Água!
Chuva só se foi de musicalidade com o versátil e eclético João Donato no palco. |
O
temor era de que caísse um toró como ocorrera na manhã daquele
domingo. O espetáculo estava marcado para as 11h, porém, ali pelas
9h, o tempo mostrava-se nublado mas estável, sem nenhuma chuva. Com
a programação confirmada pelas redes sociais, fomos, Leocádia e
eu, assistir ao principal e derradeiro dos shows gratuitos do 1º
Porto Alegre Jazz Festival. E, ao contrário do que pudesse se
esperar, não foram pingos que caíram sobre nós, mas um sol forte
de mormaço que assolou o Parque da Redenção. O clima abafado,
entretanto, não tirou o prazer de assistir a uma das lendas vivas da
MPB e da música mundial: o pianista, acordeonista, arranjador,
compositor e cantor acreano João Donato.
Com
sua simpatia peculiar, Donato, um dos principais músicos brasileiros
de todos os tempos, veio à cidade comemorando seus 80 anos de vida.
Acompanhado de uma maravilhosa banda – Robertinho Silva, craque da
bateria; Luiz Alves, baixo acústico; Ricardo Pontes, sax alto e
flauta; e José Arimatéa, flughorn e sax tenor –, ele nos inundou
com o que há de mais cristalino na música brasileira sintonizada
com o mundo. Tudo compartilhado com o público com a sabedoria e a
doce malandragem que sempre lhe foram características. Não à toa,
o tema inicial do show foi “Amazonas (Keep Talking)”, clássico
do álbum "Quem é Quem", de 1972, resenhado aqui no blog por
Márcio Pinheiro. Sente-se nela o mambo cubano, o jazz fusion,
a Bossa Nova, a soul music, tudo enredado num riff de
piano inconfundível e solos magníficos de Donato, de Alves e dos
dois sopros. Grandiosa como o rio que leva seu nome.
A
sensação mágica de estar vendo João Donato ao vivo logo se
ressalta. É assombroso perceber que justo aquele senhor animado e
tomado de genialidade no palco é o ÚNICO compositor pré-Bossa Nova
vivo. O único! Todos já se foram: Dolores Duran, Antonio Maria,
Billy Blanco, Johnny Alf, Paulo Moura, Moacir Santos – e, claro, o
próprio Tom Jobim, que foi pré, durante e pós-Bossa. Donato, este músico de formação tão erudita quanto popular, que viveu o boom
da Bossa Nova mas logo se bandeou para os Estados Unidos para
realizar obras referenciais como “A Bad Donato” (1970) e
“Donato/Deodato” (em parceria com Eumir Deodato, de 1973), não
só seguiu produzindo espantosamente nos anos 70, 80 e 90 afora como,
está aí até hoje, desbravando oceanos.
Sensação mágica de estar vendo ao vivo um dos maiores gênios da música brasileira. |
Mas se
o assunto era água, em seguida Donato chamou a todos para caírem na
lagoa com “O Sapo”, outro marco de seu repertório que, na versão
do show, não veio com a letra de Caetano Veloso (que a reintitula de
“A Rã”), mas com o vocalise clássico – algo como:
“Pã-rã-rã-rã/ Pã-rã-rã-rã-rá daza-inguê/
Daza-inguê-inguê guin-rin-gui-din/ Guin-rin-gui-din gui-din
gon-ron-gon-don/ Gon-ron-gon-don pã-rã-rã-rã...” – que,
até onde vai meu conhecimento, teve sua “letra” inventada por João Gilberto quando este a gravou em 1971 no disco “João
Gilberto en Mexico”.
Vieram
outras belezas de total musicalidade: “Rio Branco” (referência à
cidade-natal do compositor mas não menos aquífera em conceito); a
gostosa “Nasci para Bailar”, que trouxe novamente os ritmos
caribenhos; a romântica “Até quem sabe”; o bop “Song
of my Father”, do pianista norte-americano Horace Silver; e o samba
cool “Café com Pão”.
