“Quem
se lembra de Suzanne Vega apenas pelo hit mundial ‘Luka’
está perdendo a chance de conhecer
uma das artistas mais
inteligentes da música do nosso tempo.
Ela vem de um passado folk,
mas a partir do trabalho com o produtor Mitchell Froom
lançou alguns
dos melhores discos da carreira.
Este álbum traz Suzanne Vega num
estado encantado.
Falando de coisas que acontecem à sua volta com um
olhar delicado,
a compositora e violonista nos transporta para perto
dela.
O disco é permeado de sonoridades instigantes.
Doses certeiras
de dúvida existencial,
sensualidade, paixão e alguns mistérios.”
Fernanda Takai
Na
minha adolescência, eu e meus amigos sempre tivemos gostos musicais
parecidos. Éramos praticamente unânimes quanto a The Cure e The Smiths, por exemplo. Mas todos tinham suas paixões, aqueles pelos
quais nutriam um sentimento especial. Não que se deixasse de gostar
também em certa medida do que os outros preferiam; mas aquele era
“queridinho” de cada um. Tinha quem fosse fã de Sting, de Depeche Mode, de New Order, de Genesis. A minha “queridinha” era
Suzanne Vega. Sempre me encantaram a elegância, a limpidez da voz e
o lirismo das músicas dessa compositora, violonista, poeta e cantora
surgida nos anos 80 com seu estilo folk-pop arrojado que
remete a Leonard Cohen, Lou Reed, Bob Dylan e a bossa nova –
especialmente Astrud Gilberto. Percebi que, desde o início, ela
trilhara por um caminho de invariavelmente trabalhos bem elaborados,
que, por consequência, lhe renderam grandes sucessos, como “Tom’s
Diner”, “Book of Dreams”, “Blood Makes Noise” e,
principalmente, o belo e melancólico megahit “Luka”. A
música, um dos melhores exemplos de perfect pop de toda a
história do rock, encheu seus bolsos e a deixou mundialmente
conhecida.
Mesmo
com o estrelato, Suzanne Veja nunca quis ser apenas “a cantora de
Luka”. Com o inseparável violão, ela construiu uma carreira
sólida e em crescente evolução, primando pelas letras literárias,
harmonias e arranjos sofisticados e pungentes, batida do violão
marcante, influências da MPB, dos sons étnicos e até da vanguarda
(haja vista as parcerias com Philip Glass). Depois do aclamado álbum
de estreia (produzido por Lenny Kaye e Steve Addabbo, de 1985), teve
como parceiro e arranjador o competente Anton Sanko, com quem cunhou
“Solitude Standing”, de 1987, e “Days of Open Hand”, de 1990.
Quis o destino, entretanto, que, em 1991, ela conhecesse o também
versátil Mitchell Froom – que trabalhara com Elvis Costello no
passado. Não só trocou de parceiro na música como o assumiu na
vida, casando-se com Froom e tendo como fruto (até se separarem, em
1998) uma filha, Ruby, e dois excelentes discos: o “febril” “99.9
F°”, de 1992; e este, o primoroso “Nine Objetcs of Desire”, de
1996.
Auge
da musicalidade da artista, auge da feminilidade da mulher. Mãe pela
primeira vez e próxima de completar 40 anos, Suzanne realça a sua
beleza alva e doce de bailarina profissional (é graduada em Dança
Moderna desde os 18) e compõem um disco arrasador em que vida
artística e pessoal se homogeneízam. São 12 faixas em que Miss.
Suzanne aborda temas como sexo, maternidade, prazer, orgasmo,
castidade, culpa. Elementos do imaginário feminino e íntimo, do
erotismo à religião, estão expostos, na epiderme. Tudo com uma
sensibilidade ímpar e num invólucro perfeito. Desde a capa, em que
Suzanne aparece com uma maçã, a picardia está presente. Mas do
jeito dela, sob sua ótica (tanto que a maçã não é eroticamente
vermelha, mas exoticamente verde). Na arquitetura sonora, Froom
estabelece um diálogo igualmente inteligente entre sons eletrônicos,
instrumentos de base e timbres, modulados pela mesa de som com
tamanha adequação que somente alguém muito próximo à artista
como ele poderia realizar.
