“Hancock estreita as fronteiras entre o hard bop, encontrando brilhantemente um sugestivo equilíbrio entre o bop tradicional,
injetando-lhe grooves do soul,
e experimental, jazz pós-modal.”
Stephen Thomas Erlewine,
crítico musical e biógrafo
O jazz
já era o maior gênero musical norte-americano desde os anos 20, mas
é inegável que as décadas de 50 e 60 foram memoráveis para sua
história. A cada ano, vários artistas – muitos em seu auge;
alguns, iniciando; outros, veteranos em plena forma – lançavam um
ou mais álbuns impecáveis e inovadores, considerados fundamentais
até hoje, fosse pela Impulse!, Blue Note, ECM, Atlantic, Columbia, Verve e outros selos. Destes, a passagem de 1963 para 1964 talvez
seja a que reúna o crème de la creme pós-Segunda Guerra.
Provavelmente, iguale-se apenas ao revolucionário ano de 1959, que
presenteou o mundo com as inovações modais de "Kind of Blue",
do Miles Davis, com o libelo free jazz de “The Shape of Jazz
to Come”, do Ornette Coleman, e o petardo hard-bop “Giant
Steps”, do John Coltrane. Se nem tanto em transformação do
estilo, o quinto ano da década de 60 não fica para trás em
qualidade e importância. Gravaram-se, durante seus 365 dias, por
exemplo, joias como "Night Dreamer", do Wayne Shorter, "Matador",
do Grant Green” (ambos já resenhados aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS), “Out to Lunch”, do Eric Dolphy, e “Witches and Devils”, do Albert Ayler. Todos completando expressivos 50 anos em
2014.
Um dos
mais felizes desses cinquentões foi registrado a 17 dias do mês de
junho daquele fatídico ano para o jazz. Foi quando, pela Blue Note,
um dos maiores mestres da música moderna entrou nos estúdios Van Gelder, em New Jersey, com um timaço que tinha Freddie Hubbard, no
trompete, corneta e flugelhorn,
Ron Carter, no baixo, e Tony Williams, na bateria. Aquele dia
marcaria a sessão de gravação de mais uma obra-prima do jazz:
“Empyrean Isles”, do pianista, compositor e arranjador Herbie Hancock. Um dos mais versáteis, influentes, celebrados e até
controversos ícones da música mundial, Hancock, aos 64 anos de vida
e mais de 50 de carreira, já foi do be-bop ao break,
passando pelo afro-jazz, fusion, funk, modal, clássico e
outros gêneros, seja pilotando o piano ou o sintetizador. E sempre
com a maior integridade, sem perder seu fraseado característico e a
complexidade harmônica inspirada em músicos de diversas vertentes
como Bill Evans, Miles Davis, James Brown, George Gershwin, Tom Jobim e Sergei Rachmaninoff. Como seus mestres, serve de referência não
só para a geração do jazz que lhe sucedera mas, igualmente, a
músicos de outros estilos como Joni Mitchell, Jeff Beck, Stevie Wonder, Brian Jackson, Dom Salvador, Ike White, Marcos Valle, Public Enemy, entre centenas de outros.
Quinto
disco solo do músico, “Empyrean Isles” é o exemplo máximo do
hard-bop hancockiano e cuja influência e profusão através
dos tempos é das mais fortes de sua trajetória ainda em plena
atividade. A começar por dois monumentos do jazz moderno: "One
Finger Snap" e "Oliloqui Valley". A primeira, ritmada
e pulsante, começa com Hubbard arrebentando na corneta sobre uma
base swingada de Williams, que, com as baquetas, conjuga com
equilíbrio caixa, chipô e prato de ataque. Mas, como o próprio
título sugere, a preciosidade está nos dedos de Hancock. Como diria
Ed Motta, “a mão esquerda mais inteligente do mundo”. Um show de
agilidade e engenhosidade de improviso. La no fim, quando se pensa
que tocaram o chorus derradeiro, Tony Williams ainda apresenta
um arrasador solo para, daí sim, desfecharem. Uau!
Já
"Oliloqui...” quem começa incrivelmente é Carter, com seu
toque trasteado inconfundível. Mais cadenciada e bluesy,
nesta é o pianista quem inicia os trabalhos de improvisação,
novamente (e como sempre!) com a mais alta qualidade que se pode
esperar. Um fraseado limpo, cristalino, soul mas erudito ao
mesmo tempo. Hubbard, por sua vez, também não deixa por menos, com
um solo de emoção crescente que concilia lirismo e agilidade. O
mestre Carter, que havia iniciado tão marcantemente a faixa com sua
assinatura sonora, tem a chance de desenvolvê-la ainda mais. É tão
bonito e impactante que o restante da banda para que ele toque,
voltando, em seguida, todo o conjunto ao riff inicial. Mais um
solo de trompete, atilado e curto, para terminar o número em
desce-som.
