“O que será que será/ Que todos
os avisos não vão evitar/
Porque todos os risos vão desafiar/ Porque todos os
sinos irão repicar/
Porque todos os hinos irão consagrar/ E todos os meninos
vão desembestar/
E todos os destinos irão se encontrar/ E mesmo o Padre Eterno
que nunca foi lá/
Olhando aquele inferno, vai abençoar/ O que não tem governo,
nem nunca terá/
O que não tem vergonha, nem nunca terá/ O que não tem juízo”.
trecho de
“O que será? (À Flor da Terra)”
“Hoje o inimigo veio me
espreitar/ Armou tocaia lá na curva do rio/ Trouxe um porrete a mó de me
quebrar/ Mas eu não quebro porque sou macio, viu”. Estes versos, da canção "Querido Diário", de 2011, bem que poderiam ter sido escritas por seu autor, Chico Buarque, 40 anos antes, nos
famigerados anos de Regime Militar no Brasil. Um dos artistas mais perseguidos
pela censura, Chico foi preso, se exilou, voltou ao país, travou diálogos
constrangedores com os censores, burlou-os por vezes e, mesmo escrevendo duplos
sentidos não alcançados pelo baixo QI dos avaliadores, teve diversas músicas
vetadas. Em meados dos anos 70, cada vez mais cerceado pelos milicos em relação
a seu trabalho, chegou um ponto em que compor um disco inteiro, com início meio
e fim, virou-lhe tarefa quase impossível. “Quase” em se tratando do “macio”
Chico Buarque, talvez o maior nome da música brasileira de todos os tempos. Se
não dava para fazer do jeito ideal, criatividade e coragem não lha faltam para passar
o recado da maneira que desse. Uma dessas provas de resistência é “Meus Caros Amigos”, de 1976, a
materialização possível diante daquela situação de repressão. O que não lhe
impediu de cunhar uma obra-prima da MPB.
Como todos os outros discos que fizera durante os anos de chumbo, “Meus...”
é um Frankenstein sonoro. Diante da impossibilidade de escrever 10 ou 12
canções novas, pois sabia que a maioria seria proibida pelo simples fato de
serem de sua autoria, a solução era ir pescando obras feitas para outros
projetos. Homem não só da música, mas de teatro, cinema e da literatura, Chico
construíra desde os seus primeiros anos uma carreira em que sua música
dialogava com as outras artes. Naquele meio de anos 70, em seu auge criativo,
este importante papel que desempenhava na cultura nacional estava totalmente
estabelecido. É aí que aparecem os “caros amigos”. Companheiros de luta como Ruy Guerra, Augusto Boal, família Barreto e Hugo Carvana, igualmente opositores
ao Governo Militar, sabiam que podiam contar com seus “versos e trovas”. Assim,
“Meus...” constituía-se como um aleijão, sim, mas não qualquer aleijão. Com
apenas duas canções novas escritas para o disco, por ação desta confluência de ideologias
e atitudes constam nele algumas das mais emblemáticas obras da história do
cancioneiro nacional.
Uma dessas joias é a que abre o disco: “O que será? (À Flor da Terra)”,
escrita para o filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos". Melodia incrível e
acachapante, que no cinema teve a voz da cantora Simone, aqui Chico divide os
vocais com outro mestre da nossa música, Milton Nascimento. Bituca ajuda a dar
uma interpretação toda diferenciada ao número, dramática e incisiva. A
brilhante letra, crítica e reflexiva, traz, a partir de uma urgente pergunta (“O que será, que será?), versos
inesquecíveis como: “Que andam suspirando
pelas alcovas/ Que andam sussurrando em versos e trovas/ Que andam combinando
no breu das tocas/ Que anda nas cabeças, anda nas bocas/ Que andam acendendo
velas nos becos/ Que estão falando alto pelos botecos/ Que gritam nos mercados,
que com certeza; Está na natureza, será que será...”.
Em seguida, mais uma puxada de outro projeto – e mais uma obra-prima –:
“Mulheres de Atenas”. Encomendada para a peça “Lisa, a Mulher Libertadora”, de
Boal, é um canto feminista que se vale da ironia e da inversão para expor a
crítica da condição feminina não necessariamente na Grécia mitológica, mas no
Brasil da era moderna: “Mirem-se no
exemplo/ Daquelas mulheres de Atenas/ Geram pros seus maridos/ Os novos filhos
de Atenas / Elas não têm gosto ou vontade/ Nem defeito, nem qualidade/ Têm medo
apenas...”.
