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sábado, 9 de setembro de 2017

cotidianas #527 - O Barulho no Andar de Cima




Aproveitei que encontrei o Sr. Jeremias, o síndico, na portaria, e reclamei com ele do constante barulho de correria, possivelmente de crianças com alguma espécie de triciclo, eu acho, no apartamento em cima do meu, todas as noites, desde que me mudei há duas semanas. Ele me olhou com uma cara que misturava dúvida com espanto e me disse que no 401 não morava ninguém. Que a família que morava ali se mudara, fora embora depois da morte trágico dos filhos, dois meninos, um de 6 e um de 8 anos. Desde então o apartamento estava vazio. Percebendo a minha expressão de surpresa, no entanto, se comprometeu de ver com a imobiliária se alguém estaria visitando o apartamento, um corretor ou um representante qualquer. Achei pouco provável que um corretor levasse clientes para conhecer um apartamento às 11 da noite mas em todo caso, aceitei e, não tendo outro jeito me dei por satisfeito com a providência. O deixei colocando as cartas nos escaninhos de cada morador e entrei no velho e pequeno elevador que já me esperava no térreo. Subi. Pela pantográfica, enquanto subia, podia avistar uma bela moça que aguardava o elevador no meu andar. Ao abrir a grade de correr, a garota sorridente me cumprimentou. Se apresentou, disse que chamava-se Clara, que era minha vizinha do lado, do 302, e que se precisasse de alguma coisa, que não hesitasse em chamá-la. Agradeci e aproveitei a simpatia para perguntar-lhe se os barulhos de cima não a incomodavam, sendo que o Sr. Jeremias, o síndico, dissera que ninguém morava lá. Ela, no entanto, não se deu atenção à questão dos ruídos e dos moradores de cima, fixou-se no síndico. Quis confirmar com quem havia falado. Pediu que eu descrevesse. Um senhor assim, dessa altura, meio calvo na frente, cabelos brancos, óculos redondos, meio encurvado. Disse que era impossível. O Sr. Jeremias, cuja descrição correspondia à que eu fizera, morrera fazia dois anos. Cortou o assunto abruptamente. Tinha pressa. Estava atrasada para a faculdade. Depois nos falaríamos. Despediu-se. Ia entrar em casa quando lembrei que ela. no fim das contas não falara-me sobre os moradores de cima. Voltei-me mas ela já havia desaparecido. Já devia ter descido, pensei. Mas o elevador ainda estava, ali, no andar com a grade aberta. Deve ter ido pela escada. Entrei. Tinha que trabalhar. No escritório falaria com o Juan, ele se interessa por essas coisas de espíritos, outras vidas e coisas assim. Diz que é médium, que pode sentir os espíritos. Poderia me falar alguma coisa. Cheguei. Fui direto à mesa do meu colega. Ansioso, assim que o vi, de costas, trabalhando, já comecei a falar relatando a ele tudo o que se passara naqueles últimos dias e naquela manhã. Assim que terminei, quis saber sua opinião. Toquei em seu ombro. Só então ele se virou da mesa em minha direção e pude ver as lágrimas em seus olhos. Mirando em minha direção mas parecendo procurar alguma coisa no vazio, ele disse então
- Meu amigo... É você?... Você está aí?... Eu posso senti-lo. Eu posso senti-lo.



Cly Reis

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