Deu-se quando este meu amigo de que falei, por motivos de
partilha familiar, estava a procurar uma boa casa onde pudesse viver livre das
picuinhas e mesquinharias dos parentes. Andando por Botafogo, e deparando-se
com uma que parecia lhe atender as necessidades de solteiro abastado, tratou de
marcar com a imobiliária uma visita ao dito imóvel no dia seguinte.
Tratou por volta de três da tarde, mas tendo por hábito
chegar antes da hora marcada, adiantou-se algo em torno de quinze minutos. Chegando
ao portão, e encontrando-o destrancado, adentrou à propriedade de modo a não
precisar ficar postado na calçada esperando, já aproveitando para apreciar o
jardim e fazer uma avaliação prévia do bem quer pretendia adquirir. Rodeou,
perambulou entre as aléias, surpreendentemente bem tratadas para um imóvel
vazio, e distraído em seu pequeno passeio, viu-se de repente em frente à porta
dos fundos. Tentou a maçaneta só por curiosidade de ver se estaria aberta, e
para sua surpresa, a mesma encontrava-se destrancada. Ainda pensou um momento
se não deveria esperar o corretor, mas não encontrando mal algum em examinar o
local antes da chegada da outra pessoa, adentrou o casarão pela cozinha. Era
uma sobrado imponente, de teto alto, corredores extensos, cômodos confortáveis
e janelas grandes. Encontrava-se internamente, assim como o jardim, muitíssimo
bem arrumado se comparado ao que via-se de fora, sujo, descascado, com
aparência de abandono. Lá dentro, não. A sala de estar parecia pronta a receber
um sarau, a de jantar uma recepção para a realeza, da cozinha perfeitamente
asseada poderiam ser preparados os mais saborosos pratos naquele momento, e os
quartos, tão aprumados que estavam, que poderiam receber os mais nobres
hóspedes da família real. Por certo, teria o corretor, antecipando a visita,
mandado dar um jeito no local de modo a impressionar o comprador.
Impressionara, se esta era sua real intenção.
Estava ainda a examinar a prataria da sala de jantar quando
fui surpreendido por uma bela mulher que adentrava o ambiente, vinda provavelmente,
da sala de estar. Seus cabelos eram louros tal uma cascata de luz, sua pele de
um alvor quase ofuscante, sua boca de um rubor sanguíneo e seus olhos eram de
um azul hipnótico. Trajava um belo vestido branco, acinturado, com rendas nos
braços e na base da saia, levava um leque e usava na cabeça um a espécie de
tiara com pedras.
- Suponho que seja a corretora – disse eu – Desculpe-me não
imaginei que a imobiliária fosse enviar uma dama, ainda mais tão formosa quanto
si.
Ela sorriu como em agradecimento e continuei;
- Espero que me perdoe por não lhe ter esperado... Encontrei
a porta dos fundos aberta e... entrei.
Esperei por alguma resposta mas só recebi de volta o mesmo
sorriso doce e discreto.
- Podemos ver a casa? – perguntei, agora já um ouço embaraçado
pelo silêncio da moça – examinei apenas superficialmente a sala e a cozinha –
completei mentindo.
Ela continuou em silêncio e apenas fez sinal com a mão para
que a acompanhasse.
Guiou-me então por todas as dependências, sempre calada, apenas
gesticulando para que olhasse ou entrasse nos ambientes que me apontava.
