"Gal é uma das grandes
personalidades da nossa história.
As Dunas da Gal, o Vapor Barato, ‘a mulher
mais elegante do Brasil’
(no dizer de Danuza Leão na época),
Baby, Divino
Maravilhoso, Índia:
todo um mundo brasileiro do qual
não podemos abrir mão
se
quisermos ser o que devemos ser."
Caetano Veloso
Caetano Veloso é, como todos sabem, irmão de Maria Bethânia. Mas sua
ligação e sinergia musicais com Gal Costa talvez sejam até maiores do que com a
cosanguínea. Baiana como ele, poucos anos mais nova mas da mesma geração, foi
com Gal que o cantor e compositor gravou seu primeiro disco, “Domingo”, de 1966
– embora o elo, inclusive familiar, já viesse de antes. Além disso, no entanto,
foi Gal quem, embarcada com os dois pés no Tropicalismo liderado por ele e Gilberto Gil na segunda metade dos anos 60, manteve acesa a explosão
transgressora e criativa aberta pelos tropicalistas quando do exílio da dupla
em Londres de 1969 a 1972. Ao contrário de Bethânia – que sempre soube seguir o
seu caminho fugindo ao máximo das rotulações e estereótipos –, Gal por escolha não
só segurou a barra enquanto única remanescente da formação original da
Tropicália durante os anos de chumbo da Ditadura como, mais ainda, avançou a
MPB em todos os sentidos, da confluência de estilos e referências (objetivo-fim
tropicalista) a, obviamente, sua própria arte maior: a técnica do canto.
Não se começou a falar em Caetano Veloso num texto sobre Gal Costa à
toa. Como aconteceria no espetacular "Recanto" – disco de 2012 cujo diálogo estreito
com este forma um díptico de 38 anos de ínterim –, é o quase-irmão Caetano quem
dá o tom do “cantar” de Gal. Produzido por ele em parceria com outro mestre da
retaguarda tropicalista, Perinho Albuquerque, é um disco totalmente maduro da
talentosa cantora, já deixando a extravagante e raivosa Gal do início da Tropicália
um pouco para trás. Aqui, ela está dona de si, de seu conceito como artista e
do posto de maior cantora de seu tempo ao lado de Elis Regina, também no auge à
época. E Caetano, dirigindo um projeto para ela pela primeira vez (até então
haviam exercido tal função Wally Salomão, Jards Macalé, Rogério Duprat e Guilherme Araújo), é um pouco responsável por esse amadurecimento.
Desfilam pelo disco músicos de primeira linha, como o genial João Donato, o mestre da raça Gil, o “Clube da Esquina” Noveli, o baterista Tuty
Moreno e, claro, os próprios Perinho e Caetano. O resultado é um álbum
resplandecente, florido como sugere a belíssima arte forjada pelo artista visual Rogério Duarte. A contestação de “Divino, maravilhoso”, a fúria de “Eu sou
terrível”, a psicodelia de “Dê um role” ou a estridência de “Meu nome é Gal”,
agora, refazem-se, remolduram-se. Estão ali, porém sob outro olhar. Um sopro de
pólen colorido no negror dos anos de chumbo.
O começo não é nem um desabroche: é a flor já em pleno estado de vida.
“Barato Total”, hit do álbum, é das melhores músicas de Gilberto Gil cujo
presente não se encerra somente no fato de este tê-la dado especialmente para a
amiga. Gil também empunha o violão durante a faixa, e Gil ao violão sabe-se
como é, né? Além de sua altíssima técnica que une a batida de João Gilberto ao
ritmo frenético do rock – e mais o congado, o maxixe, o jazz e o baião –, o
grande compositor simplesmente arrasa nas cordas, sustentando a melodia num
toque swingado e cheio. É tão intenso que, na regravação feita por Gal com a Nação Zumbi, em 2004 (também produzida por Caetano), bastou à banda traduzir
para os tambores pernambucanos a batida de violão de Gil. A letra traz, já na abertura
do disco, a mesma ideia de ressaltar a beleza da vida para além de toda a
situação política e moral do país: “Quando
a gente tá contente/ Tanto faz o quente, tanto faz o frio, tanto faz”. E
finaliza, numa exclamação: “Quando a
gente tá contente/ Nem pensar que está contente a gente quer/ Nem pensar a
gente quer, a gente quer/ A gente quer, a gente quer é viver”.
Como todo grande disco, “Cantar” larga com uma de encher os olhos. O
que virá a seguir superará ou se equiparará? Pois o lirismo da cantora estava
realmente germinado. Ela arrebenta na interpretação da clássica “A Rã”. É a primeira
das quatro de autoria de Caetano no disco, e justo uma em parceria com outro
personagem fundamental desta obra: João Donato. Ele, além desta, assina o
arranjo da canção de ninar que finaliza o disco, “Chululu” (de autoria da mãe
de Gal, Mariah Costa, que costumava cantá-la para a filha na infância), e de outras
duas: “Até quem Sabe”, só piano e voz, lindíssima e altamente erudita; e “Flor
de Maracujá”, um soul funkeado ao
estilo de “A Bed Donato” (referencial álbum gravado pelo acreano nos Estados
Unidos em 1970). Esta, última do lado A do vinil, dialoga maravilhosamente com
a primeira da segunda face: “Flor do Cerrado”, que, assim como “Barato Total” é
das melhores composições de Gil não gravadas por si próprio, também é das mais
belas de Caetano nunca registradas por ele mesmo. Letra de poesia caetaneana,
vocal cristalino de Gal e uma rica incursão do autor contracantando “Garota de
Ipanema”, de Tom e Vinícius. No refrão, ainda, Gal, afinadíssima, executa um
portamento de notas muito bonito e técnico, subindo gradualmente até finalizar
lá em cima da escala na última palavra: “Mas
da próxima vez que eu for a Brasília/ Eu trago uma flor do cerrado pra você”.