Uma
batida tribal dá os primeiros acordes, quando entra um brilhante
riff de guitarra heavy-country. É “Birth-Day”,
faixa inicial que relata, numa poesia forte, o momento do parto (“Uma
coisa eu sei/ esta dor vai passar/ Atravesso tudo o que me resta
sentir/ Eu espero para conhecer o meu amor se tornando real”).
No refrão, o nascimento; e os sons não se fazem cândidos, mas,
sim, estouram saborosamente ruidosos. Como diria Tom Zé: um rebento
como um “orgasmo invertido”.
Em
“Headshots”, a sensação de sensibilidade à flor da pele é
evidente. Desde a bateria e o baixo retumbantes até à voz e a
respiração de Suzanne, a qual é ouvida no mesmo patamar sonoro que
os enigmáticos samples de cítara, do gongo oriental e do
sensual assovio. Exímia contadora de histórias, na tradição dos
bons trovadores folk-country norte-americanos, Suzanne fala
sobre uma mulher que vê estampado num anúncio de “procura-se” o
rosto de um ex-amor, que agora parece triste e fatalmente distante
dela: “A placa diz ‘Headshots’/ É tudo que eu vejo/ Um
menino torna-se uma imagem/ De culpa e simpatia/ E então eu penso em
você/ Em memória/ Dos dias em que estávamos juntos/ E eu sabia que
você me amava/ Essa era a diferença/ Daquilo que vemos/ Mas isso é
história.../ Ah...”.
Enteada
de um escritor porto-riquenho, Ed Vega (com quem aprendera o gosto
pela poesia e literatura), Suzanne cresceu, por causa dele, na região
latina de Manhattan, Nova York. Por isso, sua veia de música
brasileira não só se justifica como é extremamente presente.
“Caramel”, hit do disco, talvez seja o segundo melhor
exemplo disso em seu cancioneiro: uma linda bossa nova com todos os
elementos característicos da batida de João Gilberto e a
complexidade harmônica de Tom Jobim. A letra, sobre um amor
impossível, carrega em referências sensoriais ao paladar
(“caramelo”, “canela”, “pele”). E ela diz: “Então,
adeus/ doce apetite/ Nem uma única mordida/ Poderia satisfazer...”.
A voz de Suzanne é suave, sugerindo um sussurro de dor e
prazer. O refrão é ainda mais belo com a característica pronúncia
perfeita de seu canto. E o charme do solo de clarinete, então!? Um
show.
Digo
que “Caramel” é a “segunda” grande bossa de Suzanne Vega
porque a melhor é “Thin Man”. Tocado com instrumentos de rock,
mas em um inconfundível ritmo de samba, tem uma das mais belas
melodias de voz criadas pela compositora. O violão, centro harmônico
da melodia, desenha a canção como fazem todos os bons “filhos de
João”. Sensual e cadenciada, põe a personagem no universo de um
homem de modos finos e misterioso. “Ele não é meu amigo, mas
ele está comigo/ E ele me promete uma paz que eu nunca conheci/ Eu
não posso desistir, não, eu tenho que resistir/ Mas eu podia mesmo
ser a única a resistir àquele beijo tão verdadeiro...”
A
capacidade de incutir toques étnicos ao folk (como já
procedera claramente em "Room off the Street", “In the
Eye” e “As a Child”, de discos anteriores) faz com que Suzanne
Vega não restrinja as influências apenas à música brasileira ou
latina, mas também aos sons árabes e orientais. “Stockings”,
sobre uma moça que se atrai pela voluptuosa amiga (“Você sabe
onde a amizade termina e paixão se inicia?/ É entre o que liga suas
meias-calças à sua pele...”), é exatamente isso: uma linha
de violão de natureza country, porém simplificado, direto ao
ponto, quase um riff de guitarra. E acompanhando o canto limpo
dela a percussão de tablas, isso sem falar nas cordas, que Froom
escreve em notas bem próprias das danças arábicas.
