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quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Criolo - Turnê "Criolo50" - Auditório Araújo Vianna - Porto Alegre/RS (17/10/2025)



“Nem estou acreditando que estou chegando nos 50. Esse projeto não é só sobre mim: é sobre todas as pessoas que me ajudaram a não desistir”.
Criolo

Que Criolo é o cara da nova música brasileira, isso já se sabe. Que este músico paulista, iniciado no rap, desenvolveu-se em tudo que é gênero musical, do samba ao afrobeat, também não é novidade. Que é um poeta raro, idem. Que é um dos artistas mais inovadores e influentes da música brasileira contemporânea, igualmente é outra certeza, assim como que ele já ocupa o panteão dos grandes da MPB. Porém, o palco ainda era uma dúvida, pois parecia carecer de uma afirmação. Afinal, é ali que se confirma um grande artista. É onde sua alma é impressa. Já havíamos Leocádia e eu assistido alguns shows de Criolo pela tevê, uns melhores e outros nem tanto. Mas o que não era possível captar à distância era justamente aquilo que se pode confirmar na inesquecível apresentação deste artista no Araújo Vianna, em Porto Alegre: a impressão de sua alma. E ela estava lá.

Comemorando seus 50 anos de idade - uma vitória para um rapaz preto e da periferia num país aporofóbico e racista, como ele mesmo observou -, Criolo e sua ótima banda mandaram ver num show empolgante, pois bem realizado em todos os aspectos: som, luz, projeções/arte, narrativa, repertório e, o mais importante, sintonia com a plateia. O carisma, a vibe zen e o bonito vocal de Criolo, dotado de pouca extensão mas que funciona mais em estúdio, é compensado, no palco, pela energia e o vozeirão do MC e DJ DanDan, parceiro antigo. Eles comandam o show, que percorre, num apanhado cirúrgico, o repertório dos cinco álbuns solo de carreira de Criolo dando especial destaque aos excelentes "Nó na Orelha" (2011) e "Convoque seu Buda" (2014), e o seu último, "Sobre Viver" (2022), além do disco de samba "Espiral da Ilusão" (2017).

Foram só pedradas, novos clássicos da música brasileira. Começando por "Mariô" e "Duas de Cinco", que abrem a apresentação puxando versos impactantes: "Tenho pra você uma caixa de lama/ Um lençol de féu pra forrar a sua cama/ Na força do verso a rima que espanca/ A hipocrisia doce que alicia nossas crianças" ou "Compro uma pistola do vapor/ Visto o jaco califórnia azul/ Faço uma mandinga pro terror/ E vou". Seguiram-se "Sistema Obtuso" e "Esquiva da Esgrima", esta, das preferidas do público. Em "Ogum Ogum" e "Iemanjá Chegou", duas de "Sobre...", Criolo abre espaço para a religiosidade afro, assim como faz para outros dois blocos distintos. Um deles, o momento reggae, em que canta "Samba Sambei" e "Pé de Breque", além de um novo arranjo para o rap "Sucrilhos", agora ao estilo de Bob Marley.

A clássica "Subirodoistiozin" pondo o 
público gaúcho para cantar

Outro ponto especial é a parte reservada ao samba, gênero que Criolo domina como poucos. O divertido partido-alto "Lá Vem Você" e o samba-canção engajado "Menino Mimado", ambas de "Espiral...", se juntam a "Linha de Frente", célebre samba de encerramento de "Nó..." ("O nó da tua orelha ainda dói em mim/ E Cebolinha mandou avisar/ Que quando a 'fleguesa' chegar/ Muitos pãezinhos há de degustar") em que Criolo já anunciava essa sua verve composicional. 

Mais clássicos contemporâneos: "Grajauex", "Não Existe Amor em SP", cantadas em coro pelo público, e "Subirodoistiozin", que ganha, ao final, um arrasador arranjo drum 'n' bass do DJ DanDan. Para fechar, uma versão do samba triste de Benito Di Paula "Retalhos de Cetim" ("Mas chegou o carnaval/ E ela não desfilou/ Eu chorei na avenida, eu chorei...") e o matador rap-ninja "Convoque seu Buda" para encerrar, quando todos fizeram o tradicional movimento de balançar a mão de cima para baixo como nos clipes de hip hop.

Se faltava a Criolo o atestado do palco, o show do Araújo Vianna foi uma mostra de que, chegado aos 50 anos e experiente como artista, não falta nada mais a ele, Sua alma estava lá, definitivamente. E se lhe foi uma vitória chegar ao primeiro meio século, esperamos que o Brasil lhe oportunize a partir de agora novos 50 anos de brilho, dignidade e sucesso. Ele merece.


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Aguardando Criolo!


Começando o show com alta energia


Criolo em sintonia com o público


Seja rap, soul, samba, afrobeat: Criolo manda bem no que vier


Sessão de samba do show


A linda projeção completando a arte do espetáculo


O rap se mistura à musicalidade brasileira no trabalho de Criolo  


Uma matadora "Convoque seu Buda" para encerrar 
o grande show de Criolo em Porto Alegre



texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

“Os Saltimbancos”, de Chico Buarque, Sérgio Bardotti e Luis Bacalov, e "Tubby, a Tuba", de George Kleinsinger - Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) - Casa da Ospa - Porto Alegre/RS (10/10/2025)

 

Fazia um bom tempo que não assistíamos alguma apresentação da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a Ospa. Houve uma época, anos atrás, em que particularmente ia com certa frequência aos concertos, geralmente ocorridos no Salão de Atos da UFRGS desde que a orquestra ficara sem casa após a desativação do Teatro da Ospa, em 2008. Porém, a Ospa ganhou um novo endereço a pouco tempo, o Complexo Cultural Casa da Ospa, aberto em 2018, e que inclusive é perto de onde moramos. 

