Quando tudo isso começou, foi inevitável que nerds como eu comprassem a situação com filmes de zumbi e imaginássemos aquele caos apocalíptico dos filmes com ruas desertas, falta de suprimentos, pilhas de destroços e lixo acumulados. Tirando o primeiro momento do susto, quando a maioria se recolheu e todo mundo saiu correndo atrás de reservas de comida e produtos de abastecimento, ficou claro que aquele tipo de cenário cinematográfico não aconteceria de maneira tão semelhante. Embora o vírus ainda matasse, e muito, as coisas foram se acalmando, muitos países foram voltando a uma certa rotina, alguns de forma cuidadosa, outros de forma irrsponsavel mas, de um modo geral, o mundo foi se acostumando ao que se convencionou chamar de "novo nornal". Depois de algum tempo, finalmente a aguardada vacina veio. Os russos a desenvolveram às pressas e sem os devidos testes, gerando desconfianças não somente da comunidade científica como da população em geral quanto à eficácia e confiabilidade do medicamento. Mas a urgência era tão grande que quase ninguém esperou por confirmações e o remédio russo foi aceito mesmo com poucas garantias e muitas incertezas. Nações do mundo inteiro adquiriram os direitos de produção e a vacina foi distribuída em larga escala por todos os cantos do planeta. Naturalmente, a população em peso correu para hospitais, postos, locais de vacinação para garantir a imunização e o fim daquele martírio ao qual todos estavam submetidos e que limitava as ações de toda a sociedade há praticamente um ano. Só que as coisas não deram tão certo quanto se imaginava e exatamente o que devia curar foi a causa de um mal ainda maior. Pessoas submetidas à vacina, pouco tempo depois de sua aplicação, passavam a apresentar um comportamento estranho, mostravam uma fome incontrolável que se manifestava especialmente por carne, à qual aliada a um comportamento agressivo crescente, fazia com que, a partir de determinado momento, não escolhessem mais o tipo de carne que queriam consumir. As primeiras vítimas foram os profissionais de saúde em hospitais, postos, consultórios, onde atendiam ou acompanhavam infectados. Nestes locais eram atacados ferozmente por seus pacientes recentemente recuperados do vírus mas acometidos pela mutação. Logo foram os familiares dos "curados" que voltavam para casa depois do tratamento com a nova vacina e as pessoas próximas dos que procuraram as unidades de saúde em busca da tão aguardada cura. Mal tinham tempo de constatar a mudança de comportamento daquele irmão, marido, filho, e já eram atacados com uma voracidade tamanha que chega a ser, de certa forma, difícil de descrever sem ter algum mal estar. Em pouco tempo eles estavam por toda parte. As ruas estavam tomadas por aqueles novos doentes. Apenas aqueles que não tiveram a oportunidade de chegar ao novo medicamento por qualquer razão, desatendidos de qualquer ordem, negacionistas da doença e da eficiência de vacinas ou os que, como eu, depois de tanto tempo, optaram por esperar mais alguns dias para evitar filas e aglomerações, estavam sadios agora. Ironicamente, agora, exatamente os imunizados eram a pior ameaça que podia existir. O caos que cinéfilos, fãs de cultura pop, como eu, havíamos vislumbrado, naquele primeiro momento muito remoto e inimaginável, havia se materializado. Ficou quase impossível sair na rua sem o risco de ser atacado por algum dos imunizados. Agora, olho para baixo, pela janela aqui do sétimo andar e vejo as ruas vazias. Apenas alguns deles perambulam por ali, com seu caminhar lento e arrastado, à espreita, procurando por comida, ou seja: por nós. O lixo se acumula nas esquinas, há destroços de carros, focos de incêndio em casas e apartamentos e marcas de sangue e pedaços de cadáveres no meio da rua. À esquerda, próximo à esquina, uma pequena movimentação me chama atenção: um homem, sorrateiro, se arrisca entre os vacinados. Deve estar em busca de comida. Suprimentos existem, os supermercados estão abastecidos e as prateleiras cheias, o problema é que não temos como chegar até eles. Ele se esgueira, se esconde atrás de um automóvel abandonado. Uma das coisas passa perto dele. Espero que não sinta seu cheiro. As autoridades dizem que, embora tenham uma fome incontrolável, vão perdendo os outros sentidos gradualmente. A criatura passou, seguiu, não o viu. Ele sai de trás da carcaça de carro e segue em frente. Boa sorte, amigo. Daqui a pouco sou eu quem vai precisar. As autoridades dizem também pra não sair de casa. A comida acabou há dois dias e... bom, não tem como evitar. Uma hora eu teria que sair. Não há barulho no corredor do prédio. Talvez eu tenha sorte e não encontre com nenhum deles na escada de serviço. Máscara, mochila, porrete, faca... Nem sei porquê ainda uso a máscara. Dizem que essa coisa deles passa pela saliva, que se você for mordido se torna um desses. Mas não se sabe ao certo. Ninguém tem certeza de nada. De qualquer forma, não tem jeito... Abro as trancas, espio o corredor pelo vão da porta. Ninguém. Ponho o pé pra fora e não consigo evitar um esboço de riso. "Fique em casa" era a recomendação lá no início disso tudo. Bom, e continua sendo. Só que agora, até gostaria mas não tenho como obedecer. Bem..., Vamos lá.
Cly Reis
Nenhum comentário:
Postar um comentário