“Casual
Match”, pouco variável e mais fraca do disco, nem por isso chega a
desnivelar o repertório, pois na sequência vem a outra “música
de trabalho” de “Nine Objects...”: “No Cheap Thrill”,
pop-rock infalível como Suzanne sabe fazer com o pé nas
costas; e “Lolita”, uma rumba estilizada que, mais uma vez
literária, Suzanne referencia à imagem da clássica ninfeta
nabukoviana, revelando a farsa deste estereótipo (“Ei, garota/
Não seja como um cão toda a sua vida/ Não peça/ Algumas poucos
migalhas de afeto/ Não tente/ Para ser mulher de alguém/ Tão
jovem/ Você precisa de uma palavra de proteção...”).
A
maternidade, em forma de “descobrimento” de si mesma e da nova
vida que entra em seu universo, volta na emocionante “World Before
Columbus”. Mais do que uma declaração de amor à filha (“Se
o seu amor fosse tirado de mim/ Cada cor seria preto e branco/ Seria
tão monótono como o mundo antes de Colombo...”), Suzanne faz
uma crítica ao materialismo do mundo moderno e uma ode ao verdadeiro
afeto, engendrando um deslocamento temporal e simbólico típico de
escritores como ela (“Aqueles homens que têm cobiça por terra/
E por riquezas estranhas e novas/ Quem ama essas bugigangas de
desejo/ Oh, eles nunca vão ter você”).
“Honeymoon
Suite” resgata a Suzanne Vega original, a trovadora de violão em
punho, num country voz-viola tão germinal que parece ter sido
extraído de um filme de faroeste. Enigmática, imaginativa. E para
fechar todo esse clima de volúpia, um... jazz! Sim, um jazz
swing marcado no piano e cheio de simbologias à morte, à
passagem do tempo e ao prazer carnal: “Se você me perguntar
como faz para chegar ao/ meu humilde mapa/ Eu sei por que porta você
pode entrar/ Mostre-me sua fraqueza/ E o tempo está
queimando, queimando, queimando/ Queima até o fim”. Um final
digno desse caldeirão de ideias e sentimentos.
(Mas
eu falei “final”? Ops!)
Ainda
não é o fim! Suzanne Vega ainda nos revela, depois de um longo
silêncio após o término da 11ª faixa – como aquele presente
picante escondido meio ao alcance para que possa ser revelado com
surpresa –, “My Favorite Plum”, uma valsa sexy conduzida
na guitarra do craque Tchad Blake em que reveem-se o gozo e o prazer
que entra pela boca, tendo a delicada e saborosa fruta vermelha como
metáfora-chave.
Um
disco que, desde que conheci se tornou um dos favoritos da discoteca.
Já havia me impressionado bastante com “99.9F°”, quando a
parceria com o então marido começou. Mas este representa na
carreira dela uma consolidação de várias coisas: musicalidade,
personalidade e, principalmente, feminilidade. È tão forte e
sincero que o deleite de escutar suas canções é quase carnal:
quando se está numa faixa, já se sabe a delícia que será quando
chegar à seguinte. Deseja-se ouvir cada uma delas. E que cheguem, e
que se aproveite enquanto estão tocando, e quando terminam, e quando
começa outra, e quando virá a próxima, nossa!... Hum, acho melhor
parar por aqui, porque 12 vezes é demais.
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FAIXAS:
1. Birth-Day (Love Made Real) - 3:38
2.
Headshots (Suzanne Vega/Mitchell Froom) - 3:08
3.
Caramel - 2:53
4.
Stockings - 3:30
5.
Casual Match (Vega/Froom) - 3:10
6.
Thin Man - 3:39
7.
No Cheap Thrill - 3:10
8.
World Before Columbus - 3:26
9.
Lolita (Vega/Froom) - 3:33
10.
Honeymoon Suite - 2:56
11.
Tombstone - 3:07
12.
My Favorite Plum - 2:47
todas as composições de Suzanne Vega, exceto indicadas
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OUÇA
O DISCO:
por Daniel Rodrigues
Fiona Apple - Tidal (1996)
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