“ ‘White Light/White Heat’ é tão
escuro como encarte do álbum.”
Jason Thompson
O The Velvet Underground conseguiu um feito que pouquíssimos artistas do
rock alcançaram: tornar praticamente toda sua discografia essencial. Tá certo
que gravaram poucos discos de estúdio, mas em sua absoluta maioria imprescindíveis.
Poderiam entrar tranquilamente nessa lista “The Velvet Underground”, de 1969,
“Loaded”, de 1970, e até o póstumo “V.U.”, de 1984, sem falar, claro, de seu
primeiro e histórico trabalho, The Velvet Undeground and Nico, de 1967, já
constante entre os ÁLBUNS FUNDAMENTAIS deste blog. Depois de uma estreia tão marcante
como a deste “divisor de águas” da música moderna do século XX, o grupo, até
então apadrinhado por Andy Wahrol, que lhes coordenava toda a parte artística –
influindo, inclusive, no conceito e repertório –, tinha à frente duas das mais
geniais cabeças que o rock já conheceu: Lou Reed e John Cale. E quem tem uma
dupla desse calibre não iria ficar muito tempo associado à figura de outro
artista, por mais que a amizade se mantivesse – como, de fato, ocorreu. Foi
assim que Reed e Cale pensaram ao criar o ousado, selvagem e brilhante “White
Light/White Heat”.
Neste disco, gravado ao vivo no estúdio, o Velvet manda às favas as pré-concepções
intelectualódes que vinham sendo atribuídas a eles e fazem um álbum de puro rock
’n’ roll. Eles se despem de toda a aura de sofisticação, da elegância cool da
ex-integrante Nico e do colorido da pop art para gerar uma obra suja e
corrosiva. Algo ruidoso e psicodélico como jamais registrado antes. Nunca se
tinha ouvido tanta distorção de guitarra, tanto ruído. Parece uma demo! E o
mais incrível: conseguem um resultado tão vanguarda e sofisticado quanto, só
que de outra forma. Ao limparem sua estética de todos os floreios, extraíram a
musicalidade mais bruta e seminal possível, atingindo, por esse viés, níveis sonoros que vão do free-jazz
ensandecido de Ornette Coleman à atonalidade de Shöenberg, passando pela multiplicidade
timbrística de Mahler e pelo folk-rock rural de Hank Williams e à aleatoriedade
dissonante de Cage ou à “música mântrica” de Stockhausen.
A começar pela capa: no lugar da “banana artística” de Warhol, um
design mínimo e seco: fundo preto e letras em fonte simples. Só. O que
importava era o “recheio”. E que recheio! Voltando no trabalho anterior, que
termina no mar de ruídos e improvisos de “European Son”, “WL/WH” inicia com
essa pegada em sua faixa-título, um rockabilly fenomenal em que a voz de Reed
faz tabelinha com o coro, e todas as outras faixas seguem nesta linha até o fim.
O som, tosco e tomado de distorções de pedal, parece rasgar a caixa, e uma
visível (e proposital) equalização estourada, formando uma massa sonora densa.
Tudo está sobreposto: baixo, guitarras, bateria, órgão, vozes. E a letra, mais
corrosiva impossível: narra a experiência de um tratamento de choque a que Reed foi
submetido aos 17 anos na tentativa de “curar-lhe” do homossexualismo. Recado dado, vem “The
Gift”, tribal e minimalista, que conta pela primeira vez na obra do Velvet com
a elegante voz de Cale. O galês recita uma extensa história sobre um homem que
queria assassinar seu desafeto escondido dentro de uma caixa de presente, mas ele
é quem acaba morto.
A terceira é uma das melhores músicas da banda: “Lady Godiva’s
Operation”. Ao estilo das clássicas “All Tomorrow’s Parties” e “Venus in Furs”,
traz uma composição soturna e sensorial com influências da música medieval para
contar sobre uma cirurgia de troca de sexo em uma drag queen, que tem o nome da
histórica personagem anglo-saxã
do séculos I e II. Além da instrumentação crua sobre uma melodia rebuscada, a
harmonia envolve o ouvinte de tal forma que parece criar um mantra. Também
cantada por Cale, lá pelas tantas Reed começa a entrar progressivamente, até
formar com o parceiro o mais psicodélico dueto já visto no rock, em que um solta
uma palavra enquanto o outro emite sons guturais e onomatopeias, e vice-versa.
Nada menos que incrível.
A melodiosa “Here
She Comes Now” dá uma pequena aliviada na pauleira, até entrar “I Heard Her
Call My Name”, que retorna à alta voltagem. Altíssima, no caso. Fico imaginando
o choque que foi isso em plenos anos 60, que, mesmo respirando contarcultura e
rebeldia jovem por todos os lados, nunca tinha visto tamanha radicalidade.
Levei os 20 primeiros segundos da música para entender o seu centro tonal, seu
riff. Mas não é só barulho, não. Em meio
a microfonias e urros de guitarra, descobre-se uma bela canção. Impossível não se
lembrar do épico "Psyco Candy" , do Jesus and Mary Chain, claramente inspirado nessa fórmula e
conceito.
O disco
termina com a clássica “Sister Ray”, uma performance protocênica de 17 minutos
tal como a banda fizera várias vezes para as projeções audiovisuais de Warhol
ou para trilhas do cinema alternativo norte-americano. A base, simples e muito
punk, é desenhada pelos improvisos de vocal de Reed e sua guitarra junto com a
de Sterling Morrison, além das inteligentes variações de ritmo de Moe Tocker na
bateria e pelo órgão tresloucado de Cale. Segundo o crítico e historiador
musical italiano Piero Scaruffi, “Sister Ray” é “uma peça épica que rivaliza
com as sinfonias de Beethoven e as improvisações metafísicas de John Coltrane”.
“WL/WH” é, assim, o primeiro disco genuinamente punk da história, antes
mesmo do debut de Stooges e MC5, ambos em 1969, e mais ainda de Ramones, Sex Pistols ou The Clash, que nem pensavam em tanger seus primeiros acordes. Não só
pela sonoridade, mas também por introduzir de vez a postura do “faça você
mesmo”, seja na produção deliberadamente desleixada, seja na execução ao vivo no
estúdio sem esconder possíveis erros, seja na secura da arte gráfica. Um disco
que, completando 45 anos de seu lançamento, é um marco em estética e plasticidade.
Punks, new-waves, ingleses dos ‘80, grunges e indies até hoje deitam e rolam nessa
viagem subterrânea do Velvet, pois “WL/WH” é exemplo de que basta iniciativa e
um sentimento genuíno para fazer rock ’n’ roll. E que bom rock ’n’ roll!
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FAIXAS:
1. "White
Light/White Heat" (Reed) - 2:47
2. "The
Gift" (Reed, Morrison, Cale, Tucker) - 8:18
3. "Lady Godiva's
Operation" (Reed) - 4:56
4. "Here She Comes
Now" (Reed, Morrison, Cale) - 2:04
5. "I Heard Her
Call My Name" (Reed) - 4:38
6. "Sister
Ray" (Reed, Morrison, Cale, Tucker) - 17:28
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