Também extraída de outro projeto para o álbum é a clássica balada
“Olhos nos Olhos”, feita originalmente para Maria Bethânia, que a gravara pouco
antes e estourara nas rádios naquele ano. Talvez a melhor música em primeira
voz feminina já escrita por um homem, expressa a profundidade da alma de uma
mulher que, após uma desilusão amorosa, vive um momento de autodescoberta. “Quando você me deixou, meu bem/ Me disse
pra ser feliz e passar bem/ Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci/ Mas depois,
como era de costume, obedeci”. Ela quer vingar-se do ex que a deixou
mostrando que agora não precisa mais dele. “Quando
você me quiser rever/ Já vai me encontrar refeita, pode crer/ Olhos nos olhos,
quero ver o que você faz/ Ao sentir que sem você eu passo bem demais”.
Talvez não tão bem assim, afinal, se fosse totalmente verdade, não precisaria
jogar-lhe na cara. Afora a riqueza da melodia e da poesia, essa é uma das
sutilezas da sensível “Olhos...”, uma das maiores criações de Chico em toda sua
carreira.
De “Calabar, O Elogio da Traição”, peça coassinada por Ruy Guerra e
proibida pela censura em 1973, vem a rumba romântica “Você Vai me Seguir”, que
conta com lindo arranjo vocal da MPB-4. Fora do contexto da montagem, não
apresentava perigo político, então estava liberada pela censura. Igualmente
oriunda de uma fonte externa, a engraçada mas não menos ácida "Vai Trabalhar, Vagabundo" é da trilha do filme homônimo do camarada Carvana. Com arranjo
assinado por Francis Hime diferente do feito para o longa, é um embalado samba
com impagáveis passagens como: “Passa o
domingo sozinho/ Segunda-feira a desgraça/ Sem pai nem mãe, sem vizinho/ Em
plena praça/ Vai terminar moribundo/ Com um pouco de paciência/ No fim da fila
do fundo/ Da previdência...”
Com arranjo de Perinho Albuquerque, uma das duas únicas escritas para o
repertório é o divertido samba “Corrente”, cujos versos, como se destaca no
encarte, “podem ser dispostos livremente”,
pois “uma mesma corrente tanto pode ser
lida para frente quanto para trás”. É bem essa brincadeira musical que
Chico propõe. Enquanto os versos, corridos, metalinguisticamente dizem: “Eu hoje fiz um samba bem pra frente/
Dizendo realmente o que é que eu acho/ Eu acho que o meu samba é uma corrente...”,
a segunda parte, num tom abaixo, começa do trecho que diz: “Isso me deixa triste e cabisbaixo”. Os versos se misturam em
cantos simultâneos, contrastando o “pra frente” com o “pra baixo”, tanto em
letra quanto em melodia. Uma construção vanguardista em conceito num samba
agradável e popular.
A safra comprometida fez com que Chico buscasse mais duas já usadas no
cinema para completar o repertório. A bela “A Noiva da Cidade”, a primeira
delas, é o tema do filme de Alex Vianni. Misto de samba-canção com cantiga de
ninar (“Ai, quanto descuido o dessa moça/
Que papai tá lá na roça/ E mamãe foi passear/ E todo marmanjo da cidade/ Quer
entrar/ Nos versos da cantiga de ninar/ Pra ser um Tutu-Marambá”), faz
situar-se entre o amor pueril e a sensualidade, trazendo como um dos elementos
narrativos a atmosfera do folclore brasileiro e das lendas da infância de
antigamente.
A segunda é outro clássico do cancioneiro de Chico: “Passaredo”. Com
toques do pop rural ao estilo Sá & Guarabyra, esta canção semi-infantil
também do longa de Vianni – aproveitada ainda na trilha sonora do programa
“Sítio do Pica-Pau Amarelo” em versão da MPB-4 –, tornou-se um marco da música
brasileira à época. Primeiro, por sua leitura mais imediata, pois levanta a
bandeira da preservação ambiental tão pouco falada então. “Some, coleiro/ Anda, trigueiro/ Te esconde colibri/ Voa, macuco/ Voa,
viúva/ Utiariti/ Bico calado/ Toma cuidado/ Que o homem vem aí...”. Pois
esse “homem” ameaçador, que mata sem dó em meio à “floresta”, sustenta justamente
a outra leitura que a letra tem: a da denúncia às perseguições, torturas e
assassinatos da Ditadura. Aparentemente inofensiva e voltada para crianças (vai
ver até achavam que Chico havia inventado aqueles nomes esquisitos de aves...),
passou pela censura sem terem percebido. Bem feito.
