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terça-feira, 6 de novembro de 2012

cotidianas #187 - O Homem Certo



  Oi, você é o Pestana, não é? perguntou o homem tirando-lhe da distração, logo depois se desculpando pela inconveniência: - Desculpa, mas o meu filho é muito seu fã – disse trazendo para junto de si o garoto que vestia uma camisa com o número 5 às costas - Eu também aliás... – completou ainda, um tanto constrangido pela última observação.
  - Sou eu mesmo – confirmou agastado o homem ali parado diante daquela vitrine no shopping.
  - Você poderia dar um autógrafo pra ele, na camiseta, por favor – agora virando o menino meio de costas de modo a permitir a escrita do ídolo.
  Pouco à vontade, Pestana apanhou a caneta que aquele pai lhe dava, apoiou parte da mão nas costas do garoto e pôs ali sua rubrica quase ilegível na qual só se distinguia o “P” enorme. “P” de Pestana.
  O dono da frente da área. 
  Dizia-se que só atravessava dali para dentro da área grande a quem ele desse autorização e olhe lá. O verdadeiro volante, o cabeça-de-área. Era combatido por muitos velhos puristas do futebol como mais um cabeça-de-bagre, isso sim, mas aquilo não era verdade. Pestana sabia jogar. Tinha uma saída de jogo limpa e fluída. Roubava a bola, olhava em torno e logo vislumbrava o companheiro bem posicionado. Passe certo! Perfeito. E o time saía para o ataque. Se precisasse também sabia conduzir. Levava bem a redonda, com habilidade, destreza, lucidez e alguma velocidade. Qualidades que o próprio Pestana reconhecia em si e por isso mesmo aspirava a meia-armação. Ah, os meia-armadores, os pensadores do jogo cerebrais como Zidane, Carpegianni, Cruyff, Platini, carregadores de bola como Kaká, os de chegada na frente como Zico, ah, e Dom Diego, ah, e Pelé. Sei que dizem que o Rei era quase atacante mas... aquele passe pro Jairzinho contra a Inglaterra e aquele pro Carlos Alberto? Só quem VÊ mesmo o jogo pra fazer aquilo. Sonhava vestir a 10 e ser o maestro de seu time. Conduzi-lo às vitórias nas situações mais complicadas. Não queria fazer o gol, mas com um toque genial deixar o companheiro na cara do gol como quem diz “faz”. Mas não. Até começara como meia na base mas o excesso de jogadores da posição fez com que disputasse posição na frente da área e ali se destacasse. Subiu para os profissionais, ganhou títulos, chegou à Seleção, se consolidou como um dos melhores volantes da história do futebol brasileiro e agora era difícil que lhe dessem aquela oportunidade de ser o mago do meio-campo.
  O menino saiu forçando o pescoço tentando olhar as próprias costas. Não agradeceu mas seu olhar emocionado dizia tudo. Nem precisava. O pai sim, se desmanchou em agradecimentos que o Pestana recebia tentando disfarçar o incômodo.
Saiu do shopping chateado com aquela idolatria estúpida e resolveu ir caminhando, mesmo, para casa, uma vez que não morava muito distante dali, de modo a ir ruminando um pouco aquela situação que lhe desagradava. Estando um final de tarde quente, parou num bar qualquer para comprar um refrigerante e ali, sem ser reconhecido, talvez pelo boné e óculos escuros que usava, ouviu dois homens que discutiam a rodada do final de semana. Um deles dizia:
  - ... ah, mas isso porque o Pestana não deixou o cara nem ciscar na frente dele.
  - Isso é verdade – concordou o outro – É um monstro aquele Pestana! Volante não tem igual – completou ainda.
  - Pra mim é um grosso que só sabe dar pancada – gritou lá de dentro o dono do boteco – Deviam proibir esses volante no futebol...
  Meio emburrado com a última observação, o Pestana resolveu sair dali sem nem acabar de beber o refresco. Ora, “grosso”! Veja só. Era só ter uma chance que mostraria que podia ser um meia. Um meia genial. Com lançamentos de Gérson e assistências de Riquelme. Ia pedir para o técnico para, daquele dia em diante, ser escalado mais à frente, com liberdade para sair e criar jogadas. Podia dar uma colaboração maior do que somente desarmar e aparecer na frente de vez em quando. Sabia que podia.
  Estava decidido, iria falar com o ‘professor’ no dia seguinte.
  E o fez. Falou com o técnico, à parte, no treinamento da manhã seguinte. O comandante não entendia o porquê daquela reivindicação agora. Estavam bem no campeonato, o time estava encaixado, ele, o Pestana, acabava de ser escolhido pelos jornalistas o volante do campeonato e era novamente chamado para a Seleção. Além do mais tinha um ótimo armador no time, igualmente convocado para o selecionado nacional. Por que isso agora? O Pestana argumentava, argumentava, mas não haveria mesmo recurso que convencesse alguém em são juízo a escalar o melhor da sua posição fora dela. Loucura!
  - Deixa estar, Pestana! – dizia o professor - Tu é o melhor ali. Ali, na frente da grande área. Tu é o cão-de-guarda. O adversário já treme só de saber que é o Pestana que tá lá protegendo a defesa. Deixa de besteira e vai jogar o que tu sabe, homem – arrematou dando um tapa carinhoso na cabeça do volante.
