“Ou isso é
uma visão em minha mente?”
verso da canção “Visions”
Quando vi
Paul McCartney ao vivo chorei praticamente do início ao fim do show. Eu já previa
que isso ia ocorrer, tendo em vista meu sentimento por sua obra, tão formativa
quanto vital para a história da arte moderna – e até porque o podia fazer sem
constrangimento, já que todo o estádio fazia igual a mim. Porém quando assisti
pela TV Stevie Wonder no Rock in Rio 2011 eu não esperava que o mesmo
acontecesse. E aconteceu... via satélite. Chorei música atrás de música, tanto
nas lentas quanto nas agitadas – o que virou motivo de chacota entre os amigos.
Mesmo já tendo boa parte da discografia dele há muito tempo, essa reação me
surpreendeu, pois eu mesmo não tinha noção do quanto a obra mágica deste gênio
(e isso eu já sabia) tinha tanto a ver comigo e que estava tão impregnada em minha
alma. Mas se todas as músicas me tocavam, parei para pensar naquela hora, entre
soluços e uma felicidade imbecil, com qual disco eu mais me identificava, uma
vez que gosto de todos. A resposta veio como numa visão: “Innervisions”.
A escolha só
podia ser de cunho emocional, pois TODA a discografia de Stevie Wonder dos anos
70 até o início dos 80 é fundamental. Assim como o lindo
"Talking Book" (1972),
já resenhado aqui, o exuberante “Songs in the Key of Life” (1976) ou a magnífica
trilha sonora “Journey Through the Secret Life of Plants” (1979),
“Innervisions” é item obrigatório na prateleira de qualquer diletante. Um marco
da black music considerado pelos críticos um dos melhores da música pop de
todos os tempos. Mas o que para mim o diferencia e lhe dá um significado ainda
maior é a relação estreita com universo onírico e figurativo de um artista que,
cego desde a infância, é capaz de produzir uma arte absolutamente fulgurante,
cristalina, repleta de verdade e sentimentos genuínos. Sua música vai no fundo
do fundo do fundo.
“Innervisions” é
o auge criativo de Stevie Wonder. A estas alturas, 1973, ele já não era mais o
Little Stevie de quando surgira, aos 16 anos, como um prodígio; mas, sim, o
consagrado Stevie Wonder, sucessor de uma linhagem que vem de Sam Cooke,
Solomon Burke, Ray Charles, James Brown e que vai parar nos criativíssimos
artistas negros da gravadora Motown como ele. Compositor nato,
multi-instrumentista e dono de uma voz potente e deliciosa, capaz de ir de uma
escala à outra sem esforço, Stevie já era nesta época um artista planetário que
vendia milhões de discos. Mas, mais do que isso, “Innervisions”, Grammy de Melhor
Álbum do Ano em 1974, é o resultado de um autoacolhimento pessoal, de um
sentimento muito íntimo e definitivo de reconhecimento dele mesmo enquanto
portador de uma deficiência. Não é à toa que a obra se refere justamente ao
sentido que ele não possui: a visão (e será que não possui mesmo?...). Ali Stevie
está pleno de si, fazendo com que o problema da falta de visão não seja um
problema, mas, pelo contrário, um canal sensitivo que o fez se tornar alguém
tão sensível que suas percepções se afinam a tal ponto de não precisar mais
enxergar. Prova maior disso é que ele compõe, toca, canta, arranja e produz
todo o disco. Até (pasmem!) a capa é concebida por ele: um desenho bastante simbólico
em que a energia produzida por seus olhos ganha a atmosfera e a amplidão.
E as músicas, o
que dizer? Somente nove faixas, perfeitas em tudo: melodia, harmonia, execução,
arranjo, canto, edição de áudio. Clássicos do cancioneiro norte-americano e
mundial, marcos do que de mais sofisticado e criativo se fez em música pop no
século XX. O álbum abre mandando ver com “Too High”, um funk-jazz fusion cheio
de um suingue tão contagiante que isso chega a exalar por sua voz e por todos
os sons que emanam. Moderníssima em sonoridade e texturas, é tudo o que músicos
cool de hoje gostariam de fazer mas não conseguem atingir. “Too fine”!
