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segunda-feira, 17 de maio de 2021

“Nosferatu: Uma Sinfonia do Horror”, de F. W. Murnau (1922) vs. “Nosferatu: O Vampiro da Noite”, de Werner Herzog (1979)

 

Seja no futebol ou no cinema, têm enfrentamentos que se pode dizer que metem medo. Colocar frente a frente os dois “Nosferatu”, as adaptações mais conhecidas do romance de horror “Drácula”, do escritor britânico Bram Stocker, é um desses que dá aquele frio na espinha mesmo antes de a partida começar. Qual time é mais “mordedor”? Qual deles “ataca” mais? Qual saberá se valer melhor do “elemento surpresa”? Qual escola conseguirá superar a outra? Indagações que os comentaristas se fazem, mas que ninguém sabe ao certo as respostas até o certame ser definido ali, dentro das quatro linhas, olho no olho, dente por dente.

 Os retrospectos das duas equipes são de amedrontar qualquer adversário. São duas forças do futebol alemão, inegavelmente. De um lado, aquela que é considerada a obra-prima do Expressionismo Alemão: “Nosferatu: Uma Sinfonia do Horror”, de F. W. Murnau, de 1922. Produto do período Entre-Guerras, é um ícone máximo de uma escola de cinema, incorpora uma série de inovações, tanto técnicas (como o uso do contraste negativo, a expressividade do jogo de luz e sombra, a cenografia distorcida, a maquiagem carregada) quanto narrativas, tornando-se referência para todo e qualquer filme de terror até os tempos atuais. Do outro, “Nosferatu: O Vampiro da Noite”, de Werner Herzog, de 1979, a versão muito bem elaborada pela leitura de outra referencial escola cinematográfica, mas esta do pós-Guerra, o Novo Cinema Alemão, do qual o cineasta, um dos grandes expoentes, tinha como parceiros de movimento nomes como Win Wenders, Margarethe Von Trotta, Volker Schlöndorff e Rainer Werner Fassbinder.

Mas por que se lê “Nosferatu” e não “Drácula” nos uniformes? Porque, na década de 20, oito anos após a morte de Bram Stocker, a família do escritor não queria ceder os direitos para a obra ser filmada. Além da mudança do título, o vampiro titular se tornou o Conde Orlock na a primeira versão. Jonathan Harker foi rebatizado para Thomas Hutter, Lucy Harker tornou-se Ellen Hutter e Abraham Van Helsing virou Professor Bulwer. Nos anos 70, com esse impasse superado, Herzog consegue utilizar os nomes originais, mas mantém o roteiro (e o título) do filme mudo. Ambos, porém, são baseados na trama do livro “Drácula”: um homem faz uma viagem de negócios para um fantasmagórico castelo, onde o vampiro quer seduzir sua noiva. Em ambos há também o acréscimo de alguns elementos para mudar um pouco a obra original e, claro, disfarçar a inspiração, como a ideia de que a luz do sol mata os vampiros.

Schreck e Kinski: vampiros de atuações matadoras
Mas chega de pré-jornada. Vamos, de fato, à jornada em si, aquela que vai da pacata Wisborg rumo à assustadora mansão nos Montes Cárpatos. Depois daquele papo motivacional nos vestiários (“quero ver todo mundo dar sangue hoje!”, “vâmo entrar mordendo!”, “se passar por ti, gadunha!”, etc.), é hora de enfrentar aquele friozinho na barriga e entrar em cena de vez. A bola (fita) vai rolar! Poucos minutos decorrem e já se percebe que o jogo vai ser, como diz na linguagem do futebol, “pegado”. Esquemas espelhados em campo: marcação no cangote do adversário, mas sem perder a qualidade quando vão pra frente. O filme de Murnau começa fazendo o contraste necessário da proposta expressionista: cenário bucólico e iluminado ao mostrar a vida de Hutter antes de chegar à Transilvânia, local onde a atmosfera, agora sombria, sem profundidade e claustrofóbica, se transforma em algo sinistro, gótico. Já Herzog prefere adicionar ao expressionismo o qual homenageia aspectos barrocos do período medieval em que a trama transcorre, seja na fotografia e direção de arte quanto no aspecto cênico, retirando um pouco da carga romântica típica do expressionismo (os arroubos emocionais, as expressões exageradas) e incluindo maior naturalidade às interpretações. Futebol moderno, mais prático. Estratégias que mostram estilos diferentes: um mais cru, mais objetivo; o outro, mais elaborado, mais híbrido e, assim, o placar permanece no zero.