  No treino daquela manhã, o Pestana foi melhor do que nunca. Parecia estar em dia de jogo a valer. Deu carrinho, roubou bolas, saiu jogando, avançou com a bola e ainda, depois de um lançamento de mais de 50 metros, no pé do atacante, que o deixou na pinta pra meter pra dentro, saiu olhando pro treinador como quem diz “viu só”. Mas aquele treinamento parecia reservar algo de especial, e o habilidosíssimo meia do time, craque de bola, em uma jogada despretensiosa, à toa, parecia ter torcido o tornozelo. Médico em campo. Todas as atenções nele. Hum... Pela experiência de boleiro aquilo era coisa pra pelo menos um mês. Era a grande chance do Pestana. Depois da sua solicitação aberta e da exuberante exibição técnica no treinamento, habilitava-se claramente para a vaga já na próxima partida, dali há dois dias, até porque o técnico não tinha grandes opções no elenco para a reserva.
  - Eu posso fazer a dele, professor – prontificou-se, confiante, ao final do treino.
  - Vamos ver, vamos ver. Eu vou testar algumas formações – disse o técnico com aquele jeito de raposa velha.
  O velho fez mistério até a última hora e só na concentração anunciou que utilizaria um dos garotos dos juniores para a criação das jogadas. Um garoto que até prometia mas que além de muito ‘verde’ nem se aproximava da qualidade técnica dele, Pestana, mesmo jogando de volante durante todos esses anos. O abatimento do Pestana foi tão visível que o técnico foi ter com ele:
  - Eu não podia te trocar de lugar hoje porque os caras tem um dos melhores ponta-de-lança do campeonato, Pestana. Só tu ali na frente pode parar aquele 10 deles. Tu é o Homem Certo pra isso. Só tu, Pestana. Só tu.
  O Pestana fez que sorriu sem levantar os olhos e deu a entender que estava conformado. Não proferiu palavra durante toda a viagem da concentração para o estádio, nem na palestra do vestiário, nem pediu a palavra na hora dos gritos de ordem e incentivo. Entrou em campo calado e com um olhar fixo no vazio e um leve sorriso no canto da boca.
  Ouviu ainda algum colega gritando, “Vamo lá, Pestana!” Pega ele, pega ele”. Assentiu automaticamente sem nem saber com o que estava concordando e ouviu então o apito do juiz. Começava o jogo. Foi truncado, pegado, marcado, sem grandes jogadas. Foi assim durante quase todo o tempo. Um insistente zero a zero que devia-se muito aos fatos de que, no time do Pestana, a articulação havia ficado a cargo de um garoto que claramente sentia a pressão da responsabilidade, e de que, do outro lado, o adversário não conseguia armar uma jogada sequer, pois sempre deparava-se com um Pestana especialmente inspirado naquela noite.
  O jogo já ia-se encaminhando para o apagar das luzes quando uma bola, numa área morta do campo, ali pela intermediária, espirrou e ficou entre o Pestana e o atacante. Típica bola pra dividida. E dividida, qualquer um sabia que o Pestana não perdia uma. Arrepiava, levantava o que encontrava no caminho e era melhor o adversário sair da frente. Aquela em especial até estava mais para ele, facilmente chegaria antes do outro. Era provável até que o atacante pipocasse e só fizesse de conta que ia na bola. Mas o Pestana pareceu retardar o arranque. Será? O rival sentiu confiança e foi com sede na bola. O Pestana então ameaçou uma entrada mais viril e o atacante adversário, num golpe de instinto, até para se proteger, armou-se de toda uma virilidade que não costumava usar. Ora, sabemos o que acontece quando quem não sabe jogar duro tem que fazê-lo. Acaba por ser desleal. E foi o que aconteceu. O atemorizado avante adversário entrara por cima da bola enquanto, inexplicavelmente o Pestana, na última hora aliviara e entrara frouxo na jogada. O tornozelo virou de uma forma que poucas vezes se viu num campo de futebol. Coisa feia! Apito, falta, expulsão, empurra-empurra, médico em campo e todo aquele alvoroço. O Pestana saía de maca. Mas saía... rindo. Inexplicavelmente saía rindo com o pé praticamente virado ao contrário.
  Sempre que o tempo está para chuva o tornozelo do Pestana dói. Nunca voltou a andar perfeitamente. Na modesta casa em que vive no subúrbio, guarda os troféus, os recortes de jornal, as camisas da Seleção e contempla uma parede forrada de fotos. Pôsters de meias, de armadores, de pontas-de-lança. Zico, Caju, Rivelino, Ronaldinho Gaúcho, Zidane, Messi... Agora volta da cozinha levemente claudicante com a cerveja na mão e posta-se diante da TV para ver o programa de esportes. Nunca deixou de ver as resenhas esportivas mesmo depois que deixara de jogar. Por coincidência estão a falar dele no programa.
  "Pra mim, o melhor volante que eu vi jogar foi o Pestana. E não era desses cabeça-de-bagre, não. Sabia jogar. Sabia passar, conduzir pro ataque, lançar. Tinha bola pra ser meia se quisesse", sentenciava o comentarista.
  Desligou a TV e foi manquitolando para o quarto.
  Pestana faleceu poucos anos depois. Sozinho, com sérias dificuldades financeiras e problemas de alcoolismo. Deixou este mundo de bem com o futebol e mal consigo mesmo.


de Cly Reis
baseado no conto "Um Homem Célebre"
de Machado de Assis






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