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terça-feira, 3 de junho de 2014

cotidianas #299 - A Última Chamada



Pôs o fone no gancho e sorriu para a mulher que acabara de entrar no escritório.
- Trouxe um café – disse a esposa com um sorriso no rosto – Negócios?
- Ah... um cliente. Uma entrega de um lote. Só isso – respondeu parecendo um tanto embaraçado.
- Ah, entendo – disse colocando a bandeja sobre a mesa de trabalho do marido.
- Pensei que você só fosse voltar mais tarde – observou o homem.
- Pois é. Desocupei mais cedo do que imaginava – explicou – Mas não quero atrapalhar o seu trabalho. Só aproveitei que a Leonice ia trazer o café e vim ver se estava tudo bem. Está, não?
- O que?
- Tudo bem.
- Claro, claro. Sim, está tudo bem. Obrigado. Está tudo bem.

****

- Mais ou menos. Estou com saudade.
Com um sorriso brejeiro no rosto, a moça, não mais que uma adolescente, conversava excitada ao telefone.
- Quando é que você vem aqui me ver? Faz tempo que a gente não faz... aquilo – pronunciou esta última palavra  numa espécia de risinho sugestivo.
A garota falava, visivelmente excitada, enrolando os dedos no fio do aparelho e mordendo o lábio inferior.
- Ah, dá um jeito – continuou ela agora um pouco contrariada.
Silenciou por alguns instantes ouvindo a pessoa do outro lado da linha e retomou em tom de cobrança:
- Tá bom. Tá bom... Então pelo menos diz que me ama. Não, não... diz... Ãhnn??? O que??? Como ass...? Que conversa é essa?
Ainda olhou indignada para o fone como se olhasse para a cara da pessoa do outro lado.
- Desgraçado! Desligou na minha cara.

****

- Tá bom, Leonice, deixa que eu levo o café.
- Mas o seu Flávio pediu pra eu levar – tentou insistir a empregada.
- Mas deixa que eu levo. Deixa eu fazer uma surpresa pra ele.
Caminhando em direção à biblioteca que o marido costumava usar como escritório para encaminhar assuntos da empresa, do corredor, mesmo sem querer, pôde escutar a voz quase sussurrada que vinha lá de dentro.
- Assim que eu puder. Acho que a minha mulher anda meio desconfiada. Tá em cima de mim, ultimamente.
Aquela última frase fez a esposa, Irene, com a bandeja de café nas mãos, no final do corredor, aí sim, prestar atenção na conversa, tentando aproximar-se mais, silenciosamente, de modo a não ser vista pela porta aberta da biblioteca.

*****

Flávio saiu da cozinha assoviando corredor afora em direção à biblioteca.
Tinha assuntos da empresa para cuidar, entregas, lotes, mas aquilo tudo podia esperar. Aproveitaria que a esposa não estava em casa e trataria de outra coisa.
Sentou à escrivaninha, olhou para o aparelho à sua frente e tirou o fone do gancho.

****
Irene estranhou ver o marido tão animado, assoviando pelos corredores. Por certo fechara algum negócio importante. Por vezes o marido não ia ao escritório e ficava em casa fazendo ligações da biblioteca.
O cheiro de café invadia a casa inteira. Por certo a Leonice havia passado um novinho.
Aproveitaria o imprevisto de sua consulta médica adiada e faria uma surpresa ao marido que por certo não esperaria por ela em casa àquela hora. Levaria ela mesmo o café para ele.

****
- A Jéssica mandou o senhor ligar pra ela. Nem sei porque que eu ainda faço essas coisas pro senhor. A Dona Irene vai me matar.
- Você faz isso por mim porque você é um anjo, Leonice – disse o homem pegando a cabeça da empregada entre as mãos e tascando-lhe um beijo na testa.
- Para com essas coisa, Seu Flávio – disse a serviçal fingindo irritação.
- Vai, me leva um cafá na biblioteca, Leo. Vou aproveitar que a Irene vai demorar e ligar pra tua sobrinha.
- Seu Flávio... - fez ainda a empregada em tom de desaprovação antes que ele tomasse o corredor assoviando.

****
Há tempos que já estava um tanto desconfiada do marido e agora aquela ligação misteriosa.
Até já imaginava quem pudesse ser. Aquela piranhazinha da sobrinha da Leonice. Estivera com a tia, um dia desses, ajudando na faxina. Se era isso, descobriria. Se fora o marido quem fizera a última chamada, descobriria para quem foi pela rediscagem automática. Tinha quase certeza de que havia sido a última ligação pois pouco depois que deixara o café e saíra da biblioteca, vira o marido sair apressadamente logo em seguida.

****
- Não... Não. Não assim pelo telefone... Tá bom. Eu te am… - e avistando um reflexo no piso, entre a porta da biblioteca e o corredor, mudou repentinamente de tom e de assunto.
- Aham... Sim, claro. Como não? Perfeitamente. Até mais tarde. Obrigado.
O homem atrás da escrivaninha desligou o telefone e sorriu para a esposa que entrava no escritório com uma bandeja de café.

****
Dona Leonice já não era mais nenhuma menina.
Era de confiança do casal, mais do Seu Flávio, de quem cuidara desde pequeninho e por quem tinha um afeto todo especial. Não podia àquelas alturas da vida se dar ao luxo de perder o emprego por causa dos namoricos da sobrinha.
É verdade que ela mesma, Leonice, criara aquela situação dando o número da garota para o patrão. Mas acabaria com aquilo imediatamente.
Tirou do gancho o aparelho de telefone da cozinha e discou.
Começou a chamar.

****
- Na minha cara! - exclamou em voz alta para si mesma.
Por que seria que o novo amante, mais velho, a deixara falando sozinha com o telefone na mão?
Por certo não fora por vontade própria. Se mostrara tão atencioso desde que se conheceram no dia em que foi ajudar a tia na faxina na casa dona patroa, a Dona Irene.
Não se incomodou nem um pouco quando recebeu a ligação do homem casado. A tia fora quem dera o número. Na verdade mal sabia o coroa que tinha autorizado a tia a fazê-lo caso ele pedisse.
Mas e agora aquele tratamento...
Não podia retornar a ligação para a casa dele. Não seria prudente. Ligaria para a tia e saberia o que estaria se passando. Se a barra estava limpa. Pegou o celular de dentro da mochila, deslizou a tela, localizou Leonice e... chamando.

****

Perturbado pelo susto, Flávio deixou de lado os assuntos da empresa que tinha para resolver. Permaneceu alguns instantes ainda sentado à cadeira rotatória da biblioteca, pensando no que faria, e por fim levantou-se e dirigiu-se com decisão ao pátio.
Acabaria com aquela história naquele momento.
Ligaria do celular para a amantezinha e poria fim àquela aventura juvenil.
Sacou o aparelho do bolso e procurou “contato sem nome”. Era este.
- Está chamando... – fez questão de dizer para si mesmo.

****
Irene abriu a porta do quarto contíguo à biblioteca, de onde viu Flávio sair decidido, a passos largos, pouco depois de ter-lhe deixado o café, e retornou à mesa do marido. Sentou na confortável cadeira giratória, pegou o telefone e apertou REDISCAR.
Estava chamando.

****
- Alô.


Cly Reis

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