“Meu
caminho pelo mundo eu mesmo traço
Que
a Bahia já me deu régua e compasso
Quem
sabe de mim sou eu
Aquele
abraço
Pra
você que me esqueceu:
aquele
abraço.”
Foi tudo meio no susto. Por conta do nefasto AI-5, os militares
endureciam no limite máximo a repressão a comunistas, subversivos e a todo
mundo que lhes incomodava. E isso incluía – ora por serem comunistas, ora
subversivos, ora incomodativos (ora os três) – muitos artistas. Mesmo sem
alcance mental muitas vezes para entender o que reprimiam, os milicos achavam
melhor, por via das dúvidas, manter quem fosse calado. Foi o que aconteceu com Gilberto Gil que, em 1969, junto com seu companheiro de Tropicália, Caetano Veloso foi “convidado” a se retirar do Brasil. O destino foi Londres, onde,
ativo e com senso de oportunidade, Gil se tornou mais cosmopolita do que já era.
Mas não foi Londres que lhe fez assim. O gênio tropicalista saíra de terras
brasileiras com um já vasto repertório que o colocava, já naquela época, entre
os grandes criadores da música mundial. E o pouco falado disco produzido por
ele a toque de caixa antes de se mandar embora é, visto hoje, ano em que o
artista completa 70 anos, um de seus melhores e mais marcantes trabalhos,
moderno do início ao fim.
Mas nem tudo foi tão assim de sobressalto. O produtor Manuel Berembein
pegou as masters gravadas por Gil e largou na mão do ensandecido Lanny Gordin,
nas guitarras, Wilson das Neves, bateria, Sérgio Barroso, baixo, e do maestro
Chiquinho de Moraes nos teclados, o qual também fez as orquestrações. Aí, o
“estrago” se completou. Criativos e psicodélicos à altura do autor, eles deram
o corpo que faltava para que o álbum não fosse apenas acústico, mas, sim, um
marco da fusão do rock com a MPB. Tropicalismo puro. O resultado é uma simbiose
perfeita, como se todos tivessem tocando juntos e ainda escolhido o melhor take
para cada faixa.
“Futurível” é outra ótima e também bastante vanguarda, com uma letra
inteligente inspirada nos autores de ficção científica da época (Orwell, Bradbury)
que critica o processo de massificação cultural que robotiza o ser humano (“O mutante é mais feliz/ Porque na nova
mutação/ A felicidade é feita de metal”). Finaliza o disco o bate-papo
hiperfilosófico entre Gil e o artista plástico Rogério Duarte (autor da capa,
por sinal) sobre existência, cultura e infinitude, um mosaico sonoro com cara
de “Revolution 9” dos Beatles.
Mas a grande joia é justamente o hit do disco, o partido-alto dedicado,
não à toa, às três gerações-chave do samba (Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano Veloso: “Aquele Abraço”. O “até breve” de Gil para os brasileiros era
uma mensagem direta e sem medo aos militares, que o expulsavam de sua terra, dedicando
uma homenagem ao Rio de Janeiro, símbolo tropical(ista!) de “bossa” e
“palhoça”, de “mata” e “mulata”. Alegre e amorosa, mas forte, lúcida e de alto
comprometimento pessoal. Gil não manda dizer: diz abertamente e com
propriedade. Ao mesmo tempo, manda um abraço para “todo o povo brasileiro”. Um
dos maiores sambas e uma das melhores canções da MPB de todos os tempos, é um
hino, um manifesto que conseguiu não ser barrado pela censura, tamanha sua
força e identificação com o público.
Tudo precisamente instintivo – ou instintivamente preciso, como
preferirem. Afinal, mesmo que no susto, não é por acaso que um disco como esse
sai como saiu. Não com Gil.
FAIXAS:
01. Cérebro Eletrônico (Gilberto Gil)
02. Volks-Volkswagem-Blue (Gil)
03. Aquele Abraço (Gil)
04. 17 légua e meia (Humberto Teixeira)
05. A voz do vivo (Caetano Veloso)
06. Vitrines (Gil)
07. 2001 (Rita Lee/Tom Zé)
08. Futurível (Gil)
09. Objeto semi-identificado (Gil/ Rogério Duprat/ Rogério Duarte)
Bonus Tracks da versão em CD:
10. Omão Laô (Gil)
11. Aquele Abraço - versão integral (Gil)
12. Com medo, com Pedro (Gil)
13. Cultura e Civilização (Gil)
14. Queremos Guerra - com Jorge Ben e Caetano Veloso (Ben)
Ouça:
por Daniel Rodrigues
Ótima resenha,estou ouvindo o álbum.
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