Solano
Ribeiro
Quem me conhece sabe que a minha banda brasileira favorita veio da
Bahia não é o Camisa de Vênus. Claro que são os Novos Baianos. E toda vez que
alguém fala neles, pensa direto em "Acabou Chorare", um verdadeiro... clássico
da MPB de todos os tempos. Adoro este disco. Mas o meu favorito deles é outro:
“Novos Baianos F.C.”, terceiro disco da trupe, lançado um ano depois do “Acabou...”.
Pensem bem: depois de fazer um disco como aquele, como seguir em frente? Pois
Pepeu, Baby, Paulinho e Moraes e sua gangue resolveram fazer um LP falando das
coisas que faziam parte da sua vida cotidiana naquele sítio em Jacarepaguá onde
viviam em total harmonia (mais ou menos, né? como ficou claro no filme "Filhos de João - O Admirável Mundo Novo Baiano", de Henrique Dantas).
A brincadeira começa com “Sorrir e Cantar Como Bahia”, música de Luiz
Galvão e Moraes Moreira que faz um jogo de palavras com a gravidez de Baby
Consuelo e a maternidade do planeta: “Mãe
pode ser e ter bebê/ E até pode ser Baby também”. Ela estava
permanentemente grávida de Riroca, Zabelê e Nana Shara, suas três meninas que
se tornariam o trio SNZ. O futebol do título está presente em “Só Se Não For
Brasileiro Nessa Hora”. Como cronista do cotidiano, Galvão consegue mostrar
exatamente o que acontecia nas ruas do Brasil, até bem pouco tempo, o joguinho
de bola na calçada: “Que a vida que há do
menino atrás da bola/ para carro, para tudo/ quando já não há tempo/ para
apito, para grito/ E o menino deixa a vida pela bola/ Só se não for brasileiro
nessa hora”. O lado nonsense de
Galvão, o letrista da banda, aparece em “Cosmos e Damião”, uma verdadeira
viagem onomatopaica na voz de Paulinho Boca de Cantor. Olhem que maluquice: “Qui qui qui qui qui não é qui qui qui/ Que
bom é bom demais pra ser aqui/ Onde um faz hum e outro hum hum/ Mas que bom,
todos hum!/ Como um dia, não ria ?/ Sorria como nós...um dia como esse de
Cosmos e Damião/ você pode até dançar com Damião/ Mas quem contrariar a lei do
Cosmos/ não vai pagar/ já paga ao contrariar”. Doideira total emoldurada
pelas guitarras, bandolins e violões de Pepeu e Moraes, o baixo de Dadi,
Jorginho Gomes na bateria mais Paulinho, Baby, Baixinho e Bola nas percussões.
Eles fazem a gente cantar estes versos enlouquecidos.
Uma das influências mais marcantes do grupo, Dorival Caymmi, é
reinterpretado e rearranjado em “O Samba da Minha Terra”. Uma mistura de MPB
com Jimmi Hendrix, a versão deles valoriza o verso: “Quem não gosta de samba/ Bom sujeito não é/ É ruim da cabeça ou doente
do pé”. Esse sim é o verdadeiro roque brasileiro, onde as guitarras
convivem harmonicamente com a percussão e não copiam ninguém. Ao ouvir os
discos dos Novos Baianos – e esse, em particular –, fico imaginando porque
grande parte da gurizada se deixa seduzir pelo “rock brasileiro” dos anos 80.
Todas as bandas daquela fase são inspiradas em algum grupo inglês do período.
Poderia também dizer copiadas. Enquanto isso, os NB usaram a incrível e
inesgotável matriz de ritmos nativos para fazer uma música criativa e
inteligente. “Vagabundo não é Fácil” é outro exemplo das letras maluquetes de
Galvão numa cama de samba com um surdo bem marcado: “Se eu não tivesse com afta/ até faria uma serenata pra ela/ Que veio
cair de morar/ Em cima de minha janela”. Lá pelas tantas, rola uma rima de “Bicarbonato
de sódi”o com “pessoas sem ódio”. Hilário! E no final, mais um jogo de
palavras: “Ao menos leve uma certeza/
Você me deixa doído/ Mas só não me deixará doido/ Porque isso sou/ Isso eu já
sou”. Na sequência, outro sambão daqueles de sair cantando pela rua: “Com
Qualquer Dois Mil Réis”. Na voz de Paulinho Boca de Cantor, a música brinca com
a figura do malandro carioca: ”E o malandro
aqui/ Com Qualquer Dois Mil Réis/ Põe em cima uma sandália de responsa e essa
camisa/ de malandro brasileiro/ que me quebra o maior galho”. E o refrão é
chicletaço musical: “E esse ano não vai
ser/ Igual aquele que passou/ oh oh oh oh oh que passou”.
