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domingo, 21 de abril de 2019

cotidianas #628 - Deserto



Se a terra fosse apta, como o corpo da mulher a receber a semente do homem, aquele pedaço de chão, seria possivelmente presenteado, naquele momento, com o poder de retornar ao início da origem da vida e, do barro daquele palmo de chão molhado pelo singular jorro viscoso que inesperadamente recebera, faria de novo, o primeiro ser da criação. Se não isso, dada a excelência da procedência daquela semeadura, no mínimo, geraria, como um ventre sagrado, o ser mais prodigioso que a humanidade já teria conhecido. Envergonhado pelo ato que acabara de cometer, comum para qualquer homem cujos desejos pulsantes ansiassem em saltar do corpo pelo meio mais possível ou mais apropriado, mas não para ele cujas expectativas e cobranças não permitiam manifestações físicas tão próximas dos homens comuns, recompôs-se guardando sob as vestes empoeiradas aquele instrumento impudico, deixando cair a túnica imunda quase até os pés.
Devia seguir, devia se concentrar. Fora para isso que se refugiara naquele vasto nada. Deserto. Para evitar os pensamentos mundanos. Era isso que o pai esperava dele. Pelo menos era isso que cria. Pelo menos era isso que o faziam crer.
Não olhou mais para o chão. Para as gotas cintilantes que, não alheias ao calor da superfície, começavam a se fundir com a terra. Deu um passo, dois... Seguiu. Sumiu na poeira. às suas costas, lá atrás, a areia parecia movimentar-se de uma maneira estranha, como se formasse um pequeno redemoinho. Seu centro parecia criar um vácuo e absorver o que molhara a terra. Algo parecia começar a erguer-se dali... Devia ser só algum bicho. Uma toca. Algo assim. Por certo, devia ser. Devia ser.


Cly Reis

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