“Nascer não é antes, não é
ficar a ver navios,
Nascer é depois, é nadar
após se afundar e se afogar...”
Waly Salomão,
trecho do poema “Sargaços”
“Que o leitor, livre dos
lugares-comuns, possa agora,
perambular livremente entre as falanges das
máscaras que povoam
os libanos de sonho da mente régia de Waly Salomão,
um dos
poetas mais originais e vigorosos do nosso tempo.”
Antonio Cícero
Cada vez que
escuto uma canção ou sua voz falando verborragicamente sobre algum tema, paro.
Ler não é a mesma coisa. Parece que a
voz de Waly Salomão ou a sua poesia transformada em canção tem que estar no
volume máximo. Assim, daquele jeito que o coração dispara, os olhos se fixam no
interlocutor e a mente divaga.
Sempre uma
cena mágica abre-se com sua presença. Ora pela risada estrondosa, ora pelo seu porte
de Rei Salomão. Lá de cima, com o limite cacheado dos cabelos, observa com
muita acidez o que ocorre nas entrelinhas da sociedade. E não perdoa. Solta as
palavras como leões ferozes, coreografados como se fossem um cardume infindável
de peixes dançarinos em nossa frente, chamando a atenção, hipnotizando.
Waly sempre intenso,
escrevendo ou falando |
Não soube da
existência e paradeiro de Waly por muitos anos. Tempo demais, mas que me permitiu
escutá-lo numa palestra em Porto Alegre na Usina do Gasômetro, junto com a
minha irmã, em 1998. E lá estava Waly, ocupando um dos lugares na mesa, o homem
das Artes múltiplas, dos dizeres não-óbvios, das filosofias vãs e das frases
sem comprometimento com o dever de dizermos o que deve ser dito. Diga você o
que quiser, mas escute também o que vier. Dali em diante prestei atenção nele.
E descobri muito lentamente onde ele estava morando. Em quais espaços estava
presente. Desde então sempre quis saber por “Onde
estava o nosso Waly?” como se um mapa sinônimo da personagem Wally criado
pelo ilustrador americano Martin Handford pudesse avistá-lo, numa terra à
vista, em meio a tantos cacarecos desnecessários à essência humana. Afinal é
fundamental selecionar o que queremos receber, privilegiar aquelas produções
que sejam sintonizadas conosco, abrir espaço para aquilo que nos desacomoda. A
vida sem desafios torna-se muito tediosa e improdutiva.
Waly era
assim, desafiava a todos, começando por si próprio. Não poupava os seus
compatriotas, não poupava sua nação de escutá-lo. Baiano, filho de Xangô e
virginiano (“Eu deliro, mas tenho os pés
no chão porque sou de virgem”) sempre esteve ligado aos coletivos. Gostava de dizer: “Chega do papo furado de que o sonho acabou: A Vida é Sonho. A Vida é
Sonho. A Vida é Sonho.” como um cale-se a quem dizia que o sonho havia
acabado, gerando uma onda de baixa estima a tudo que fosse revolucionário.
Irreverente, sempre. Múltiplo também. Porque dizer algo que não tenha um pouco
de poesia, humor e sarcasmo misturados? De origem síria, não escondia suas
raízes “estrangeiras”, mas também sua relação com essa pátria em que todos
vivemos paridos pelo caos. Isso não o assombrava: o que seria diferença para
outros, para ele era semelhança.
Lemisnki
dizia que Waly “se não chegou a se tornar
tudo, foi muitas coisas”. Isso, claro, para a nossa sorte que bebemos um
pouco de lucidez através da sua poesia. Entre 1970 e 2000, Waly atuou como
poeta, ensaísta, letrista, articulador cultural, diretor de espetáculos,
artista visual e homem público. Dirigiu entre outros o espetáculo “FA-TAL – Gal
a todo vapor”; de Gal Costa, esteve na Direção da Fundação Gregório de Matos de
Salvador e coordenou o Carnaval da Bahia. Seus poemas foram musicados por
muitos artistas, entre eles: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé, João Bosco e Adriana Calcanhoto.
Depois de 11
anos da sua passagem, em 2003, a editora Companhia da Letras lançou com a
bênção dos herdeiros a poesia completa de Waly, “Poesia Total”. Cada vez que a família de algum artista faz essa
ação de compartilhar de forma organizada e acessível à obra de quem não pode
mais decidir sobre publicações, sinto-me esperançosa. As publicações são formas
de perpetuar a obra de um artista, daí meu agradecimento pela reunião da
produção do artista.
Ali estão os
poemas e as reflexões de Waly. Minhas prediletas são os poemas que viraram
canções: “Vapor Barato” com Gal; “Mal Secreto” com Jards; “Mel” e “Cobra Coral”,
ambas na voz de Caetano Veloso; “Fábrica do Poema”, em homenagem à arquiteta
italiana Lina Bo Bardi, a hipnótica “Pista de Dança” e a recente “Teu nome mais
secreto”, todas na voz de Adriana Calcanhoto; “Zumbi (A Felicidade Guerreira)”
e “Ganga Zumba (O Poder da Bugiganga)”, que encantam no filme “Quilombo”, na
voz de Gil; a descontraída e pontual “Assaltaram a Gramática”, musicada por Lulu Santos e gravada por Paralamas do Sucesso; “Memória da Pele”, musicada e
gravada por João Bosco e outros poemas dedicados em pura palavra-sentimento a
Solange Farkas, in memoriam à Lygia
Clarck e a Luiz Zerbini, além do amoroso poema “Mãe dos Filhos Peixes” a sua
Yemanjá: Martha.
Waly,
diferente da personagem americana que tem em seu protagonista um jovem
adolescente, cresceu. Ele que diz: “Tenho
fome de me tornar em tudo que não sou”, porém soube ser muitos sendo um só.
Amadureceu cedo demais. O poeta Alexei Bueno comenta uma obra de Waly, “Lábia,
1998”, sua retomada cortante e límpida com as palavras, mais adiante na resenha
diz que está na sintaxe sua mais poderosa característica. Senão isso, talvez a
clareza e a assertividade de pensamento fazem de Waly um poeta que nos deixa
suspensos numa ponte pênsil a cada palavra dita. Em Desejo&Ecolalia, de
1995, ele diz: “O que é que você quer ser
quando crescer? Poeta polifônico”. E foi assim que ele nos alcançou em meio
ao caos pertinentes da mesma pátria em que vivemos.
O "Pocket Waly", apresentado na 60ª Feira do Livro de POA |
Se você
nunca esbarrou na obra de Waly Salomão ou nem pensou em procurá-lo, mude de
rota. Estabeleça uma meta e persiga-o incessantemente. Se conseguir alcançá-lo
não desista nas primeiras leituras: siga sereno, mas constante. Leia, cante e diga em voz alta sua poesia. Aos brados retumbando
suas frases você sentirá o que ele tinha internamente. Um vulcão prestes a
explodir! E sabemos que as terras próximas aos vulcões são sempre as mais
férteis, mas suas lavas podem queimar. Mesmo assim siga em frente, rompa essa
fronteira. Se necessário queime-se, transforme-se. Vale a pena.
Adriana Calcanhoto canta Waly
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