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quinta-feira, 23 de maio de 2019

cotidianas #632 - Howlin' Wolf



Os olhos percorreram o lugar com desconfiança. Não dizem que os bichos pressentem quando algo está para acontecer? Pois então... O cão  hesitou à porta, deu um passinho receoso para o interior e dois para atrás. Foi puxado enfim para dentro pela corda que lhe envolvia o pescoço.
O homem que o conduzia, um negro corpulento de modos tímidos, penetrou no modesto barraco de madeira quase às escuras, apenas iluminado por uma meia dúzia de velas, e postou-se sentado de frente para uma figura um tanto pitoresca, um homem já de idade avançada, olhos apertados pelos anos, pele enrugada na qual o tisnado contrastava radicalmente com a brancura dos pelos da cara e da cabeça.
- Dexa o animarzinho aí. Po'deixá. - orientou pitando o cachimbo logo em seguida.
- Mas, Bo, eu não  quero fazer esses acordos que nem fazem por aí, que nem aquele outro fez... - argumentou com uma voz fraca, quase fugidia.
Riu-se o velho.
- Não, não. É otra cousa. É cousa diferente. - esclareceu vagamente soltando uma baforada. 
Tossiu, balançou a cabeça  negativamente, não sei se reafirmando o equívoco da desconfiança do visitante ou lamentando o efeito que o fumo fazia em seus frágeis  pulmões, mas mesmo assim prosseguiu:
- O bichinho é um agrado pro Aiê. Não quer voz de cantor? Dá o vira-lata pro Aiê que ele atende ocê.
Convencido, ou talvez nem tanto, mas o suficiente  para manter firme o intento, entregou a corda que segurava o cão  para o feiticeiro. 
O velhote ergueu-se, não sem algum esforço, da caixa de madeira em que estava sentado e dirigiu-se, conduzindo o bicho para um compartimento ao fundo do casebre. Percebendo o rapaz ainda assuntado e confuso, voltou-se mais uma vez, como que para esclarecer a situação e definitivamente tranquilizá-lo.

- Some por uns tempo. Ocê vai perceber a muda da voz... Aos pôco, aos pôco. Depois procura gente da música. Desses que grava disco. O Aiê garante, ocê vai entrá. 
E puxando o cão pela guia, transpôs a cortina que separava os cômodos e penetrou na escuridão. O homem, aquele que encomendara o trabalho, já havia se levantado e ia se dirigindo à saída, quando ouviu ainda:
- Ocê vai tê um uivo de lobo! Um uivo de lobo!


Cly Reis

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