Das mais belas músicas de Chico mas não tão reconhecida, a romântica
“Basta um Dia”, toda sobre piano e o delicado arranjo de cordas de Francis,
como não poderia ser diferente também provém de uma obra externa: a peça “Gota
D’água”, de Chico e Paulo Pontes e originalmente escrita para a voz de Bibi
Ferreira. A rica melodia, de sinuosidades muito bem elaboradas, acompanha o
tratamento literário de Chico na letra: “Pra
mim/ Basta um dia/ Não mais que um dia/ Um meio dia/ Me dá/ Só um dia/ E eu
faço desatar/ A minha fantasia...”.
Por fim, a segunda e última composta para o disco. E que música! A
lenda diz que Chico precisava compor somente mais uma faixa para completar o
tempo mínimo do LP. Ele então se senta no próprio estúdio e escreve a punho a
letra para a melodia de Francis deste choro pessoal e cronístico, uma das obras
que mais bem dão a noção do que o Brasil vivia naqueles ferozes tempos. Com o
luxuoso piano de Francis e a flauta mágica do craque Altamiro Carrilho, encerra
a mensagem-chave do álbum numa carta a um amigo exilado. Tal como propusera em “Sabiá”,
de 1968, em que fala de saudades da terra natal sem estar fora dela, “Meu Caro
Amigo” é um canto de exílio às avessas. “Meu
caro amigo, me perdoe, por favor/ Se eu não lhe faço uma visita/ Mas como agora
apareceu um portador/ Mando notícias nessa fita.” E explica, com bom humor
e realismo, como estava a situação no Brasil: “Aqui na terra tão jogando futebol/ Tem muito samba, muito choro e
rock'n'roll/ Uns dias chove, noutros dias bate o sol/ Mas o que eu quero é lhe
dizer que a coisa aqui tá preta/ Muita mutreta pra levar a situação/ Que a
gente vai levando de teimoso e de pirraça/ E a gente vai tomando que também sem
a cachaça/ Ninguém segura esse rojão“.
Precisou-se segurar o rojão ainda por muitos anos até a democracia vir.
Chico, assim como vários de seus parceiros, venceu a luta contra o inimigo.
“Apesar de você”, o amanhã virou “outro dia”. De fato foi necessário que Chico
adicionasse à sua autoatribuída maciez muita teimosia, pirraça e cachaça.
“Meus...” é a prova disso: tinha tudo para resultar numa colcha de retalhos sem
sentido, mas, com o apoio imprescindível dos amigos, unidos por uma causa
maior, saiu um dos mais autênticos libelos que um artista popular poderia compor.
Nem mesmo todos os empecilhos que foram impostos fizeram com que o disco
perdesse a coesão. Ao contrário: aumentaram-lhe a mensagem de subversão e lhe
deram personalidade e sobrevida. Afinal, mais de 40 anos depois, o disco
continua uma referência tanto na obra de seu autor quanto da música brasileira
e da história recente do Brasil enquanto sociedade.
Pode parecer contraditório, mas que nunca mais seja preciso criar discos
como este. Oxalá a musicalidade, a poesia e a beleza atingidas por Chico em
“Meus...” ande apenas restrita ao passado: nas cabeças e nas bocas. E na memória.
FAIXAS
1. O que será (À flor da terra) – Participação especial: Milton
Nascimento
2. Mulheres de Atenas (Augusto Boal/ Chico Buarque)
3. Olhos nos olhos
4. Você vai me seguir (Ruy Guerra/ Chico) – Participação especial:
MPB-4
5. Vai trabalhar vagabundo
6. Corrente
7. A noiva da cidade (Francis Hime/ Chico)
8. Passaredo (Francis/ Chico)
9. Basta um dia
10. Meu caro amigo (Francis/ Chico)
todas as composições de Chico
Buarque, exceto indicadas.
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OUÇA O DISCO
A análise do álbum é muito boa,e parece que o País deu uma degringolada,o artista foi proibido de receber o Prêmio Camões,falando ninguém acredita.
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