Chico, lançando novo disco e nova polêmica |
Primeiro, nem todo mundo gosta de Chico Buarque e de sua arte, o que, mesmo que raramente, escuta-se por aí. Até aí, ok, uma vez que é saudável que, por um motivo ou outro, haja quem discorde ou não se afine com o que o cantor, compositor e escritor faz. Por outro lado, contudo, a mesma unanimidade soa diferente – e não coincidentemente, mais burra ainda. Se praticamente toda a esquerda forma filas seguindo seus passos, há uma direita reacionária e raivosa que está permanentemente no encalço de Chico. Em tudo que ele faz, seja uma música, uma aparição pública ou algum posicionamento político. A direita não engole Chico, e por isso o persegue, tentando achar, sob a capa de uma artificial unanimidade, a ideológica, erros de conduta no artista que o incriminem.
E não conseguem, claro. São polêmicas vazias que, no instante seguinte, se esvaziam. Foi assim agora, em agosto, quando do lançamento da música “Tua Cantiga”, presente no mais recente disco de Chico, “Caravanas”. Livre dos estereótipos e dono de seu trabalho, Chico segura com açúcar e afeto essa turma irritadiça desde os anos 70, quando o patrulhamento sobre si já se manifestava com agressividade. Não foi diferente neste último episódio, quando, sem criatividade (visto que sem argumentos de fato), trouxeram mais uma vez a pecha de “machista” a ele, coisa que tentam desde o tempo em que não entenderam (ou fizeram de conta que não entenderam) a trágica ironia de “Mulheres de Atenas”. De 1976... Igual ao que tentaram imputar-lhe quando do seu até então último álbum, “Chico”, de 2011, ao implicaram com os versos: “Amar uma mulher sem orifício”. Fizeram-no idiotamente, sem fazerem questão de considerar as palavras que vinham antes: ”Hoje pensei em ter religião/ De alguma ovelha, talvez, fazer sacrifício/ Por uma estátua ter adoração...”.
Desta vez, a acusação da ala “feminista” foi a mesma, porém a polêmica foi maior. A letra de “Tua Cantiga”, um lindo maxixe moderno escrito por ele em parceria com Cristóvão Bastos, fala de um homem perdidamente apaixonado por uma mulher distante dele a quem, romanticamente, venera. Nela, os versos: “Largo mulher e filhos/ E de joelhos/ Vou te seguir”, entretanto, foram o estopim da avalanche de discussões. Desde julgamentos de que a atitude de “largar mulher e filhos” seria machista até a de que, por absoluta falta de interpretação de texto, a de que esse ato significaria um desrespeito às mulheres, por que ter uma “amante” seria inaceitável. Detalhe: em nenhum momento a letra diz que o homem ficaria com as duas mulheres ao mesmo tempo, e nem que “largar mulher e filhos” significaria precisamente isso, visto que a frase pode tranquilamente ser entendida como uma força de expressão. Ou seja, talvez nem mulher e filhos existam, apenas o arroubo romântico do personagem. Haja vista o não entendimento ou a forçada intenção de tentar não compreender o que foi dito, é fácil também de explicar porque confundem com tanta convicção este com o próprio autor.
Mallu Magalhães: fez clipe mas não soube resistir às críticas |
“- Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante?
- Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante.”
Todo esse debate em torno da música nova de Chico Buarque é um verdadeiro espelho da sociedade brasileira, contudo. Não há, por parte de uma fatia (considerável, poderosa e midiática) da sociedade uma real vontade de que as coisas mudem: a desigualdade social, a corrupção, a hipocrisia, o preconceito e o próprio machismo pretensamente atacado. Ao invés de se preocupar e brigar por coisas que afetam a vida do brasileiro de forma estrutural, como o crítico cenário político atual e as desigualdades sociais que se dão a cada esquina, “neguinho” presta atenção no problema periférico ou naquilo que nem problema é. Porque dar atenção demasiada ao que Chico Buarque está falando na letra da música é, sim, desviar do que importa. Afinal, é mais fácil isso do que fazer um mea culpa por bater panela e alçar ao poder o primeiro presidente julgado por corrupção no exercício do mandato. E que ainda está lá.
Jack Nicholson em "O Iluminado" |
O que está escrito em “Tua Cantiga” e todas as interpretações que a obra suscita são, impreterivelmente, do âmbito artístico. São da obra, e devem ser vistas como tal. Mesmo que fosse (e não é) um trabalho autobiográfico de Chico Buarque, ainda assim exigiria que fosse visto como arte. Que interessa se o “eu-lírico” da letra é ou não machista, ora essa! Se o é ou não, é objeto da obra, e assim foi intencionalmente escrita. E ponto. É sinal de um retrocesso descomunal observar que algo desta natureza ainda gere controvérsia e, ainda mais triste, precise ser explicado. De outra música da safra nova de Chico, "As Caravanas", uma denúncia do preconceito racial e social, ninguém comenta.
Clipe de "Tua Cantiga" - Chico Buarque
por Daniel Rodrigues
Lembro bem da polêmica.
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