A oportunidade de revermos o grupo e de conhecermos, enfim, a nova sede, surgiu, então, a partir de um convite do amigo Javier Balbinder, músico e segundo-oboé da Ospa. E a atração não podia ser melhor: assistir ao ensaio de “Os Saltimbancos”, programada para a sessão em homenagem ao Dia das Crianças, dali a dois dias. Numa agradável noite e na ainda mais agradável companhia de Javier, Leocádia e eu fomos vê-los tocar a famosa peça infantil de Chico Buarque, Sérgio Bardotti e Luis Bacalov, que tanto ouvimos na nossa vitrola há tantos anos, seja a trilha da peça, de 1977, quanto a do filme “Os Saltimbancos Trapalhões”, de 1982, o qual guardamos a memória de infância de assistir no cinema.

Embora fosse um ensaio, tendo na plateia basicamente famílias dos músicos e dos integrantes dos coros infantil e jovem da orquestra – essencial para o arranjo d”Os Saltimbancos” -, a execução foi mesmo pra valer. Ou seja: além da caracterização dos cantores/atores (a Galinha, o Jumento, o Cão e a Gata), que já nos ajuda a mergulhar na cenicidade, os músicos tocaram como se estivessem na apresentação oficial.

Após o enseio da primeira parte, a peça também infantil "Tubby, a Tuba", de George Kleinsinger, e que teve narração e Simone Rasslan e solo de Wilthon Matos, veio então a parte principal. A primeira peça infantil de Chico bem poderia ser classificada como “manifesto comunista para crianças”, dado seu teor político contestatório – e de esquerda. Desde o início, com a deliciosa “Bicharia” (“Au, au, au. Inha in nhó/ Miau, maiu, miau/ Cocorocó”, quem não reconhece?), a mensagem está posta: “O animal é tão bacana/ Mas também não é nenhum banana”. O brilhante monólogo do Jumento, que vem logo na sequência com seu tema, é trazido com a boa interpretação de Daniel Schilling, que adiciona um leve sotaque caipira ao personagem, toque bastante pertinente da diretora cênica Carol Braga.

Trecho da divertida canção do 
Jumento de Os Saltimbancos

A cativante trilha de “Os Saltimbancos”, regida por Manfredo Schmiedt, foi tocada, então, exatamente na ordem, com momentos engraçados, como nos devaneios da bicharada em “A Cidade Ideal” (‘A cidade ideal da galinha/ Tem as ruas cheias de minhoca/ A barriga fica tão quentinha/ Que transforma o milho em pipoca”, por exemplo), ou o cachorrinho (vivido por João Boff) contando de sua trajetória até ali em “Um Dia de Cão”, obedecendo a qualquer um que o trate bem (“Sim, vossa Galinidade!”, diz certa hora à Galinha). “História De Uma Gata”, originalmente na voz de Nara Leão e imortalizada na de Lucinha Lins, para a trilha do filme, neste belo concerto da Ospa quem assume o microfone é a pequena e graciosa Maitê Ely. Já a Galinha, feita por Pablo Pinho, também entrega cenas espevitadas como a personagem.

Mas, principalmente, a apresentação nos emocionou. Em “Minha Canção” e na politicamente revolucionária “Todos Juntos”, além do discurso humanista e do posicionamento do lado certo da história, é impossível não sair tocado pela doçura da obra em si, um primor de música popular brasileira para criança, algo que poderia ter como sigla MPBC. E com a densidade da orquestração e o coro infantil da Ospa, tudo ganha ainda maior dimensão. Um belo programa – antecipado – para alimentar de cultura e beleza as nossas eternas crianças.

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Ospa ensaiando Os Saltimbancos como se fosse pra valer 


Daniel Schilling no brilhante monólogo do Jumento


O atrapalhado e servil Cão vivido por João Boff


A espevitada Galinha por Pablo Pinho


A pequena Maitê Ely faz uma graciosa Gata,
destaque entre os solistas


"História de Uma Gata": 
"Nós gatos já nascemos pobres..."


Hora da balada "Minha Canção", com os quatro personagens em uníssono


Para finalizar lindamente, a engajada "Todos Juntos":
comunismo para crianças


Na saída do teatro, nós com o amigo Javier



Daniel Rodrigues

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Banda Black Rio - Blues Bossa Jam Session POA - Teatro do Bourbon Country - Porto Alegre/RS (1º/10/2025)

 

Sonho realizado. Ao longo dos anos, ver a Banda Black Rio, desde que a banda voltou, no final dos anos 90, e passou a se apresentar mais, tornou-se mais do que um desejo, mas um desafio. Isso porque, das várias vezes que viajamos ao Rio de Janeiro, nunca coincidia de pegarmos um show deles. Ou tinham se apresentado antes ou se apresentariam depois de retornarmos a Porto Alegre, onde, aliás, nunca tinham vindo. Essa realidade mudou com a primeira descida da Black Rio à capital gaúcha, dentro do projeto Blues Bossa Jam Session POA, quando pudemos Leocádia e eu conferi-los numa concorrida e feliz noite no Teatro do Bourbon Country. E foi uma festa.

