“[‘Darkness on the Edge of Town’]
parece que é o limiar de um novo período
em que nós vamos voltar a ter uma ‘vida
no limite
entre sonhos realizados e perdidos.’
Ele traz novamente a pergunta
que o rock & roll sempre levanta
em momentos epifânicos:
Você acredita em
mágica?”
Dave Marsch, em 1978
Meu disco favorito de Bruce
Springsteen é “Darkness on the Edge of
Town”. Demorei muito a comprar este LP. O disco saiu em 1978 e eu
comprei numa loja de discos usados, lá no viaduto Otávio Rocha, em Porto Alegre
(deve ter sido na lendária Flora Viaduto), depois de muito procurar um que
tivesse as letras, isso, em 1980. Furei o LP e o meu amigo Ricardo Silveira
comprou pra mim o CD numa de suas viagens aos Estados Unidos, lá por 1995.
Vamos começar por “Badlands”, que ele tocou no Rio de Janeiro ano
passado quando esteve no Rock ‘n’ Rio. Um rock ao estilo Springsteen, com
aquele sabor de anos 50. Com muito piano e a guitarra de Bruce lá na frente na
mixagem, ele conta a história de um cara intenso que “não dá importância/ àquelas cenas sempre encenadas/ eu não dou
importância/ àquelas coisas que ficam no meio do caminho/ Querida, eu quero o
coração, eu quero a alma/ Eu quero controle agora/ falar sobre um sonho/ tentar
torná-lo realidade/ Você acorda à noite/ com um medo tão real/ Gasta sua vida
esperando/ por um momento que não chega/ bem, não perca tempo esperando”.
No refrão, Bruce faz sua profissão de fé, dizendo que “terras arrasadas/ você tem de viver todos os dias/ deixe os corações
partidos quietos/ como preço que tem de pagar/ vamos continuar a exigir/ até
que estas terras arrasadas nos tratem bem”. Pra começar o disco, nada
melhor do que este rock com solo de sax do falecido Clarence Clemons.
“Adam Raised a Cain” tem um jeito blues, com a guitarra de Bruce
aparecendo já nos primeiros momentos. Esta canção conta metaforicamente a
conturbada relação do compositor com seu pai, um cara muito estranho e que não
se comunicava bem com seu filho. Tudo começa “no verão em que fui batizado/ meu pai carregou-me do seu lado/ Enquanto
me colocavam na água/ Ele disse como eu chorei/ Somos prisioneiros do amor, o
amor em correntes/ Ele estava parado na porta eu estava parado na chuva/ com o
mesmo sangue quente correndo em nossas veias/ Adão criou um Caim”. Como a
história tem um lado muito pessoal, Bruce canta como se fosse a última canção
de sua vida. E continua dizendo que: “Na
Bíblia Caim matou Abel e à leste do Eden foi segregado/ Você nasce nesta vida
pagando pelos pecados que alguém cometeu no passado/ Papai trabalhou sua vida
inteira por nada além de dor/ Agora ele caminha por estes quartos vazios
procurando alguém pra culpar/ Você herda os pecados, você herda as chamas/ Adão
criou um Caim”. A batida constante de Max Weinberg mantém o clima tenso
desta, que é uma das principais canções da carreira de Bruce.
Na sequência, uma das road-songs
de BS: “Something in the Night”. Uma balada desesperada onde a combinação de
piano e órgão, divididos por Roy Bittan e Danny Federici, dá o tom. O narrador
está andando a esmo de carro por Kingsley, liga o rádio para não ter de pensar
em nada a não ser em sua garota que ele ama no chão, à procura de um momento em
que o mundo faça sentido. Como em toda a sua carreira, Bruce dá um toque de
desesperança nesta dupla. “Quando
encontramos as coisas que amamos/ Elas estão amassadas e jogadas na poeira/
Tentamos juntar os pedaços/ E fugir sem nos machucarmos/ Mas eles nos alcançam
na fronteira/ E queimam nossos carros numa última luta/ E nos deixam correndo
queimados e cegos/ procurando algo na noite”. A velha história da procura
de alguma coisa que não se sabe bem o que é. O que importa é a busca.