Antes, entretanto, o primeiro lado ainda guarda duas ótimas faixas.
Lua, lua, lua, lua”, mais uma de Caê, que, junto com outra que vem mais
adiante, “Joia” (um espetacular trabalho de percussões africanas e piano
monotonal que antecipa trabalhos de Caetano de 1997 e 2000, “Livro” e “Noites
do Norte”, respectivamente, quando ele aproxima a vanguarda erudita às raízes
da África), foram gravadas por Gal um ano antes do próprio usá-las no seu disco
– por sinal, intitulado “Joia”. E diferentemente da versão barroca que gravaria
para si, “Lua...” traz um elemento interessantíssimo: sob a voz dela, Caetano exercita
uma espécie de beat-box, expediente
que o mesmo se valera na concepção da trilha sonora do filme “São Bernardo”,
dois anos antes, encomendada pelo cineasta Leon Hirszman a ele quando ainda no
exílio.
A outra maravilha que completa a primeira parte de “Cantar” é “Canção
que morre no ar”, clássico da bossa-nova de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli,
somente com a voz e um apaixonante e ornado arranjo de cordas de Perinho e
regência de Mário Tavares. Aqui, Gal encarna Billi Holliday acompanhada da
orquestra de Ray Ellis em "Lady in Satin"; Ella Fitzgerald conduzida pela batuta
de Nelson Riddle em “Sings the George and Ira Gershwin Songbook”; ou Dalva de
Oliveira com o conjunto sinfônico de Roberto Inglez. Gal está jazzística e
lírica em seu timbre de soprano. A letra faz uma fusão entre as atmosferas
lunar e flórea do disco como um todo: “O
mundo é sempre amor/ O pranto que desliza/ No seio de uma flor/ É a luz lá do
céu”.
Também síntese do álbum é “O Céu e o Som”, do cantor, compositor e
poeta Péricles Cavalcanti. Ritmada e gostosa, contrapõe cantos entre ela e um
coro masculino (que desconfio seriamente serem Os Golden Boys, embora não haja crédito
disso). “Cantar, cantar/ Há uma asa na
alma no ar/ Me ensina a cantar, amor”. E, lá pelas tantas, perguntam
retoricamente: “Quem foi que disse que a
mulher não voa?” Voa, sim.
Tanto voa que, antes de terminar o disco, Gal faz o ouvinte levitar no sensualíssimo
jazz “Lágrimas Negras”, composição de Jorge Mautner e Nelson Jacobina. Das
melhores do álbum, sua cadência suave remete (e serve muito bem para isso,
diga-se de passagem) ao momento de uma transa embalada ao ritmo da
guitarra-ponto dedilhada por Perinho. E quando Gal, diz, num compasso hiper sexy: “E você, baby, vai, vem, vai...”, é de arrepiar até o tal “astronauta
da saudade” mencionado na letra!
“Cantar” gerou um show que não foi bem recebido pelo público por ser
taxado de “muito suave”, contrastando com a imagem forte que a cantora criara a
partir do movimento tropicalista. À época, bom que se lembre, artistas de
sucesso como ela eram exigidos pela opinião pública burra de permanente e
abertamente lutarem contra a Ditadura na concepção de suas obras. Queriam
canções de protesto, não arte. Uma bobagem tamanha, uma vez que a premissa do
artista é exatamente a liberdade tão desejada por estes que os retalhavam.
Afora isso, visto noutro enfoque, há formas distintas de se lutar e se engajar
sem necessariamente bater de frente com a força bruta – e sair perdendo, como
geralmente acontece. Foi o que Gil e Caetano, enquanto tropicalistas como ela,
fizeram a seu modo. E venceram. Hoje, completando 40 anos de seu lançamento,
“Cantar” é um trabalho de uma riqueza descomunal que tem ainda muito a se
revelar e cuja participação destes protagonistas foi fundamental. Uma flor que
não morreu e ainda colore o jardim de quem entende que “o caminho do céu” está
“no caminho do som”. Gal nos ensina a cantar e voar.
"Barato Total" - Gal Costa
FAIXAS:
1. Barato Total (Gilberto Gil) - 3:48
2. A Rã (Caetano Veloso, João Donato) - 3:52
3. Lua, Lua, Lua, Lua (Veloso) - 3:02
4. Canção que Morre no Ar (Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli) - 1:50
5. Flor de Maracujá (Veloso/Lysias Ênio) - 2:56
6. Flor do Cerrado (Veloso – música incidental: “Garota de Ipanema”,
Tom/Vinicius) - 3:13
7. Joia (Veloso) - 3:24
8. Até Quem Sabe (Ênio/Donato) - 3:39
9. O Céu e o Som (Péricles Cavalcanti) - 3:00
10. Lágrimas Negras (Jorge Mautner/Nelson Jacobina) - 3:31
11. Chululu (Mariah Costa) - 0:56
Ouça:
por Daniel Rodrigues
O álbum também não foi muito bem recebido,hoje é cult absoluto.
ResponderExcluirAinda bem que você apenas ladeou Gal à Elis,é quase uma heresia dizer que outra cantora canta mais que Elis Regina,rs.
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