaso. Um homem aqui,
outro ali, amante incondicional de música tratou de guardar no lugar
mais seguro e intransponível, seu cérebro, no mínimo, uma música
que amasse muito. Todos os detalhes possíveis, a melodia, a
entonação, a batida, um ruído secreto. São homens-música. Deu-se
que calhou de juntarmo-nos aqui e nestes outros lugares que falei,
onde o governo ignora ou prefere que fiquemos desde que não
“importunemos” sua ordem. O que eles não sabem é que assim que
temos notícia de que uma outra “música” que faça parte de uma
obra esteja pronta, tratamos de trazê-la para cá ou levá-la para
onde possa compor um álbum. A propósito, não me apresentei, sou
“Águas de Março” de Tom Jobim.
E apontou adiante mostrando:
- Aquele ali é “Non, Je Ne Regrete
Rien”, de Édith Piaf; aquele outro sentado é “Little Red
Rooster”, de Willie Dixon, na versão de Howlin' Wolf; aquele outro
é “Anarchy in the U.K. Dos Sex Pistols; aquela moça bonita de
vermelho é “Venus In Furs” do Velvet Underground. E vê aqueles
todos juntos? Aquelas nove peassoas? Conseguimos reunir todas as
músicas do “Let It Bleed” dos Rolling Stones – sorriu com
satisfação.
- Não é fácil – continuou- Nem
sempre conseguimos reunir álbuns inteiros, às vezes temos 4, 5
homens-música mas os outros estão espalhados por aí, por outras
colônias, ou simplesmente vagando solitários com sua música
favorita guardada em sua cabeça até que um dia as músicas sejam permitidas novamente e que aqueles clássicos possam voltar a serem gravados. Você ainda tem o aparelho? O
arquivo?
- Sim, sim. Eu trouxe na fuga –
apressou-se em mostrar, tirando do bolso.
- Acha que pode decorar sua letra,
melodia, os detalhes de sua percussão? Acha que consegue identificar
os instrumentos?
- Creio que sim.
- Pois então, ouça bem, ouça quantas
vezes precisar e trate de gravar na sua mente. Assim que tiver
terminado faremos o que você sempre fez, destruiremos o arquivo para
que o governo não tenha motivo para prender qualquer um de nós.
Temos alguns fones velhos se precisar.
- Eu gostaria muito.
- Vamos lá. Vamos à cabana buscar –
conduzindo Montag com a mão em seu ombro.
No caminho para a choupana que lhes
servia de alojamento, passaram por uma menina de uns dezessete anos
que cantarolava alto o suficiente apenas para que quem estivesse
perto dela conseguisse ouvir, “in dreams i walk with you...”.
Era “In Dreams” de Roy Orbison.
Cly Reis
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