O páreo segue duro quando se fala dos atores que interpretam Conde Orlock/Drácula: Max Schreck e Klaus Kinski. Igual Luis Suárez na Copa de 2014, os dois disputam cada centímetro do gramado na base da dentada! Imbuído do espírito expressionista de uma interpretação mais teatral e hiperbólica, o ator do primeiro simplesmente cria um ícone do cinema. Além dos olhos esbugalhados, da maquiagem distorcedora e da expressão de mistério, seu trabalho corporal compõe o personagem: gestos lentos, passos curtos, costas curvadas, mãos contorcidas, semblante esquelético e braços colados ao corpo (como que recém saído do caixão). No entanto, Kinski não fica para trás. Ele – com quem Herzog havia rodado anos antes o excelente mas traumático “Aguirre: A Cólera dos Deuses”, em que Kinski quase enlouqueceu a equipe a ao próprio cineasta com ataques de sua própria cólera – usa sua fúria natural para assimilar o que Schreck lhe legara, porém valendo-se muito bem de um elemento ao qual o outro não tinha condições de aproveitar à época da primeira realização: a comunicação sonora. Kinski, que é louco mas não é bobo, dota seu vampiro de voz e de sons guturais e animalescos, que o fazem parecer ainda mais com um assombroso morcego. Não disse que era páreo duro? Nem a destreza cênica de Kinski, entretanto, é capaz de superar a invenção de uma forma de atuar e a marcante personificação de um mito da cultura ocidental quando se fala em histórias de terror. Afinal, o que seria de um Freddie Krugger ou dos filmes de zumbis se não fosse esse grotesco vilão? Sim: Schreck mostra os dentes e marca o primeiro. E não dá pra dizer que foi descuido da defesa, não! Foi, sim, total habilidade do atacante. 1 x 0 pra “Nosferatu” de 22.

Acontece que, como deu pra perceber, o remake não veio só pra reverenciar, mas para disputar palmo a palmo. E qual a tática que usa para isso? Valorizar o que tem de diferencial. Bruno Ganz e Isabelle Adjani como casal Harker é um desses pontos, e quase marcam gol. Momento de pressão do time mais jovem (se é que dá pra falar disso de um cara como Drácula, com 200 anos de idade). Os atores são um elemento do esquema tático que se soma ao uso da cor desmaiada da foto de Jörg Schmidt-Reitwein e da trilha da banda krautrock Popol Vuh, constantes colaboradores de Herzog àquele época e corresponsáveis pelo climatização sonora de seus filmes. No volume de jogo, “Nosferatu” de 1979 empata a partida: 1 x 1.

 

O pavor das mocinhas Greta Schröder (como Ellen Hutter) e Isabelle Adjani (Lucy Harker)

Mas o primeiro “Nosferatu” não se intimida e segue propositivo, assustando (literalmente) a cada vez que chega na área. Time entrosado, em que os jogadores trocam passes em silêncio, sem trocar uma palavra sequer. Mas nem precisa! Eles cercam o adversário quando estão sem a bola, diminuindo os espaços. E quando vão pra cima, meus amigos! É bola na trave, é sequência de escanteios, é defesa daquelas sobrenaturais do arqueiro, é salvada do zagueiro e cima da linha. Na gíria futebolística: “Nosferatu” bota terror! Eis então que o longa mudo desempata novamente a partida com a sequência da chegada de Orlock com o navio cheio de ratos trazendo a peste à cidade, momento em que não apenas impressionam as cenas dele andando pelas ruas com o caixão nos braços quanto o filme de Murnau se vale de efeitos visuais bem ousados para sua época. 