Com uma considerável presença de um público preto – coisa meio rara em Porto Alegre, ainda mais de pessoas pretas de bom nível social – e bastante aguardados pelos gaúchos - que, como nós, queriam muito vê-los há muito tempo - a Black Rio subiu ao palco comandada por seu cabeça, o tecladista William Magalhães, responsável pela retomada do mítico grupo fundado por seu pai, o precocemente falecido Oberdan Magalhães, este, um dos maiores músicos que o Brasil já teve. 

Cumprindo muito bem a missão de prosseguir com a arte maior da Black Rio, com o groove inconfundível da grande banda da história da soul brasileira, William e seus competentes companheiros músicos começaram com alguns números do seu clássico álbum, “Maria Fumaça”, de 1977. Este marco na história da música brasileira conquistou, mesmo sem vocal ou letra, crítica e público, chegando a ser trilha de abertura de novela da Globo (“Locomotivas”, aliás, a primeira a conseguir esse feito). Foi a música que dá título ao cultuado primeiro disco da Black Rio, inclusive, que iniciou a apresentação. Um desbunde total de musicalidade, mas um pouco atrapalhado pelas as falhas técnicas no som tanto do teclado, que mal se ouvia no início, mas principalmente da guitarra. Não dava para ouvir direito justamente o marcante riff com som ecoado da guitarra. Uma pena.

Depois desse número inicial, o som melhorou, mas ainda apresentava algumas falhas, com William tendo que chamar o roadie algumas vezes para resolver problemas. Imagino que seja um pouco difícil equalizar satisfatoriamente todos os instrumentos para uma banda como a Black Rio, em que cada mínimo som é importante para o contexto sonoro. Porém, é inexplicável que não se tenha testado e ajustado isso tudo antes. Mas, tudo bem. A festa prosseguiu com outras três de “Maria Fumaça”: a estonteante “Mr. Funky Samba”, bem como as não menos impressionantes “Leblon Via Vaz Lobo” e “Casa Forte”.

Após estas, entrou no palco o ótimo cantor Marquinho Osócio, integrante oficial desde o começo dessa segunda fase, marcada pelo lançamento do álbum “Movimento”, de 2001. Embora muito competente, o show seguiu praticamente só com as músicas “novas”, o que poderia ter sido um pouco diferente em se tratando de uma estreia em solo gaúcho. O público, maior parte formada por fãs dos tempos antigos da Black Rio, esperavam, se não mais músicas de “Maria Fumaça”, como “Na Baixa do Sapateiro” e “Baião”, pelo menos coisas dos outros dois discos da fase clássica, “Gafieira Universal”, de 1978 (“Chega Mais”, “Samboreando”, “Expresso Madureira”, quem sabe) e “Saci Pererê”, de 1980, em que podiam ter resgatado o lindo reggae que lhe dá título feito por Gilberto Gil especialmente para o conjunto, ou “De Onde Vem” e “Amor Natural”, todas em que o vocal de Osócio se encaixaria bem ao formato atual.

O sentimento de que podiam ter maior trato no set list, no entanto, não tirou o brilho do show. Do repertório recente, eles tocaram números como “Nova Guanabara”, “Carrossel”, “Sexta Feira Carioca” e “América do Sul”, sempre contagiando a plateia. Ainda teve maravilhosas interpretações de "Boa Noite", de Djavan, e de “Tomorrow”, de Cassiano, música responsável pela volta da banda em 1999, quando o célebre compositor de “A Lua e Eu” chamou a então inoperante Black Rio para tocar com ele na TV. 

Banda Black Rio tocando o mestre Djavan


Sonoramente falando, não se escuta mais tanto o baixo imponente como era o de Jamil Joanes antigamente. E há de se entender, haja visto que nada se compara ao som tirado por aquele baixista, cheio e ondulante. No arranjo atual, então, William e sua turma decidem equilibrar mais os teclados, a percussão e os metais, além de dar maior peso à melodia de voz. E tudo bem, uma vez que a formação atual é esta – e também porque, convenhamos, é impossível reproduzir o estelar time Oberdan, Jamil, Cristóvão Bastos, Cláudio Stevenson, Luiz Carlos e Barrosinho tocando juntos novamente. Nessa configuração do grupo, além de William, um fera, destaque para o trio dos sopros – Feldeman (trombone), LG (trompete) e Marlon Cordeiro (sax) – e para o excelente percussionista Marcos César. 

Mais para o fim, rolou uma lindíssima versão de “Mistério da Raça”, de Luiz Melodia, tocada por uma Black Rio com a autoridade de quem formava originalmente a banda de Melodia no álbum “Nós”, de 1980. No encerramento, outra obra a qual somente eles mesmos poderiam tocar com a dignidade de quem também escreveu aquela história: o hit “Sossego”, de Tim Maia, gravada pelo “Síndico” com eles no delirante “Tim Maia Disco Club”, de 1978.

Sim: sonho realizado de ver a Black Rio! Esses verdadeiros criadores do brazillian jazz, os caras que representam no nome mais do que uma banda, mas um movimento! Uma instituição da música brasileira. A Black Rio não é sé esse patrimônio cultural, mas uma prova viva da resistência negra e de sua cultura. Em uma entrevista tempo atrás, William disse ter orgulho de seguir a profissão e a própria banda fundada pelo pai. “Me sinto um herói da música preta”, disse ele. Concordamos plenamente. 