“Candy's Room” inicia com as vassourinhas de Weinberg fazendo uma cama
para o piano de Bittan, enquanto Bruce recita a letra, dizendo: “No quarto de Candy tem retratos de seus
heróis nas paredes/ mas para chegar no quarto de Candy/ Você tem de passar pela
escuridão do hall de Candy/ Estranhos da cidade ligam para o número do meu
amor/ E trazem brinquedos para ela/ Quando eu bato na porta, ela sorri bonito/
Ela sabe que eu quero ser o garoto de Candy”. Durante toda a canção, o
garoto quer demonstrar que não adianta enchê-la de presentes, pois ela pertence
a ele. “Ela tem roupas bonitas, anéis de diamante/
Ela tem homens que lhe dão tudo o que ela quiser/ Mas eles não veem/ que tudo o
que ela quer sou eu/ Oh, e eu a quero muito/ Nunca vou deixar ela ir embora não,
não, não / Ela sabe que eu darei tudo o que tiver de dar/ Tudo o que eu quero,
tudo o que eu vivo/ para que Candy seja minha esta noite”. Será que ele
conseguiu? Bruce não diz.
“Racing in the Street” traz novamente o piano de Bittan fazendo a cama
lírica para a letra de Bruce, que conta a história de um trio que sai de carro
correndo pela rua. Enquanto a banda vai entrando instrumento por instrumento,
Bruce conta a saga destes dois rapazes e da menina de um deles assaltando de
cidade em cidade e fugindo sempre. “Esta
noite a faixa está certa/ Vou detoná-los na primeira tentativa/ O verão está aí
e a hora é certa de correr na rua”. Na canção, Bruce vai contando as
aventuras de gente simples que tem seus empregos simples e que passa a se
sentir importante quando está na direção de um carro. Os protagonistas vivem
isso até chegar ao fim da jornada afirmando que “todos os estranhos que foram jogados fora da estrada e todos os anjos
de tala larga/ estão circulando pela terra prometida/ Esta noite eu e minha
garota vamos até o mar/ lavar estes pecados de nossas mão / Esta noite, esta
noite, a estrada está luminosa/ Mister é melhor ficar fora do alcance/ porque o
verão está ai e a hora é certa para correr na rua”. A redenção destes
personagens se dá ao estar em frente a um volante, correndo pelas estradas sem
rumo. Poderia se dizer que estas criações de Bruce são atualizações dos
personagens de John Steinbeck, especialmente em "As Vinhas da Ira",
um dos livros preferidos do músico. Aos poucos, o órgão de Federici toma conta
da canção com a batida na caixa de Weinberg, reforçando a dramaticidade desta
história que encerra, enquanto a banda continua. Melancolia pura no operariado.
O lado 2 começa com mais uma música deste disco que se poderia chamar
de um Road-record. Muitas das músicas
falam de noite, escuridão, de carros, de corridas e fugas. “The Promised Land”
não foge à regra. O narrador “trabalha o
dia todo na garagem de seu pai / Dirigindo a noite inteira caçando alguma
miragem / logo logo, garotinha, vou tomar conta”. O refrão dá mostras de
uma pequena esperança: “Os cães na Rua
Principal uivam porque eles entendem/ se eu pudesse pegar um momento em minhas
mãos/ senhor não sou um garoto sou um homem/ e eu acredito na Terra Prometida”.
A esperança deste narrador logo é confrontada com a dura realidade: “Tenho dado meu melhor para viver da maneira
correta/ Acordo todas as manhãs e vou trabalhar todos os dias/ Mas seus olhos
ficam cegos e seu sangue corre frio/ Às vezes me sinto tão fraco que quero
explodir/ Explodir e detonar esta cidade/ Pegar uma faca e cortar esta dor do
meu coração/ Encontrar alguém que esteja com vontade de começar”. No final,
este homem diz que quer “explodir os
sonhos que te desmontam/ explodir os sonhos que partem seu coração/ explodir as
mentidas que te deixam perdido e baixo astral”. Nesta canção, a harmônica
de Bruce dá aquele toque dylanesco na
canção.
Outra canção que fala de seu pai, “Factory”, traz exatamente isso. Um
inventário da vida de um operário de fábrica no interior dos Estados Unidos. É
bom lembrar que Bruce foi criado em Nova Jersey, onde as oportunidades ficam
restritas do outro lado do rio. “Cedo da
manhã o apito da fábrica toca o homem levanta da cama e põe suas roupas/ O
homem pega seu almoço e caminha na luz da manhã/ é a vida dos trabalhadores,
dos trabalhadores, dos trabalhadores”. Em seguida, Bruce conta mais da vida
de seu pai: “Através das mansões do medo,
através das mansões da dor/ Vi meu pai caminhando/ Através dos portões da
fábrica na chuva/ A fábrica tirou sua audição, a fábrica lhe deu vida/ é a vida
dos trabalhadores, dos trabalhadores, dos trabalhadores”. No final da
canção, a coisa fica preta, pois estes homens frustrados saem do ambiente de
trabalho prontos para brigar, prometendo que “alguém vai se machucar esta noite”.