Depois deste samba balançado, vem a faixa mais “roquenrou” de todo o
disco, “Os Pingo da Chuva”, que Baby Consuelo se encarrega de dar aquele molho.
Preste a atenção nos comentários da guitarra de Pepeu durante toda a canção,
enquanto Baby canta este história pro seu namorado – não por acaso, ele, Pepeu,
na época –, dizendo que ele não deve se preocupar com o céu que está “preto e as nuvens que até as sombras
assombram”. Ela sabe que “Você tem
seus argumentos de querer/ o sol pra bater sua bola/ E a lua pra ver sua mina/
ou só pra ir ali na esquina...Faça como eu que vou como estou/ porque só o que
pode acontecer/ É os pingo da chuva me molhar”. E esse rock vira um baião
elétrico no final. É aí que eu me refiro. Com tantas possibilidades rítmicas e
melódicas, os roqueiros dos anos 80 se contentavam em copiar The Smiths, The Cure, The Police, entre outros. Que desperdício! “Quando Você Chegar” é uma
bossa a lá João Gilberto onde Moraes fala de um filho que está chegando e que,
aparentemente, iria chamar de Pedro. Os planos devem ter mudado, pois este
filho é o guitarrista Davi Moraes, que veio a Porto Alegre em 2013 com ele para
um show em homenagem aos 40 anos de “Acabou...”. Lá pelas tantas, esta bossa
vira um samba. E a letra é tão boa que vai inteira: “Quando você chegar/ é mesmo que eu estar vendo você/ Sempre brincando
de velho/ me chamando de Pedro/ me querendo menino que viu de relance/ Talvez
um sorriso em homenagem à Pedro/ Pedro do mundo dum bom dum bom dum bom.../
Fique quieto que tudo sana/ Que a língua portuguesa, a língua da luz/ A
lusitana fez de você o primeiro guri/ Meu guri, meu gurizinho/ Água mole em
pedra dura, pedra pedra até que Pedro”.
Pra encerrar “Novos Baianos F.C”, duas faixas sem letra. Desde "Acabou Chorare" existia, dentro dos Novos Baianos, o grupo instrumental A Cor do Som,
formado por Pepeu, Dadi, Jorginho e os percussionistas. As duas últimas músicas
são dedicadas a este embrião de trabalho que iria desembocar no grupo de mesmo
nome que gravaria seu primeiro disco em 1977. Na formação de estreia, só Dadi
permaneceria, tendo ao seu lado o irmão Mu mais Armandinho e Gustavo. “Alimente”
e “Dagmar” são dois exemplos do que seria desenvolvido pela Cor e por Pepeu em
seu primeiro trabalho solo, “Geração de Som”, em 1978. Choro, samba, rock, tudo
misturado e embalado pra presente. Uma delícia de disco que muita gente não
conhece. Em 1978, os Novos Baianos gravam seu último disco, “Farol da Barra”,
outro trabalho incrível. E decolam as carreiras solo de Pepeu, Baby, Dadi na
Cor do Som. Mas isso, como sempre, é outra história.
vídeo de "Só Se Não For Brasileiro Nessa Hora" - Novos Baianos
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FAIXAS:
1. "Sorrir e cantar como Bahia" (Luiz Galvão/Moraes Moreira)
– 3:37
2. "Só se não for Brasileiro Nessa Hora" (Galvão/Moraes) –
3:28
3. "Cosmos e Damião" (Galvão/Moraes) – 4:07
4. "O Samba da minha Terra" (Dorival Caymmi) – 3:29
5. "Vagabundo não é Fácil" (Galvão/Moraes) – 5:06
6. "Com qualquer Dois Mil Réis" (Galvão/Moraes/Pepeu Gomes) –
3:26
7. "Os Pingo da Chuva" (Galvão/Moraes/Pepeu) – 4:10
8. "Quando você Chegar" (Galvão/Moraes) – 3:19
9. "Alimente" (Jorginho Gomes/ Paulinho Gomes) – 4:44
10. "Dagmar" (Moraes) – 2:31
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OUÇA:
por Paulo Moreira
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