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A brilhante e resistente Black Rio entre no palco


Tocando clássicos instrumentais do disco "Maria Fumaça"


Um trechinho de "“Leblon Via Vaz Lobo”, 
do repertório antigo


William Magalhães comanda seu timaço de músicos


Marquinho Osócio entra para animar ainda mais a festa


Muito groove samba-soul no Bourbon Country


A contagiante "Sossego", hit de Tim Maia, 
que encerrou o espetáculo


Momento de agradecer a acolhida
- e nós, o belo show da lendária Black Rio



texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Cátia de França convida Juliana Linhares - 32º Porto Alegre em Cena - Teatro Simões Lopes Neto - Multipalco Theatro São Pedro - Porto Alegre/RS (16/09/25)

 

Desde a primeira vez que escutei Cátia de França alimentava a vontade de vê-la ao vivo. Anos atrás, isso era um desejo apenas remoto. Esta paraibana genial, dona de composições ímpares e de um estilo que agregava à geração nordestina um toque feminino e original, já era uma figura cultuada entre apreciadores da música popular brasileira com seu mitológico álbum de estreia, "20 Palavras ao Redor do Sol", de 1979. Para vê-la, talvez nem na sua Paraíba, tendo em vista que a carreira, distante do estrelato, trouxe alguns hiatos nestes mais de 40 anos em que lançou apenas outros seis trabalhos de estúdio, sendo a maioria por selos independentes.

Porém, como a "Fênix", título da espetacular e emblemática canção que abre o show em ritmo de baião-rock, Cátia renasceu. Em 2024, lança o já clássico disco "No Rasto da Catarina" e ressurge para um novo público e para os antigos amantes de sua música. Indicado ao Grammy Latino e tornado cult imediatamente, o disco, somado ao título que ela recebe de patrimônio cultural da Paraíba, enfim, motivam a que a artista venha pela primeira vez ao Rio Grande do Sul, aproveitando a programação do 32º Porto Alegre em Cena. 

E toda e expectativa não foi frustrada, tanto para nós da plateia, que vimos um show vibrante, melodioso e cheio de empoderamento, quanto para a própria Cátia, impressionada com o calor do público do Sul. Com o repertório do excelente "No Rastro...", entremeado por vários números do seu célebre trabalho inaugural, a apresentação contou ainda com a animada participação da potiguara Juliana Linhares, uma ótima cantora e performer que somou sua voz a da ídola Cátia, bem como cantou também músicas de seu repertório.

Num quase lotado e bastante empolgado Teatro Simões Lopes Neto, o há pouco inaugurado novo espaço do Multipalco Theatro São Pedro, Cátia, uma entidade negra de 78 anos, trouxe emocionantes execuções das novas canções, como a ótima reggae-xote-rock "Bósnia", composta nos anos 90 mas muito atual em um mundo de guerras da Ucrânia e Gaza. Outra que tocou, principalmente as mulheres presentes, foi "Negritude", manifesto negro e feminista de uma representante tomada de "lugar de fala", pois mulher, preta, nordestina, idosa e LGBT. A letra diz: "Já não tenho medo/ Minha pele agora é minha lei/ Meu cabelo é diferente/ A vasta mistura me torna mais gente".

Igualmente belas, "Espelho de Oloxá", parceria com as jovens musicistas Regina Limeira e Khrystal Saraiva, a impactante "Em Resposta", o blues-rock "Academias e Lanchonetes" e a sertaneja "Conversando Com o Rio", num rico arranjo. Também das recentes, a caribenha "Malakuyawa", sobre a sabedoria da velhice, o gostoso samba-soul "Indecisão" e a balada "Meu Pensamento II" (que ficaria muito bem na voz de Alcione, #ficaadica).

Das clássicas, "20 Palavras Girando ao Redor do Sol", tema principal do disco de 1979, arrasou. Da mesma forma, a balada filosófica "Kukukaya", sobre a criação da vida, e o arrasador forró "Quem Vai Quem Vem". Sob a atmosfera da poesia de João Cabral de Melo Neto, a qual perfaz todo aquele brilhante disco, Cátia ainda traz ao público porto-alegrense as parcerias "Ensacado", dela com Sérgio Natureza, e a feminíssima "Djaniras", esta, com Xangai e Israel Semente.

Cátia canta um de seus clássicos com a irreverente 
e talentosa Juliana Linhares, "Quem Vai Quem Vem"

Juliana dá sua contribuição com energia no palco e uma sincera reverência a Cátia, uma de sua referências musicais junto com Amelinha e Elba Ramalho - esta última, por sinal, com quem guarda semelhanças no timbre vocal. Além do xote tangueado "Tereco e Mariola", duas outras de seu repertório sacudiram o público em especial: o maracatu "Bombinha" e o cativante xote "Balanceiro", que teve seu refrão cantado pela galera: "Eu não posso mudar o mundo/ Mas eu balanço/ Eu balanço o mundo".

Para finalizar, Cátia e Juliana reservaram duas antigas: o irresistível baião "O Bonde" ("Óia lá vai o bonde") e, no bis, outra clássica: "Coito das Araras", com direito a Cátia tocando triângulo. Aí, a plateia já estava de pé antes mesmo de aplaudi-la por minutos.

