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segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

cotidianas #664 - Cavalo de Guerra



A guerra havia acabado.
Nos deixaram ao norte, perto de Belluno. Um caminhão recolheu armas, um jipe levou alguns oficiais e, diferentemente de quando nos tiram de casa para defender uma bandeira, uma faixa de terra, um pedaço de papel, uma ideia ou seja lá o interesse que venha a se impor naquele momento, quando aparecem convocações em papel timbrado e fazem questão de salientar o quanto cada um de nós é importante para o seu país, na hora que não precisam mais daquela carcaça, colhida jovem e fresca, ela é simplesmente deixada à própria sorte numa estrada qualquer sem um agradecimento sequer ou qualquer consideração. Apenas nos comunicaram a "boa nova" e viraram a costas. O caminhão sumiu fazendo poeira na estrada e, num primeiro momento nossa reação foi nos olharmos entre nós, confusos, em dúvida sobre o que deveríamos fazer. Não demorou muito para que entendêssemos que, dispensados da obrigação cívico-militar, o que nos restava era voltar para casa. O grupo saiu grande mas aos poucos foi se reduzindo conforme avançávamos no caminho. Alguns ficavam em alguma cidade, outros derivavam dali para outra direção. Nos despedíamos do amigo, do colega de pelotão e aqueles cujos destinos eram mais distantes, seguiam viagem. Eu, por exemplo, que vivia bem ao sul do país, em Campobasso, teria uma longa jornada pela frente. Não fosse a boa vontade de moradores ao longo do caminho para nos darem comida, e caronas em caçambas de camionetas ou carroças, entre caixas de legumes ou entre galinhas e cabras, de algum criador indo vender sua produção em outra cidade, nossa jornada de retorno teria sido ainda mais penosa. Vi de tudo naquela caminhada melancólica: vi ruínas, casas incendiadas, mulheres sendo violentadas, corpos apodrecidos abandonados pela estrada, mas nada do que vi me impressionou mais do que o que presenciei, acredito que em Caserta, próximo a Nápoles. Sempre que penso na guerra, que lembro daqueles dias, essa cena vem à minha cabeça. Eu andava... Exausto pela distância percorrida, mas resignado e até com uma ponta de felicidade, se é que se podia chamar assim, animado pela proximidade do destino final, uma vez que já me encontrava ao sul, a pouco mais de dois dias de caminhada até minha cidade natal. Foi perto de uma propriedade rural, como tantas que se via por aquela região naquela época. Um estrondo veio romper o silêncio bucólico daquele sítio. Fora ali perto. Um descarte de munição? Um conflito entre soldados em retirada? Um derradeiro bombardeio? A guerra havia acabado... Em todo caso, meu instinto e senso de preservação foram urgentes em me orientar a me proteger. Resguardei-me atrás de uma carroça emborcada, abandonada e quebrada, por certo, pelo fazendeiro dali dos arredores. Fiquei ali abaixado por alguns instantes que pareceram durar todo o período da guerra. Uma densa poeira ocre cobria a paisagem campestre e indefinia as formas que teimavam em tentar se deixar adivinhar por trás dela. Levantei um pouco o corpo, ergui o pescoço, o suficiente para que meu olhos se elevassem acima da roda quebrada da charrete. Não vi nada que me revelasse o porquê daquele ataque, ou mesmo, no mínimo, quem era o inimigo. Voltei a me encolher atrás da carroça. Aos poucos, no entanto, um som começou a definir-se no meio do silêncio da névoa. Eram patas. Mas não eram muitas. Não era uma cavalaria. Eram poucas patas. Curioso, me ergui novamente por detrás de minha frágil trincheira e, rompendo o ar pesado pela poeira amarelada vi definir-se a figura de um cavalo galopando, corajosamente sob três patas. Havia sobrevivido a um último ato de estupidez humana naquela guerra, mas um dos membros não. Passou por mim. Sumiu na poeira. Cessou o galopar. Baixou a nuvem de pó. Retomei caminho de casa. A guerra acabou mas a visão do cavalo com três patas nunca me saiu da memória. No fundo, de uma forma ou de outra, na verdade, a guerra nunca acaba.


Cly Reis

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