Das
celebradas parcerias com Gilberto Gil tivemos o privilégio de ouvir
algumas das melhores. Primeiro, “Bananeira” (“Bananeira, não
sei/ bananeira, sei lá/ a bananeira, sei não/ a maneira de
ver...”), animada e cantada pela plateia. “Lugar Comum”,
das mais belas do cancioneiro de ambos os músicos, veio em ritmo de
bossa nova, como a água do mar batendo, como um “começo do
caminhar pra dentro do fundo azul”. A sabedoria oriental
desta (“Tudo isso vem, tudo isso vai/ Pro mesmo lugar de onde
tudo sai...”) se reflete em outra parceria da dupla, “A Paz”,
das preferidas do público. Esta, porém, quase foi estragada por uma
participação (nada) especial do músico gaúcho Totonho Villeroy
(ah, não pode mais chamar de “Totonho”? Tem que ser Antonio
agora, pra dar o ar de “artista sério”? Puxa, desculpe, mas até
João Donato o anunciou assim). Não fosse o espetacular riff,
a melancólica e profunda letra de Gil (que remonta ao cinema de Ozu
à "Rosa de Hiroshima" de Vinícius) e o primor da execução da
banda, Villeroy, desatento e sem brilho, quase direcionou a bomba
atômica que cairia sobre o Japão para Porto Alegre. Ele conseguiu,
apenas cantando e no único momento em que esteve no show, errar a
letra! E duas vezes! O público e Donato (este, com oito décadas nas
costas) tiveram que lembrá-lo, como num karaokê. Ridiculamente
desnecessário.
Ainda
rolaram duas de autoria de Donato com Martinho da Vila, mostrando o
quanto a natureza africana e rural do segundo se reflete na
universalidade estilística do colega. Uma delas, “Suco de
Maracujá”, um samba maxixado cuja engraçada letra, de estilo
literário típico do compositor carioca, relata a preocupação de
um homem prestes a se casar com uma mulher muito fogosa (“Pra me
casar com você/ Eu vou ter que me cuidar/ Contratar um personal/
Treiner pra me acelerar”). E, dependendo das situações do
cotidiano do casal, a dieta dele vai se alterando: “Quando a
gente for deitar/ Um bom pó de guaraná/ Se a quentura tiver morna/
Come um ovo de codorna/ E se a noite for infinda/ Aí só Pau de
Cabinda/ Se ela quiser bis no fim/ Pimenta no amendoim/ E depois pra
me acalmar/ Suco de maracujá.” O outro samba, “Daquele amor
nem me fale”, também chistosa, dá uma cutucada no Governo:
“Posso até discutir religião/ Ou falar num domingo de sol/
Criticar a terrível inflação/ O machismo, o racismo a tortura/ Mas
daquele amor, Nem me fale...”.
O show
terminou com João agradecendo aos gaúchos por terem trazido o sol,
mas não sem antes gritar seu tradicional jargão para que a banda
finalize os números: “Água!”. Coincidência ou não com
a chuva que se prenunciava e não precipitou, ouvimos isso duas
vezes, uma delas, inclusive, na faixa que encerrou a apresentação
abaixo de muito sol, a marchinha “O bicho tá pegando” (“O
coro tá comendo/ O bicho tá pegando”), que instaurou um clima
de dança de salão no parque.
Assistir
João Donato, ainda mais já numa idade assim tão avançada (e que,
pelo contrário, ele não parece ter), é realmente muito especial,
pois fica ainda mais evidente nessas horas a grandiosidade da música
brasileira, que, naturalmente, se posiciona entre todos os chamados
“estilos” musicais. Donato é genuinamente jazz? É. E é
genuinamente MPB? É também. É tudo – e mais um pouco. Tanto faz
o rótulo. O fato é que saímos, com perdão do trocadilho,
encharcados de boa música, de música pura, límpida. Tu és água,
João Donato.
por Daniel Rodrigues
Nenhum comentário:
Postar um comentário