A vontade de assistir ao vivo Cátia de França foi totalmente satisfeita. O que só veio a comprovar outra coisa que senti na música dela também desde a primeira vez que ouvi: que ela faz um dos sons mais modernos que a música brasileira já inventou. Nordestina, brasileira e universal. E resistente. Afinal, como a Fênix, Cátia renasceu das cinzas para "desassossego dos seus inimigos" e deleite de nós fãs.

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Começando o show com Cátia e sua competente banda

Uma entidade negra no palco

Cátia e banda somados agora à voz de Juliana Linhares

A espetacular "Coito das Araras", que encerrou brilhantemente o show de Cátia de França


Encerrando o belíssimo primeiro show da musicista paraibana no RS



texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Grupo Corpo - "Parabelo" e "Piracema" - Teatro do SESI - Porto Alegre (13/09/25)

 

“Toda vez que vejo o Grupo Corpo, fico patriota.”
Luis Fernando Verissimo

Neste Brasil de mil incertezas, uma certeza há: o Grupo Corpo. Presenciar seus espetáculos, o que fazemos há mais de 30 anos, é estar de fronte ao que há de mais profundo, belo, filosófico e artístico deste país continental e rico culturalmente. Eles são dotados de uma assinatura própria, que se expressa em seus movimentos característicos de saltos, giros, quedas, rebolados, contorcionismos e desconjuntamentos dos mais diversos, preenchendo vazios e espaços com fúria e doçura. Fazia anos, desde a pandemia, que não os víamos, uma vez que não pudemos assistir a última montagem, “Primavera”, da dupla Palavra Cantada, em 2021. A última estreia que estivemos foi a de “Gil”, homenagem a e trilha de Gilberto Gil, há 6 anos. 

A expectativa, sempre grande, desta vez, então, era maior. Até porque “Piracema”, o novo balé, marca os 50 anos da companhia de dança mineira, que começou sua sina de unir dança e música brasileira ainda nos anos 70 elegendo “Maria Maria” de Milton Nascimento como passo inicial. Diante disso tudo, eles dificilmente guardariam algo menor para um momento tão significativo – embora, quando dos 40 anos do grupo, a peça “Dança Sinfônica”, com trilha de Marco Antônio Guimarães, tenha deixado um pouco a desejar. O que nos esperaria desta vez?

Consideramos um bom prenúncio do que viria com a primeira parte do programa. Como o Corpo sempre faz, trazendo um espetáculo antigo antecedendo a estreia, revimos pela quarta vez “Parabelo”, a arrebatadora montagem de 1996 com a genial trilha sonora de Tom Zé e José Miguel Wisnik e coreografia de Paulo Pederneiras. O espetáculo é o que talvez melhor defina o trabalho do Grupo Corpo entre os mais de 20 nessa linha que já criaram – e todos da mais alta qualidade. Símbolo da criação artística brasileira contemporânea, a peça é aclamada por onde passa, tanto que foi apresentada ao mundo na abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016. Colorido, popular e vibrante, mas também vanguardista e ousado, “Parabelo” é daquelas obras de arte que dão orgulho a um brasileiro por pertencer a esta mesma rica terra do Grupo Corpo chamada Brasil. 

O emocionante número final de "Parabelo", 
montagem símbolo do Grupo Corpo

Por “Parabelo” na parte inicial do programa se torna quase um problema para o Corpo, visto que é tão apoteótico, que deixa uma grande responsabilidade para o que vem seguir. Foi o que aconteceu com o já citado “Dança Sinfônica”, em 2016, que perde de longe em trilha e coreografia, ou quando antecedeu “Triz”, com trilha de Lenine e Bruno Giorgi, de 2013, uma boa montagem, mas que quase é solapada também pela beleza impactante de “Parabelo”.

Mas a companhia de Paulo e Rodrigo Pederneiras sabe o tamanho que tem. Com trilha de Clarisse Assad e coreografia de Rodrigo Pederneiras e Cassi Abranches, “Piracema” é, sim, à altura do que o Grupo Corpo representa. Mas não se trata de um trabalho fácil. Sua assimilação se dá aos poucos, ou melhor, no próprio desenrolar do espetáculo. Com um começo quase atordoante, com intensas percussões de diversas tonalidades e texturas, a coreografia se mostra vária, indeterminada, de difícil apreensão. A iluminação de Paulo e Gabriel Pederneiras oscila entre dureza e vivacidade, tendo como cenário um extenso painel escamado composto por milhares de latas de sardinha no fundo do palco. O piano preparado da música “cabeça” de Clarisse intensifica a atmosfera tribal, que aterra o espectador.

Cena de "Piracema": complexidade e beleza

Coreografia ousada e sintética para celebrar os 50 anos do Corpo

Depois, no entanto, a coreografia vai ganhando maior “organização”, por assim dizer, e se começa a compreender melhor a narrativa, que nada mais é do que uma metáfora da criação e da reinvenção por meio da ideia da tensão gerada pelo fenômeno natural da “piracema”, aquela mágica jornada dos peixes contra a correnteza para encontrar seu local de desova. A música passa pelo avant-garde à moda de violão, tendo ainda momentos de música clássica e da mais moderna música eletrônica. A atmosfera indígena que Pederneiras/Clarisse imprimem atravessa, no entanto, toda a peça, desde o som do mar, que a abre e a encerra, até os próprios beats de programação eletrônica, uma espécie de “nativofuturismo”. Não é comum se fazer referência a som “tribal” quando se fala em techno, drum & bass, acid house ou trance, subgêneros da música eletrônica? Pois, então. Na cosmologia dos povos originários, representantes da natureza primitiva, está também a criação do mundo através dos sons e da dança. 

