Curta no Facebook

sábado, 19 de janeiro de 2019

cotidianas #612 - O homem que nunca fora visto



A chuva constante e implacável formava um cinzento uniforme que era tudo o que se podia ver atrás do homem que acabara de abrir a porta e que agora batia os pés na soleira, muito mais para chamar atenção de sua presença do que por algum cuidado com a limpeza do chão daquela bodega onde agora adentrava. A movimentação chamou atenção dos dois sujeitos que jogavam um carteado em uma das mesas num canto, interrompendo a jogatina e fazendo-os saltar os olhos na direção do que chegava. No outo canto, à direita, pelo contrário, nem a chegada estrepitosa do estranho conseguiu fazer com que um molambo com a cabeça afundada entre os braços cruzados sobre a mesa, de frente para uma garrafa quase vazia de aguardente, tivesse qualquer reação, permanecendo naquela posição, provavelmente inconsciente ou algo próximo disso.
O forasteiro aproximou-se do balcão, que não ficava a mais de cinco passos da porta que cruzara, e sentou-se num barril que servia de tamborete. Atrás do balcão, o dono ou atendente, não sabe-se exatamente o que era, não se dando o trabalho de virar-se para ver quem entrara, permanecia virado de costas para a entrada, de frente para as prateleiras, retirando pacientemente delas cada copo e limpando-os com um pano meio encardido.
- Me vê alguma coisa bem forte. - pediu, sem qualquer cerimônia o novo cliente.
O taberneiro pegou de uma prateleira alta uma garrafa com um líquido transparente levemente dourado e, sem virar-se totalmente, deixou sobre o balcão juntamente com um dos copos que acabara de limpar.
O estranho serviu a si próprio, deu uma golada, ficou um instante em silêncio e anunciou:
- Estou procurando o ____.
Um novo silêncio, desta vez com um ar pesado e ameaçador, permaneceu no ar por alguns segundos.
- Dizem que ninguém nunca viu o rosto dele. - comentou o taberneiro ainda voltado para o fundo da venda, passando o pano lentamente pelo fundo de um copo.
- Pois não é...? - provocou o visitante.
Durante alguns segundos que pareceram horas, apenas os pingos que caíam do pala encharcado do forasteiro e que morriam surdamente no assoalho de madeira, foram ouvidos.
Os jogadores, no canto, cada um com seu leque de cartas aberto na mão, espicharam os olhos em direção aos dois, antevendo que alguma coisa estava por acontecer.
- Dizem que é impossível encontrá-lo. - completou o bodegueiro, reduzindo ainda mais, quase cessando o movimento de polimento do copo na sua mão.
- Pois eu acho que o encontrei. - sentenciou o forasteiro.
E percebendo no corpo do outro a mínima movimentação no intento de finalmente virar-se de frente para o balcão, adivinhando-lhe uma arma ou reação hostil, não hesitou em, agilmente como era de sua habilidade, tirar a arma que guardava sob o poncho e disparar três vezes contra o homem do bar, fazendo-o tombar para trás e, derrubando as prateleiras, provocar um estridente barulho de vidros despedaçados.
Olhava para o rosto do homem morto atrás da bancada, quando mais dois tiros o despertaram de seu momento de vitória. Às suas costas, os dois jogadores jaziam caídos entre cartas e moedas espalhadas pelo chão. Na outra mesa, na do bêbado, apenas a garrafa repousava ainda sobre o móvel. O assento estava vazio e o homem que antes ali parecia completamente incapaz de qualquer ação a julgar por um suposto e estado de embriaguez, agora, em pé, lhe apontava uma arma.
- Desculpe, amigo, mas eu tenho que continuar assim, sem que ninguém nunca tenha me visto.





Cly Reis

Nenhum comentário:

Postar um comentário