“A vida é boa te digo eu/
A mãe ensina que ela é sábia/
O mal não faço, eu quero o bem/
A nossa casa reflete comunhão.”
da
música “Comunhão”,
de Fernando Brant e Milton Nascimento,
criada para o musical
Missa de Quilombo, 1982
Meu pai e eu éramos muito ligados. Nem todos os
filhos sentem-se assim ligados aos seus pais. Muitos de nós passamos parte da
vida lamentando o berço familiar, a descendência e tudo o que existe dentro de
uma família.
Comigo não foi assim.
Cresci até os 4 anos com um pai muito feliz,
animado e parceiro de aventuras. Cresci no Centro da cidade de Porto Alegre
após nascer no Bom Fim. Nas imediações do Centro eu e ele íamos ao parquinho
que ficava no Largo da Epatur. Eu viajava nos discos voadores, andava de
charrete e montava nos cavalinhos do carrossel. Ele ficava me cuidando e
fotografando ao mesmo tempo.
Meu pai curtia revelar as imagens e organizar nos
álbuns, que naquele tempo eram feitas em câmera com negativo quadrado e a
imagem final dependia das condições técnicas do fotógrafo – ele tinha talento! Todas
as fotos aprovadas iam para um álbum-pasta que por anos nos acompanhou. Dono de
um gênio forte, por vezes temperamental, sempre se percebia amor nele e alegria
nestes momentos.
Assim cresci: parte saindo rumo aos parques, praças
e ruas do bairro e por outras tive meus momentos de estar em casa. Lá brincava
comigo de gravar a voz. Eu adorava. Vez em quando cantava ou contava do meu dia
na escola.
Faz um tempo que recebi uma “cutucada”, como se diz
no dialeto estranho das redes sociais, dos editores do ClyBlog para escrever
sobre uma das maiores cantoras brasileiras, Elis Regina. O que isso tem a ver comigo e com a minha relação paterna? Tudo! Mas confesso que o convite me
deixou atordoada, sem saber por onde começar. Elis está em muitos momentos da
minha vida representando transformação.
Eu e Marcelo na abertura da exposição
A Aventura de Criar - Galeiria Duque, maio 2015
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Depois de tantas audições no lar, eu já sabia as
letras, os tempos e as paradas que a cantora fazia. Então, apresentava a
dublagem nas reuniões de final de ano e nos aniversários à família. E me achava
a segunda melhor cantora daquele momento por conta dessa total sintonia que
tínhamos. Eu tinha de 7 para 8 anos de idade.
Nunca me rendi somente à voz, mas a toda atmosfera
como intérprete que Elis criava para cada canção. A emoção, a quebra das
palavras, o respirar das frases, a cadência de cada arranjo tornava cada faixa
do LP única. Realmente algumas canções são “inescutáveis” se a intérprete não
for Elis Regina.
O LP que mais tocou em mim é este, de 1980, que tem
as faixas inesquecíveis: “Rebento” de Gilberto Gil; “Nova Estação“ de Luiz
Guedes e Thomas Roth; “O Medo de Amar é o medo de ser livre” de Beto Guedes e Fernando Brant; “Aprendendo a jogar” e “Só Deus é quem sabe”, ambas de
Guilherme Arantes; além da arrebatadora “Trem Azul”, de Lô Borges e Ronaldo
Bastos, hino em minha vida. Quem escutava Elis recebia a melhor produção
musical do momento.
Acervo de Elis da CCMQ
Jornal Zero Hora - 22/09/2005
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Fui compreender seu universo e sua enorme
contribuição a jovens compositores anos mais tarde, quando, adolescente, lendo
matérias, vendo artigos e escutando amigos me dei conta do movimento, da
visibilidade e da força que ela deu a uma galera referência até hoje na música
brasileira.
O tempo passou e meu pai acabou perdoando a morte
de Elis Regina, voltou a escutar sua voz e vez em quando ele comentava: “Mas ela canta como ninguém mais poderia
interpretar essa canção!”, e
então se recolhia ao silêncio respeitoso de escutá-la.
Em 2005, tive a alegria de ser convidada por Sergio
Napp, então Diretor da Casa de Cultura Mário Quintana, a criar o Acervo Elis Regina da CCMQ. Nesta época,
mergulhei em todas as informações que recolhemos de acervos doados e de livros
editados sobre ela. Lembro-me do impacto que tive com a análise do mapa astral
de Elis, por um dos maiores astrólogos do país, Antônio Carlos “Bola” Harres,
que anos mais tarde foi meu cunhado e que apresenta a configuração astral de
Elis de uma forma que compreendemos os conflitos, o fluxo das emoções e as
nuances talentosas da cantora.
Elis era uma mulher com força impulsiva e, ao mesmo
tempo, com alta sensibilidade. Opostos atuando sempre ao mesmo tempo. Essa análise
me ajudou a compor com os arquitetos Carlos e Lizete Jardim as cores, a
atmosfera e a forma de apresentar os conteúdos do Acervo. Nesta época também
conheci mais profundamente o repertório de Elis e a sua estreita relação com
compositores que embalaram minha mesma infância, tais como: Milton Nascimento/Fernando
Brant, Gil, Beto Guedes, Guilherme Arantes, Ronaldo Bastos, Lô Borges, João Bosco/Aldir Blanc, Ivan Lins, entre outros.