No andar superior, indicou-me então uma porta fechada ao
fundo de um corredor. Encaminhei-me para lá. Diante da porta, ainda consultei
com um olhar à senhorita se deveria abri-la, ao que respondeu com um
assentimento de cabeça. Ao abrir encontrei uma ampla e luxuosa suíte com móveis
requintados, pesadas cortinas aveludadas e uma larga cama emoldurada por um
dossel. Antecipou-se a mim e entrou no quarto convidando-me a acompanhá-la. Assim
o fiz, então, observando seus movimentos leves e sendo tomados aos poucos por
uma sensação estranha que misturava medo a desejo. Lá dentro, notando minha
perturbação, avançou lentamente em minha direção, pousou fixamente seu olhos
azuis nos meus, aproximou seus lábios dos meus e enlouqueceu-me num beijo lento
e inebriante. Não entendia o que se passava naquela casa naquele instante mas a
bem da verdade não fazia questão. Não consegui reagir e nem quereria se
pudesse. Não sabia se era certo mas não tinha forças para distinguir juízo de
valores naquele momento. Beijamos-nos, abraçamo-nos, despimo-nos e dali em
pouco havia sido eu como que arrastado àquela cama, onde me deixara entregar a
uma volúpia jamais experimentada, sendo entorpecido por aquele corpo marmóreo,
possuído por aquela boca vermelha e envolvido naquelas melenas doiradas. Entrei
numa espécie de transe, num estado de prazer tão absoluto que creio ter desfalecido
por alguns instantes.
Quando despertei, creio, depois de alguns minutos, acredito,
encontrava-me totalmente desfeito, quase nu, sobre a cama. A dama já não estava
mais lá. Tratei de vestir-me rapidamente e sair dali o quanto antes, embora
imaginasse que tendo estado já uma representante da imobiliária lá, não haveria
outros visitantes naquela tarde. Mas mesmo assim, apressei-me e desci para o
andar de baixo.
Por que narro agora na primeira pessoa? Ora, apenas para que
te sintas mais integrado à história. Dar-te-á uma sensação mais real.
É claro que não foi comigo.
Mas deixa que eu prossiga: ainda se recompondo, descendo
para a sala, ele notou um homem bem vestido, de casaco preto, óculos, de bigode
fino e cabelo engomado na base da escada, e que, ao vê-lo, sorriu amistosamente e foi falando:
- Ah, o senhor deve ser o interessado. Não sabia que havia
subido. Deve ter visto os quartos, já, não? Sei que estão muito
mal-conservados, mal-cuidados, mas o imóvel é bom. Basta uma tinta e fica
novinho como que em folha.
- O senhor é?... – perguntou sem completar a frase, só para
se certificar.
- Ah, sou Nogueira, o corretor. Espero que tenha gostado do
que viu – continuou já emendando a apresentação com a venda – Essa coisa toda
de casa mal-assombrada, que a dona da casa aparece, é tudo besteira! Imagine!
Fantasmas... Hnff... Faço pouco.
- Dona da casa?...
- Sim. Dizem que uma moça muito bonita teria, TERIA, eu
disse, se matado naquele quarto de cima do fundo do corredor. Aquele que está
trancado. Coisas de amor, de coração partido. Dizem que a família não aprovava
o casamento com um moço e ela preferiu tirar a vida. Mas posso abrir o quarto para
o senhor se o senhor quiser. Eu tenho a chave. O senhor vai ver que não há
absolutamente nada de errado com esta casa.
Só então notou à sua minha volta que tudo estava coberto de
pó, as paredes tomadas de teias de aranha e os sofás e poltronas estavam
cobertos por lençóis.
Vendo que o cliente se ocupava do estado de conservação do
local, apressou-se em amenizar a situação:
- A aparência, não é das melhores, eu sei, mas não é nada
que uma faxineira não resolva – riu um tanto sem graça o vendedor de imóveis. E
dando de olhos em algo na parede, pareceu entusiasmar-se repentinamente,
desviando o assunto.
-Hei, olhe só! Aqui está. A tal moça de que lhe falei. A que
dizem que assombra a casa – mostrando uma fotografia ao visitante – Mas eu
tenho certeza que o senhor, que me parece um homem culto, inteligente, não vai
se deixar levar por essas crendices populares.
No daguerreótipo onde aparecia com o mesmo vestido que a
tinha visto, aqueles olhos o encaravam com a mesma sensualidade de alguns
minutos atrás, mas agora parecia notar um ar de satisfação doentia, um espécie
de sombra de prazer mórbido. E, embora o retrato que o vendedor mostrava fosse
em preto-e-branco, era como se ainda visse aqueles olhos tão azuis quanto há
pouco. Um azul estranhamente vivo.
Cly Reis
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