“Piracema” mostra uma companhia madura com a sua obra e legado pela via da síntese, a qual não haveria de ser necessariamente palatável haja vista toda a complexidade cênica e conceitual que o Corpo construiu nesse meio século de palco. Quem já foi de Caetano Veloso a Ernesto Lecuona, de Villa-Lobos a Metá Metá, de Samuel Rosa a Chopin, de Uakti a Bruno Kiefer, de Philip Glass a Wagner Tiso, não haveria de se contentar com pouca densidade artística. Mais do que isso, no entanto, é constatar que esse grau de maturidade em arte é daqui, do Brasil. Um patrimônio. Por isso, é sempre uma surpresa assistir o Grupo Corpo, e, mais ainda, uma satisfação patriótica.


Daniel Rodrigues

sábado, 16 de agosto de 2025

Metá Metá e Jards Macalé - Salão de Atos da Reitoria-UFRGS - Porto Alegre/RS (06/08/2025)

 

A Metá Metá é a melhor banda do Brasil pós-Chico Science & Nação Zumbi. Isso quer dizer muito, haja visto o terreno fértil para criatividade que a música brasileira pisa. Porém, nada bate o trio Kiko Dinucci (violão), Thiago França (sax e flauta) e Juçara Marçal (voz), que fez uma apresentação histórica num lotado Salão de Atos da Reitoria-UFRGS. O estilo do grupo, interseção entre música brasileira, africana, latina, free jazz, punk rock e avant-garde, desafia qualquer classificação. E se a Metá Metá é de fato a grande banda brasileira, imagina ela adicionada do talento inigualável de Jards Macalé? É para desafinar o coro dos contentes!

Com o trio começando no palco, eles mandaram algumas poucas músicas do repertório deles, porém muito bem selecionadas. Começando com a épica “Vale do Jucá”, canção que simplesmente inaugura o cancioneiro da banda no disco de estreia de 2010. Sobre negritude e força ancestral (“Uma palavra quase sem sentido/ Um tapa no pé do ouvido/ Todos escutaram/ Um grito mudo perguntando aonde/ Nossa lembrança se esconde/ Meus avós gritaram”). Que música! Na sequência, uma das melhores do repertório da Metá Metá: a possante “São Jorge”, que evocou o aguerrido Ogum para dentro do teatro na voz versátil e personalíssima de Juçara: “Guerreio é no lombo do meu cavalo”

Mais quatro do repertório antes de chamarem palco Jards: “Trovoa”, versão para a música do “Mulher Negra” Maurício Pereira, uma execução cheia de improvisos e de difícil canto, visto que de letra extensa e repleta de variações; o heavy-nagô “Atotô” (“Rolei na terra/ Abença, atotô/ Seu xarará/ A ferida secou/ A Flor do velho/ Ô me curou”), do EP de 2015; e “Cobra Rasteira”, outra das grandes da Metá Metá, esta do fantástico álbum “Metal Metal”, de 2013 (“Estrada, caminho torto/ Me perco pra encontrar/ Abrindo talho na vida/ Até que eu possa passar”, diz a letra).

Juçara Marçal e e Metá Metá cantam "Trovoa" 
no Salão de Atos da UFRGS

Antes ainda de Jards entrar, a Metá Metá anuncia-o tocando “Pano pra Manga”, esse samba do clássico “Let’s Play That”, de Jards, de 1983. E foi justamente esta outra clássica, parceria de Macao com Torquato Neto, lá de 1972, que os quatro se juntaram para explodir o teatro da UFRGS. Dois violões esmerilhando, Jards e Juçara atacando todas as notas aos vocais, o sax de França corroendo a atmosfera. Os deuses da atonalidade vibraram no Olimpo! Logo em seguida, outra conhecida do repertório do veterano músico: “Negra Melodia”, dele e de Wally Salomão, em mais um show de sintonia e musicalidade. Tanta química, que é de se pensar: quem sabe Jards não se torna um quarto Metá Metá ou estes formem a banda do primeiro em algum show ou projeto? 

Cabeça que fez a ligação entre Guerra-Peixe e João Gilberto a John Cage – com quem, aliás, jogou xadrez –, Jards é artífice de uma linguagem que, calcada em seu violão crispado, hibridiza lamento, rock, sussurro, guturalidade, blues e samba-canção. Sem acompanhamento, ele manda ver em duas: a linda e sentimental “Anjo Exterminado”, outra com Wally, e, para delírio do público gaúcho, a lupiciniana “Dona Divergência”, resgatada do seu disco “4 Batutas e um 1 Coringa”, de 1987, onde faz a ponte entre os sambistas clássicos e vanguarda – coisa que, aliás, somente uma mente como a dele para concatenar. Teve ainda, num dos grandes momentos do show, o duo com o sax de França para a icônica “Vapor Barato” (“Sim, eu estou tão cansado/ Mas não pra dizer/ Que eu não acredito mais em você”), música que atinge diversas camadas de significado, desde o anseio de liberdade na Ditadura Militar, quando na voz de Gal Costa, nos anos 70, a cinematográfica interpretação de Fernanda Torres no filme “Terra Estrangeira”, ao hit radiofônico d’O Rappa, nos anos 90. Com Jards, apoiado pela Metá Metá, sua própria obra ganha todo o tamanho que merece.

