Curta no Facebook

sábado, 17 de setembro de 2016

cotidianas #465 - O Esquema Talibã



O anfitrião, o homem mais velho, voltou à sala trazendo dois copos de uísque enquanto seu convidado, sentado numa banqueta dedilhava algumas notas no violão.
- Cara, mas voltando ao que estávamos falando, você não sabe o tamanho do prazer que me dá a sua presença aqui. - disse depositando o copo com a bebida na mesa de centro à frente do convidado.
- Imagina! A honra é toda minha. - rebateu modestamente o outro.
- Todos esses anos na música e nós, com tanta coisa lançada, tantas parcerias, com o nome que a gente tem e nunca tínhamos feito alguma coisa juntos. Era uma judiaria. Uma hora ia ter que acontecer. - afirmou o dono da casa com satisfação.
- Tinha que acontecer. - confirmou o convidado alegremente.
- Mas, vem cá, saiu alguma coisa aí? - perguntou apontando para o violão empunhado pelo amigo.
- Não, nada. Tava só tirando alguma coisinha aqui outra ali. - justificou enquanto passava levemente os dedos pelas cordas.
- Mas então, e a nossa? - querendo saber da parceria.
- Ah, eu pensei numa letra pr'aquela ideia que você me falou no telefone.
- Olha só, mas eu andei pensando melhor e acho que talvez a gente devesse pensar em outra coisa. Algo tipo assim, - disse enquanto dirigia-se ao piano no canto da sala.
Mostrou um pequeno trecho ao colega. Admirável! Algo à altura do que podia-se esperar do maestro Augusto César Jardim. Genial!
- Genial! Admirável! - entusiasmou-se o outro.
- Vamos tentar com a letra. - propôs o maestro.
Reiniciou a melodia enquanto o outro sem muito sucesso ia tentando incorporar os versos escritos num papel amassado às flutuantes notas que o mestre extraía do piano.
- Peraí. - interrompeu o pianista - Não tá dando certo, cara. E além do mais eu tinha pensado numa daquelas suas letras de evante, de convocação do povo, como nos tempos da ditadura, sabe?
- Ah, sei... é que eu não sei se ainda consigo fazer aquelas coisas. - disse parecendo encolher-se no assento.
- Ora, mas você é o grande Zeca Duarte de Bragança! Tenho certeza que dessa mente brilhante qualquer coisa genial pode sair.
E os dois riram. Zeca, um riso meio forçado, sem graça.
-É acho que sim mas,... tô precisando tirar uma água do joelho primeiro. Depois a gente continua.
- É claro. Fica ali. Segunda porta á direita. - explicou o dono da casa.
Nem bem entrou no toalete, o compositor apressadamente sacou o celular do bolso. Procurou um número nos contatos e chamou. Do outro lado um murmúrio barulhento de vozes aparecia ao fundo da voz de um homem.
- Alô? - fez em tom interrogativo a voz do outro lado da linha.
- Alô, Mohamed?
- É Zeca? Porra, cara, não é o momento. Eu tô na minha hora de lazer, de descanso, tô aqui em Copacabana com umas amigas tomando meu chopp e tu me liga a essa hora...
- Mohamed, desculpa, é que é urgente.
- Fala então...
- É que eu tô na casa dum cara. Compondo. É a primeira vez que eu "componho" com ele e não tenho uma letra. - explicou enfaticamente o compositor.
- Mas e aquela que eu te dei? - quis saber Mohamed.
- Aquela não serve. Quero dizer, não serve pra isso, pra essa vez. O cara é foda, ele fez uma melodia fodida, toda complicada, não dá pra encaixar a letra.
- Tá e o que que tu quer que eu faça?
- Sei lá, me dita outra letra, alguma que você já tenha pronta de cabeça.
- Olha só, Zeca: se tu diz que a melodia do cara é toda encaralhada e o escambau e tu não conseguiu, aí na frente dele, bolar alguma coisa, inventar alguma maneira de meter a letra na música e tal, tu acha que eu, aqui na praia, de frente pro meu choppinho, vou conseguir?
- Mas Mohamed, eu te pago mais dessa vez. Eu preciso muito dessa letra. Vai ficar feio pra mim não conseguir compor uma coisa com o cara.
- Olha só, não vai dar... Espera um pouquinho, meu amor - interrompendo o diálogo para aquietar uma moça enrolada numa canga que insistia por sua presença - Dá um jeito com essa aí ou inventa uma desculpa qualquer e outro dia a gente vê isso. Falow? Fui!
- Mohamed! Mohamed!
Era tarde demais. O homem na praia havia desligado.
O que faria? Não restava nada senão voltar para a sala e tentar qualquer coisa. Ou, na pior das hipóteses, dizer que demorara no banheiro por conta de uma indisposição estomacal e que não estaria mais em condições e que seria melhor continuarem outro dia. Daria tempo de encontrar o Talibã, como era conhecido o compositor, num botequim qualquer do Leblon, passar pra ele, assim meio cantarolando a melodia do maestro e seu provedor criar alguma coisa.
Sim, era o que faria.
Voltou para a sala forçando um sorriso amarelo.
- E aí, parceiro, vamos de novo? - inquiriu o pianista.
- Não sei. Não tô me sentindo muito bem hoje. Acho que foi uma coxinha que eu comi ontem lá no Bar do Benjamim.
- Ah, você vai lá também? - admirou-se o homem no piano.
- Ah, tô sempre lá. - riu Zeca - Você vai também? Nunca vi você por lá.
- Só vou lá muito de vez em quando. Só quando tenho que falar com um cara. Já ouviu falar de um tal de Mohamed? É conhecido como Talibã.


Cly Reis

Nenhum comentário:

Postar um comentário