E o
que dizer da maravilhosa "Cantoloup Island"? Um colosso da
música do século XX. Que base do piano, que harmonia, que groove,
que chorus! Os quatro parecem saber tocar a melodia desde
crianças tamanha a naturalidade do arranjo, que se resolve entre o
quarteto intuitivamente, sabendo com exatidão a hora de cada um
entrar, a precisão da cadência, o ataque ou a supressão certa em
cada solo. No chorus, repetido a cada estampido seco de
Williams na caixa, como um comando, é de uma beleza indecifrável a
delicadeza do quase sugestivo último acorde ao final de cada frase,
pronunciado propositadamente fraco, como uma respiração, como um
suspiro que o ouvido já sabe como será – a adora confirmar o que
já sabia depois que o escuta. A sensação que se tem em
"Cantoloupe ..." é rara em música. Como Dear Prudence, dos Beatles, seu riff é tão natural e sugestivo que é como se
sempre estivesse ali, no ar; só nós que, seres limitados, não o
ouvimos. É preciso esses gênios mal acionem as moléculas para que,
atritadas, gerem o som e percebamos o óbvio. Longe da conjectura
matemática do serialismo dodecafônico, intricada e lógica, a
previsibilidade delas é sentida no coração.
Mas
mais do que o conhecido riff funky (muito bem “chupado”
pelo grupo Us3 em sua “Cataloop”, em 1993, porém inevitavelmente
inferior), Hubbard e Hancock desenvolvem solos que experimentam os
limites do hard-bop. Hubbard, logo após o primeiro chorus,
sobe um tom e entra rasgando, guinada inteligentemente acompanhada
por toda a banda no mesmo instante. Um dos solos mais clássicos do
cancioneiro jazz. Em seguida, cabe ao próprio Hancock, criador da
obra, imprimir-lhe uma carga descomunal de groove como até
então não se vira no jazz. Era James Brown materializando-se na “simplicidade complexa” do jazz.
Para
fechar, “The Egg”, em extensos mas nem de longe monótonos 14
minutos, um exercício minimalista brilhante e desafiador. Primeiro,
pela base de piano repetitiva em um esquisito tempo 4 + 3. Junto a
isso, a bateria de Williams, não menos criativa, mantém o compasso
em curtos rufares. Por fim, claro, as improvisações individuais de
cada um: prolongadas, em que cada músico usa da inventividade de
forma livre, namorando com o avant-garde que Coltrane, Ayler e
Don Cherry desenvolveriam a partir de então. O diálogo com a
vanguarda já se sente quando Carter surpreende e saca um arco para
fazer de seu baixo uma espécie de cello, tangendo as cordas ao invés
de dedilhá-las. Nisso, Hancock faz a música ganhar outras
dimensões, passeando pelo free jazz, retornando ao cool
dos anos 50, mas, mais do que isso, remetendo aos eruditos
contemporâneos em lances de pura atonalidade. Quanta musicalidade!
Em “The Egg”, Hancock antecipa o jazz fusion que ele mesmo
ajudaria a criar anos depois. O fim da faixa, que também encerra o
disco, é tão arrojado quanto sua abertura, como se um piano tivesse
quebrado e repetisse somente e justo aqueles acordes.
Um
disco memorável que, afora a data comemorativa, merece ser reouvido
e revisto a qualquer época, tamanha sua qualidade e importância.
Junto com outro trabalho definitivo do soul jazz, “The
Sidewinder”, do trompetista Lee Morgan (do mesmo ano!), “Empyrean
Isles”, com seus riffs e levadas funk somados à sua
engenhosidade harmônica, inspiraram toda a geração posterior de
jazzistas (Chick Corea, Vince Guaraldi, Hubert Laws, irmãos
Marsalis) e não-jazzistas, como a Blacksplotation dos anos 70, o pop
dos anos 80 e músicos de todas as partes do planeta até hoje que
chega a ser difícil até dimensionar. E essa força perdura desde
aquele longínquo 1964. A fase era tão fértil que, pouco menos de
um ano depois, Hancock comandaria a mesma banda no também
espetacular “Maiden Voyage”, avançando ainda mais alguns passos
em estética e forma. Mas os 50 anos desta outra obra-prima serão
completos somente ano que vem...
Herbie Hancock - "Cantaloupe Island"
Herbie Hancock - "Cantaloupe Island"
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FAIXAS:
- "One Finger Snap" – 7:20
- "Oliloqui Valley" – 8:28
- "Cantaloupe Island" – 5:32
- "The Egg" – 14:00
todas
as faixas compostas por Herbie Hancock
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OUÇA
O DISCO
por Daniel Rodrigues
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