Se o clima começa
animado e dançante, “Visions”, uma melancólica balada tocada em guitarra base,
baixo acústico e guitarra-ponto entra delicada mas dizendo a que veio. De
arrepiar. Cantada com extremo lirismo, sua letra fala de igualdade entre os
homens e de um princípio natural capaz de promover paz para todos. “A lei nunca
foi aprovada/ Mas de alguma forma todos os homens sentem que estão
verdadeiramente livres finalmente/ Será que realmente fomos tão longe no espaço
e no tempo/ Ou isso é uma visão em minha mente?”.
Não seria exagero
se Stevie quisesse acabar o disco já na segunda faixa, que é daquelas canções
definitivas. Mas o bom é que não acaba!, e na sequência vêm o arrebatador tema-denúncia
“Living for the City”, show de vocais e sintetizadores que aborda a opressão
aos negros, e “Golden Lady”, um soul romântico e suingado tão belo que chega a
reluzir. Sempre colando uma faixa à outra – como é característico de seus
discos –, o astral leve de “Golden Lady” dá lugar ao funkão pesado de “Higher
Ground”, tão rock em concepção que não precisou muito para que o Red Hot Chilli Peppers a regravasse anos depois com mais distorção mas sem grande alteração no
arranjo. Os versos: “People keep on learnin'/ Soldiers keep on warrin'” (“As pessoas continuam aprendendo/ Os soldados continuam
lutando”), viraram clássicos. Incrível, incrível.
Outra de deixar
de o queixo caído é “Jesus Children of America”, soul cantado em escala
decrescente, mas que, do meio para o fim, aumenta um tom, o que faz Stevie
soltar, em várias vozes sobrepostas, seu afinado e cintilante falsete. O clima
cai novamente, agora para uma suíte romântica ao piano de fazer qualquer casal
brigado reatar: “All in Love is Fair”, típica balada Motown, com sua levada
carregada de sentimento e um refrão que explode em emoção. Nessa Stevie dá uma
verdadeira aula de canto. De chorar, ainda mais no fim em que bateria, voz e
piano dão os suspiros finais.
Mas se Stevie é hábil nas lentas, também possui o
mesmo talento para fazer mexer o esqueleto. “Don’t You Worry ‘bout a Thing”, que vem logo em
seguida, é uma rumba marcada no piano e nos chocalhos que faz enxugar as
lágrimas e levantar o astral de novo. Usada mais de uma vez no cinema, como na
comédia “Hitch” (a cena do passeio de Jet-ski pelo rio Hudson de Nova Iorque),
é daquelas músicas tão alegres que remetem diretamente ao colorido alegórico da
cultura africana, influência sempre tão presente e hibridizada na obra de
Stevie. O disco encerra na atmosfera melódica e gostosa de “He’s Misstra
Know-it-all”, com seus bongôs acompanhando a bateria e o piano num andamento
suave e suingado que, ao final, vai sumindo devagarzinho enquanto Stevie
improvisa nos vocais.
Essas cores e
esse brilho estavam no palco quando vi Stevie pela TV no Rock in Rio. Aos 70
anos, toda aquela verdade e prazer de produzir uma arte pura e elevada podia
ainda ser percebida. Não tinha como não ficar tocado. Reouvi “Innervisions” dias
depois do show, ainda sob efeito da apresentação. Mas não chorei mais, pois me
dei conta de definitivamente se tratar de um dos artistas mais importantes para
a minha vida. Ele, que eu já sabia ser um dos maiores de todos os tempos, como
Mozart, Ravel , Coltrane , Chico e o próprio MacCartney. Pode colocá-lo tranquilamente
nesta fila, que aqui pra mim o altar dele já está reservado.
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FAIXAS:
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Ouça:
Stevie Wonder Innervisions
1. "Too High" Stevie Wonder 4:36
2. "Visions" Wonder 5:23
3. "Living For The City" Wonder 7:23
4. "Golden Lady" Wonder 4:58
5. "Higher Ground" Wonder 3:43
6. "Jesus Children Of America" Wonder 4:10
7. "All In Love Is Fair" Wonder 3:42
8. "Don't You Worry 'bout a Thing" Wonder 4:45
9. "He's Misstra Know-It-All" Wonder 5:35
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Ouça:
Stevie Wonder Innervisions
por Daniel Rodrigues
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