Durante todo o tempo de pesquisa sobre o Acervo meu
pai me incentivou com orgulho de ver aquela escuta de anos atrás se transformar
em um espaço físico homenageando a intérprete e a cantora, que mesmo sendo um
dos maiores nomes da música brasileira, se achava brega perto de outras
cantoras da sua época, a exemplo de Rita Lee.
Meses após termos aberto o Acervo Eis Regina, fui
apresentada por Luiz Carlos Prestes Filho em Porto Alegre a Fernando Brant, compositor
e letrista da mais alta qualidade musical e humana. Ele ficou muito feliz com o
Acervo, que conheceu numa vista a CCMQ quando estava na fase de implementação da
sede da União Brasileira de Compositores na capital gaúcha. Ficamos amigos.
Eu e Fernando Brant na inauguração do UBC
em Porto Alegre em 2006
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Em 2011, numa visita a Belo Horizonte, cidade onde
Fernando morava, fomos ao show de Milton Nascimento que abria o novo espaço da
cidade. Fazia poucos meses que Fernando havia participado do projeto Coleção
Mario Quintana para a Infância, volumes IV e V, realizado por minha empresa
Aprata. Todo faceiro com a chegada da Coleção (que levei pessoalmente a ele em
agradecimento por tanta generosidade), ele me recebeu com esse convite
irrecusável: “Vamos assistir o Bituca,
Leo? Ele fará um show no teatro recém-inaugurado aqui após reforma pelo SESC e
vai homenagear a Elis. Você tem que estar lá porque vais representar Porto
Alegre nesse momento. Vamos?” Como é que eu diria não?
Fomos então direto para o teatro e lá chorei por 90
minutos do show, segurando a mão do Fernando, que emocionado com a audição de
suas composições, enchia os olhos de água e dava longos suspiros sorrindo. Um
dos maiores presentes que recebi da vida: reunir neste dia os compositores e a
carga musical que tenho em minha bagagem relacionada a Elis.
Depois desse dia, só falei com ele por telefone e
e-mail. Foi a nossa despedida amiga em grande estilo envolvidos pela atmosfera
musical que ele construiu de tanta beleza e com a homenagem à mulher que,
segundo ele, foi a maior incentivadora da carreira de todo aquele Clube da
Esquina e os outros tantos desgarrados que até então buscavam uma oportunidade
para persistir na música.
Quando voltei a Porto Alegre, contei a meus pais e
os dois se emocionaram muito com essa vivência em Beagá. Tentei escrever sobre
todos estes momentos, mas não conseguia elencar os fatos, porque a emoção me
invadia e desorganizava a escrita. Comecei a escrever o texto com meu pai e
Fernando ainda vivos. Porém foi somente com a partida de ambos, Fernando em
junho de 2015, e meu pai, em junho de 2016, que me senti serena para contar
essa história de total sintonia entre nós.
Obrigado meu pai por não proibir a escuta, mesmo
doendo demais a ausência de Elis.
Obrigado Fernando por essa amizade inesquecível.
Obrigado Elis por esse sentimento de comunhão, por trazer
até todos nós em forma de Arte - essa vibração prateada, brilhante e sonora,
que foi sua passagem por esse planeta e que tanto nos liga amorosamente.
Saudade de tudo que vivemos e hoje é memória viva
em mim!
Gratidão, Amor e Luz para vocês.
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Elis Regina - "Aprendendo a Jogar" - programa Fantástico (1980)
FAIXAS:
1. "Sai Dessa" (Ana Terra/Nathan Marques)
2. "Rebento" (Gilberto Gil)
3. "Nova Estação" (Thomas Roth/Luiz
Guedes)
4. "O Medo de Amar É o Medo de Ser Livre"
(Beto Guedes/Fernando Brant)
5. "Aprendendo a Jogar" (Guilherme
Arantes)
6. "Só Deus É quem Sabe" (Guilherme
Arantes)
7. "O Trem Azul" (Lô Borges/Ronaldo
Bastos)
8. "Vento de Maio" (Telo Borges/Márcio
Borges)
9. "Calcanhar de Aquiles" (Jean Garfunkel
/Paulo Garfunkel)
faixas bônus
do relançamento em CD
1. "Tiro ao Álvaro" (Adoniran Barbosa /
Osvaldo Molles) – Com
Adoniran Barbosa
2. "Se Eu Quiser Falar com Deus"
(Gilberto Gil)
3. "O que Foi Feito Devera (de Vera)"
(Milton Nascimento/Fernando Brant/Márcio Borges) – Com Milton Nascimento
4. "Outro Cais" (Marilton Borges/Duca
Leal) – Com Os Borges
OUÇA O DISCO
Elis Regina sabia que era melhor que Rita-Lee e vice-versa.
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