“Streets of Fire” traz de novo a metáfora das ruas como o ambiente de libertação
mas também de perigo, pois são “ruas de fogo”. “Estou vagando, um perdedor nestas faixas/ Estou morrendo, mas garota
não posso voltar/ porque na escuridão ouço alguém chamar meu nome/ e quando
percebe que foi enganado desta vez/ São todas mentiras, mas estou preso
totalmente a/ estas ruas de fogo”. Os arranjos do disco flertam com o blues e com o rhythm and blues de Elvis, Chuck Berry, Little Richard, mas trazem também um quê de Rolling Stones e sua interpretação da música americana. Bruce
parece querer devolver estes gêneros para seu país. E consegue.
“Prove it all Night” é mais animada, mas a temática é a mesma: o
narrador está dirigindo para comprar uma aliança de ouro e um vestido azul
bonito para sua garota. E um beijo para provar toda noite. Lá pelas tantas, ele
pede para que ela “prenda seu cabelo num
longo rabo de cavalo branco/ me encontre nos campos atrás do dínamo/ Você ouve
suas vozes dizendo que não é pra ir/ Eles fazem suas escolhas e eles nunca
saberão/ o que significa roubar, enganar, mentir/ Como é viver e morrer/ pra
provar toda noite”. Clarence Clemons reaparece com seu sax tenor na
tradição R&B de King Curtis e Pee Wee Ellis, da banda de James Brown. No
final do disco, este pequeno alento numa vida desesperançada.
"Darkness on the Edge of Town" termina com a faixa-título na
qual Bruce conta a história de um corredor que perdeu sua garota porque as
diferenças sociais os afastaram. Segundo ele, o sangue nunca correu em suas
veias. “Agora ela tem uma casa em
Fairview/ e um estilo de vida que tenta manter/ Pode dizer pra ela que sou
facilmente encontrável/ Diga a ela que tem um lugar embaixo da ponte Abram/ e
diga a ela que tem escuridão nos limites da cidade”. A narrativa vai
mostrando que todos têm um segredo e que é difícil escondê-los o tempo inteiro
até que algo faz com que eles sejam revelados. No último verso, que Bruce canta
com raiva, ele diz que: “alguns caras
nascem numa boa vida/ outros chegam a ela de um jeito ou outro/ perdi meu
dinheiro e perdi minha mulher/ Essas coisas parecem não ter muita importância
pra mim agora/ Esta noite estarei naquela colina porque não posso parar/
estarei naquela colina com tudo o que tenho/ Vidas no limiar onde sonhos são
encontrados e perdidos/ estarei lá na hora e pagarei o preço/ por querer coisas
que somente podem ser encontradas/ na escuridão nos limites da cidade”.
Um final sem esperança para um disco que lida com a vida cotidiana e
mostra que, pelo menos naquela época, durante o governo Jimmy Carter, as coisas
não andavam muito bem para o trabalhador americano. Tudo isso emoldurado pelo
som da E. Street Band, grupo que o acompanha até hoje. Este grupo mantém as
influências do líder todas em dia. Trabalho importante na carreira de Bruce
Springsteen, "Darkness on the Edge of Town" consolidou sua imagem de
uma espécie de "porta-voz poético" da população americana. Daí em
frente, a trajetória do músico o levou a se tornar um herói nos Estados Unidos.
Aqui no Brasil, Bruce só foi notado pelo grande público com "Born in the U.S.A.".
Mas esta é outra história.
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FAIXAS:
Lado 1
1. "Badlands" 4:01
2. "Adam Raised a Cain" 4:32
3. "Something in the Night" 5:11
4. "Candy's Room" 2:51
5. "Racing in the Street" 6:53
Lado 2
1. "The Promised Land" 4:33
2. "Factory" 2:17
3. "Streets of Fire" 4:09
4. "Prove It All Night" 3:56
5. "Darkness on the Edge of Town" 4:30
OUÇA O DISCO
por Paulo Moreira
Um disco totalmente diferente do anterior "Born to Run" (1975), mas muito bom de qualquer maneira.
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