Das composições mais recentes, “Coração Bifurcado”, na voz e de autoria de Kiko e Jards e a qual dá nome ao disco deste segundo, de 2023, foi outra presença no setlist, assim como mais uma deles (esta, também com Thomas Harres), “Vampiro de Copacabana”, a majestosa homenagem a Torquato escrita pelos três em 2019, abertura do excelente álbum “Besta Fera”. Mas voltando ao passado de Jards, também teve o samba-canção “Boneca Semiótica” (de “Aprender a Nadar”, de 1974: “Você venceu com a lógica/ Digital e analógica/ Você não passa da programadora/ De repertório redundante da minha dor”), com mais uma brilhante execução do agora quarteto. Nesta linha, puxaram também “Farinha do Desprezo”, igualmente incríveis nos violões vanguardistas de Kiko e Jards, somados à arrojada interpretação dos vocais. 

Para finalizar, depois de todos estes vários momentos de êxtase, ainda teve uma incrível (mas incrível, mesmo!) “Soluços”, a pioneira gravação de Jards em seu compacto de 1970. Juçara, uma das intérpretes mais expressivas da cena musical brasileira contemporânea, traz no canto ancestralidade e vigor, não restringindo o canto à perfeição melódica ou ao rigor técnico. Ela apura “Soluços”, enquanto o violão afro-percussivo de Kiko e o abrasivo sax de França compõem, junto com Jards e seu violão ácido, um final épico para a apresentação. No bis, cantada por todos, retrazem o samba-dark de Nelson Cavaquinho “Juízo Final”. Sob gritos de “Sem Anistia!” na semana em que havia sido decretada a prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro, a o clássico samba caiu como uma luva com seus versos: “Do mal/ será queimada a semente/ O amor/ Será eterno novamente”. Sim: o amor, a depender de Macao e Metá Metá, será eterno novamente.


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O maravilhoso trio Metá Matá: a melhor banda do Brasil da atualidade

Jards sobe ao palco para formar o quarteto com a Metá Metá

Jards e Thiago França tocando "Vapor Barato": grande momento do show


"Soluços", clássica de Jards para encerrar o show apoteoticamente


Público que lotou o Salão de Atos aplaude de pé



texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Daniel Rodrigues e Youtube

terça-feira, 15 de julho de 2025

Guinga e Lívia Nestrovski - show “Ramo de Delírios” - Bona Casa de Música - São Paulo/SP (18/06/2025)

 

“Um cara como esse só aparece a cada cem anos”.
Hermeto Pascoal, sobre Guinga

"Tranquilamente, uma das maiores vozes de sua geração”.
Arrigo Barnabé, sobre Lívia Nestrovski

A arte, como a vida, é ao mesmo tempo simples e complexa. Poderia enumerar diversas obras-de-arte ao longo da história que transitam entre estes dois polos, seja na literatura, nas artes visuais, no cinema, na dança ou na música. Fato é que, quando a gente se depara com esse aparente inconciliável e o presencia sendo realizado, sendo possível, sentimos que estamos diante de uma rara sublimação. De que estamos vivendo.

Numa aconchegante Bona Casa de Música, um improvável porão encravado numa zona residencial de São Paulo, não é exagero dizer que o show “Ramo de Delírios”, de Guinga e Lívia Nestrovski, aparentemente simples (violão e duas vozes, quando não apenas uma), palco com iluminação básica, sem aparatos de efeitos, foi, sim, um momento de encontro com a verdadeira arte. Assim como não é exagero nenhum dizer também que foi um dos melhores shows que já assisti, dessas belas surpresas que a arte (a vida) nos guarda.

Montado a partir de um repertório especialmente selecionado pela própria Lívia no cancioneiro de Guinga, a dupla não executou apenas: eles entregaram (como está na moda dizer) um espetáculo ao mesmo tempo vindo do coração de cada um, mas também do altíssimo nível profissional de ambos. Guinga dispensa apresentações: um dos gênios da MPB, violonista virtuoso, compositor raro, harmonista como poucos na música mundial. E ainda um excelente intérprete/cantor de suas músicas, assim como um letrista, que não deixa a dever em nada para seus clássicos parceiros Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro que, claro, foram invocados durante o show.

Lívia e Guinga: simplicidade e grandiosidade no elegante palco do Bona

Já Lívia é daquelas cantoras completas. Sem medo de repetir o que Guinga falou durante o show: Lívia está na prateleira das grandes cantoras do Brasil, assim como Elis Regina. A comparação, que num primeiro momento pode parecer exagerada, vai se confirmando à medida que cada música é executada pelos dois: ele, ao violão e/ou voz de apoio; ela, em interpretações arrasadoras, de tirar o fôlego de qualquer um que a escute. Afinação exímia, timbre bonito, trânsito entre estilos, alcance de alturas pouco comuns e, o principal: ela é integrada à música assim como a música é integrada a ela. São, ambas, música e cantora, a mesma coisa. Como Elis.