Não leva muito tempo, porém, e o desafiante, num contra-ataque, digamos, “letal”, altera o placar mais uma vez! Que jogo histórico estamos presenciando! Mais do que histórico: secular! Aproveitando-se exatamente desta sequência do desembarque da nau pesteada a Wisborg, que corresponde ao 4º ato do filme original, o professor Herzog intensifica ainda mais a atmosfera fantástica e põe milhares de ratos a invadirem as ruas da cidade. Que coisa apavorante! Isso é que se chama de povoar o campo do adversário! O jogo está indo para seus 15 minutos finais e o que se vê no marcador é 2 x 2. Tudo igual mais uma vez. Os ânimos vão ficando cada vez mais nervosos. O juiz, ao perceber as entradas estão cada vez mais fortes e que dos dois times, que têm tendência a machucar, estão querendo tirar sangue do adversário, distribui alguns cartões para colocar um freio. Se não a coisa descamba, Arnaldo!


Filmes "Nosferatu" completos: de 1922 e de 1979





Acontece que time que sabe que é grande não se amedronta fácil. O filme de Murnau sabe que representa não só um marco no cinema mundial como, em termos históricos, artísticos e sociológicos, uma síntese dos tempos pré-nazismo. A psicanálise, a industrialização e, principalmente, a 1ª Guerra, traumatizaram o mundo dos anos 20. A Alemanha, inferiorizada e pobre, tinha nas diversas correntes artísticas daquele período manifestos desta conturbação. Um deles, dos mais bem sucedidas enquanto forma de arte, é justamente o Expressionismo Alemão, o que se vê em obras como esta ou “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919), “As Mãos de Orlac” (1924), “Fausto” (1926) e “Metrópolis” (1922). Dá pra dizer que “Nosferatu” de Murnau não é apenas um filme: trata-se da invenção de uma escola, da demarcação de um estilo, da mais profunda manifestação artística de uma real onda sombria a qual não só se intuía como, infelizmente, se concretizaria no Holocausto anos depois.

A inigualável cena da sombra 
subindo a escada
Não tem como segurar um time desses, né? Pois é o que acontece. A “sinistra” qualidade técnica do filme dos anos 20, como a montagem precisa, o uso mimético dos planos de câmera e a adequação da luz à simbologia cênica fazem o time crescer para cima da sua vítima. A cena de Orlock subindo as escadas e levando a mão à maçaneta da porta da casa de sua pretendida, como se apenas a sombra agisse, é daquelas jogadas que somente os grandes ousam. O cinema noir até hoje agradece por esta cena, sem a qual dificilmente este movimento cinematográfico existiria. Além disso, o aspecto altamente erótico, que envolve desejo, medo e morte, outra ousadia que certamente impacta mais em um filme do início do século para um mais ao final deste. Herzog, um técnico honesto e sensato, no fundo sabe que seu lugar na história cinematográfica é de um renovador e não de pioneiro como o seu adversário, a quem ele reverencia. Por isso, ciente do seu tamanho, Herzog não se mete a besta em “copiar” a cena com o seu Conde Drácula, e é justo nesse detalhe que a partida se define: 3 x 2 para o clássico “Nosferatu”. E está fechado o caixão!

Planos parecidos em jogo de esquemas táticos espelhados:
bem acima, cena da aparição de Nosferatu no navio;
abaixo, o vampiro sai da tumba; ratos, muitos ratos,
levam a peste para a cidade; por fim, a luz do sol,
mortal para um vampiro que salva os homens
da criatura das trevas.


Num confronto tenso, com sustos para os dois lados, 
defesas mordedoras e ataques afiados como caninos, 
“Nosferatu: O Vampiro da Noite” faz um jogo de igual 
pra igual com o seu original, “Nosferatu: Uma 
Sinfonia do Horror”. Mas a camiseta – ou melhor, 
a capa – pesa nessas horas, e nos 10 minutos 
finais, quase ao apagar das luzes (ou seria ao
“acender das luzes” quando mata o vampiro... 
ah, sei lá!), o clássico de Murnau se impõe 
como grande obra-prima da história do cinema 
e crava! Opa, o placar, não os dentes! 
Não pensem que, no entanto, por ser disputada, 
a partida foi feia, desleal ou tenha partido para a
 violência gratuita. Não! Muita qualidade 
para os dois lados, agressividade na medida certa 
e atuações dignas de duas escolas campeãs. 
Placar justo em um clássico bem jogado.






Daniel Rodrigues

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