Provas disso? O set-list inteiro. O começo não poderia ser mais emblemático com “Delírio Carioca”, parceria Guinga/Aldir que dá nome ao primeiro e temporão disco do compositor, dentista por mais de 30 anos e que somente no início dos anos 90 fez-nos o favor de voltar-se somente para a música. “No Rio: mar/ Ouço Newton assoviar/ Um Gershwin Clara Nunes/ Que faz vibrar feito flauta/ Os túneis”, dizem os versos iniciais da canção. O delírio é todo nosso no duo Guinga/Lívia, que transmitem ao público uma sintonia musical e espiritual, que só mesmo a arte maior pode proporcionar.

“Paulistana Sabiá”, que na versão original Guinga divide vocais com Mônica Salmaso, não perde em nada com Lívia. Ela, como diz Zé Miguel Wisnik, “que dá triplos saltos carpados na voz sem perder a naturalidade entoativa”. Mas o próprio Guinga impressiona com seu vocal marcadamente rouco numa melodia complexa, dessas difíceis de cantar. Aliás, essa característica, embora seja uma constante na obra de Guinga, não é problema nenhum para Lívia, como ficou claro noutras duas incríveis, misteriosas, dramáticas, delirantes: “Tangará”, em que os dois criam um verdadeiro encanto/canto em duo, e “Suçuarana”, parceria com PC Pinheiro (“Ela se enrodilha ao pé da cama/ Até parece a taturana/ Que quando se toca, queima e dana a arder/ Morde minha pele com a gana/ Que nem abelha africana”).

Trechinho da incrível "Tangará", 
letra e música de Guinga

“Neblinas e Flâmulas”, de Guinga e Aldir e originalmente feita para Leila Pinheiro, em 1996, ganha ainda mais intensidade na voz de Lívia. Que lindos versos! “Vivemos de olhares em todos os lugares/ e a gentileza em nós nos faz heróis covardes”. Deles também, outro destaque do repertório e da performance de Lívia, que usa toda a sensualidade/sexualidade feminina para interpretar a saborosamente abusada “O Coco do Coco”, rara canção sobre o prazer (e o direito ao prazer) sexual da mulher: “Moça donzela não arrenega um bom coco/ Nem a mãe dela, nem as tia, nem a madrinha/ Num coco tô com quem faz muito e acha pouco/ Em rala-rala é que se educa a molhadinha”. Ainda dos dois parceiros de composição, mais uma preciosidade: “Nem Cais Nem Barco” (“O meu amor não é o cais/ Não é o barco/ É o arco da espuma/ Que, desfeito, eu sou”), que Leny Andrade canta para Guinga em 1991. Lívia, no entanto, não deixa nada a desejar nessa melodia de estrutura inventiva e densa, que exige da intérprete.

Mas o que é o desafio de cantar Leny ou Leila para quem não teme encarar Elis? É o que Lívia faz ao trazer “Bolero de Satã” com o acompanhamento do próprio autor, canção que a Pimentinha gravou em 1979, no disco “Elis, Essa Mulher”, em duo com Cauby Peixoto. Lívia, com segurança, pega sozinha e sem precisar do apoio vocal do parceiro de palco. Única nova canção no repertório, a tocante “Rua do Pecado” – que Guinga escreveu para a mãe já falecida, uma mulher sofrida que teve que frustrar o desejo de ser cantora por causa da família e da sociedade machista – emocionou o público, principalmente após o próprio Guinga, conversador e descomplicado, revelar os sentimentos muito pessoais que motivaram a canção.

A emocionante "Rua do Pecado", 
confissão de Guinga sobre sua mãe

No encerramento, duas parcerias de Guinga com o jovem compositor carioca Thiago Amud, em especial a estonteante “Contenda”, uma “capoeira”, como definiu Guinga, que faz os sons dançaram ao gingado místico e bravio dos escravos. “Sou a dobra de mim sobre mim mesmo/ Nesse afã de ganhar de quem me ganha/ Tento andar no meu passo e vou a esmo/ Tento pegar meu pulso e ele me apanha”. Muita, mas muita poesia em forma de melodia e canto! 

A sensação de sublimação, quando há esse misterioso encontro da simplicidade com a grandiosidade, ainda perdura nos ouvidos. Ouvir Guinga pela primeira vez, e justamente ao lado desta jovem cantora tão talentosa que é Lívia, foi um dos acontecimentos mais especiais que poderiam acontecer na nossa curta temporada paulistana. Vê-los no palco nos faz acreditar que existe arte, que existe beleza, que é possível viver, mas viver MESMO, sendo artista. Ouvir Lívia cantando faz com que, facilmente, se relativize cantoras celebradas da MPB atual como Céu, Roberta da Matta ou Marina Sena, muito mais midiáticas e MUITO menos íntegras como artistas. E Guinga... bom: Guinga, como falei de início, dispensa superlativos. Ele já o é. Como diz o título de outra música dele próprio com Aldir (aliás, mais uma especial do show), a arte, como a vida, é feita de “Simples e Absurdo”. Foi, sim, absurdo o que vimos. Simples – e complexo – assim.


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A dupla começando o show


Lívia e Guinga em total sintonia musical e espiritual

"Simples e Absurdo". Guinga e Aldir. Guinga e Lívia


Guinga ao violão. Parem tudo


Lívia solta a voz


Encerrando o show. Estado de graça


Lívia e Guinga se despedem da plateia


E nós curtindo essa noite especial em Sampa




texto: Daniel Rodrigues
vídeos e fotos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa